domingo, 26 de abril de 2009

As veias abertas da América Latina



Dias atrás o presidente Hugo Chávez deu um mimo ao presidente Barack Obama. A obra “As veias abertas da América Latina”, editado na década de 70, e um clássico da literatura política de denúncia das mazelas do então chamado Terceiro Mundo. Hoje, essa expressão está em desuso, porque o Terceiro Mundo penetrou Nova York, em Londres, em Paris e Tóquio, ao mesmo tempo que temos Primeiro Mundo em Santiago, Rio de Janeiro, Joannesburgo ou Lima.
O livro de Galeano começa assim:
Há dois lados na divisão internacional do trabalho: um em que alguns países especializam-se em ganhar, e outro em que se especializaram em perder. Nossa comarca do mundo, que hoje chamamos de América Latina, foi precoce: especializou-se em perder desde os remotos tempos em que os europeus do Renascimento se abalançaram pelo mar e fincaram os dentes em sua garganta. Passaram os séculos, e a América Latina aperfeiçoou suas funções. Este já não é o reino das maravilhas, onde a realidade derrotava a fábula e a imaginação era humilhada pelos troféus das conquistas, as jazidas de ouro e as montanhas de prata. Mas a região continua trabalhando como um serviçal. [...]

Capture, leia, releia, guarde e divulgue as 201 páginas da obra de Eduardo Galeano,
CLIQUE AQUI na íntegra (em pdf).

quarta-feira, 8 de abril de 2009

A derrota do neoliberalismo e a classe trabalhadora





Robert P. Brenner [*] entrevistado por Seongjin Jeong **


SEONGJIN JEONG – A maior parte dos media e dos analistas etiquetam a crise actual como "crise financeira". Concorda com esta caracterização?
ROBERT P. BRENNER
É compreensível que analistas da crise tenham feito do colapso nos mercados bancários e de seguros o seu ponto de partida. Mas a dificuldade é que eles não foram mais ao fundo. Desde o secretário do Tesouro Paulson e ao presidente do Fed Bernanke, eles argumentam que a crise pode ser explicada simplesmente em termos de problemas no sector financeiro. Ao mesmo tempo, asseveram que a economia real subjacente está forte, os chamados fundamentals em boa forma. Isto não podia ser mais ilusório. A fonte básica da crise de hoje é o declínio da vitalidade das economias avançadas a partir de 1973 e, especialmente, desde 2000. O desempenho económico nos EUA, Europa ocidental e Japão deteriorou-se constantemente, ciclo de negócios a ciclo de negócios em termos de todos os indicadores macroeconómicos padrão – PIB, investimento, salários reais e assim por diante. O mais notável, o ciclo de negócios que acaba de terminar, de 2001 até 2007, foi de longe o mais fraco do período do pós-guerra e isto apesar dos maiores estímulos económicos patrocinados pelo governo na história dos EUA em tempo de paz.


JEONG – Como explicaria o enfraquecimento da economia real a partir de 1973, a que no seu trabalho chama "a longa baixa"?
BRENNER –
O principal factor responsável disto é um profundo e duradouro declínio da taxa de retorno sobre o investimento de capital desde o fim da década de 1960. O fracasso da taxa de lucro em recuperar é ainda mais notável, em vista da enorme queda no crescimento dos salários reais ao longo do período. A causa principal, embora não a única causa, do declínio da taxa de lucro tem sido uma tendência persistente para a super-capacidade nas indústrias manufactureiras globais. O que aconteceu foi que um após o outro novos poderes manufactureiros entraram no mercado mundial – Alemanha e Japão, os NICs do nordeste asiático, os Tigres do sudeste asiático e finalmente o Leviatã chinês. Estas economias de desenvolvimento recente produziam os mesmos bens que estavam a ser produzidos pelos países já desenvolvidos, apenas mais barato. O resultado foi demasiada oferta relativa à procura em uma indústria após a outra, e isto forçou preços baixos e dessa forma os lucros. As corporações que experimentaram o esmagamento dos seus lucros não quiseram abandonar docilmente as suas indústrias. Elas tentaram manter o seu lugar recorrendo à sua capacidade de inovação, acelerando o investimento em novas tecnologias. Mas naturalmente isto apenas piorou a super-capacidade. Devido à queda na sua taxa de retorno, os capitalistas estavam a obter excedentes mais pequenos dos seus investimentos. Eles portanto não tinham outra opção senão desacelerar o crescimento das fábricas, do equipamento e do emprego. Ao mesmo tempo, a fim de restaurar a lucratividade, eles mantinham baixa a remuneração dos empregos, enquanto os governo reduziam o crescimento das despesas sociais. Mas a consequência de todos estes cortes nos gastos foi um problema a longo prazo na procura agregada. O enfraquecimento persistente da procura agregada foi a fonte imediata do enfraquecimento da economia longo prazo.


JEONG – A crise foi realmente disparada pela explosão da bolha habitacional histórica, a qual estivera a expandir-se durante uma década inteira. Que visão tem do seu significado?
BRENNER
A bolha habitacional precisa ser entendida em relação à sucessão de bolhas de preços de activos que a economia tem experimentado desde meados dos 90 e especialmente ao papel do Federal Reserve dos EUA em alimentar tais bolhas. Desde o princípio da longa baixa, as autoridades económicas do Estado têm tentado enfrentar o problema da procura insuficiente encorajando o aumento da tomada de empréstimos, tanto públicos como privados. A princípio, eles voltaram-se para défices no orçamento do Estado e por este meio evitaram realmente recessões profundas. Mas, à medida que o tempo decorria, os governos obtinham cada vez menos crescimento a partir da mesma quantia de empréstimos. Com efeito, a fim de protelar a espécie de crise profunda que historicamente tem atormentado o sistema capitalista, eles tinham de aceitar um deslizamento rumo à estagnação. Durante o princípio da década de 1990, governos nos EUA e na Europa, liderados pela administração Clinton, tentaram claramente romper a sua dependência à dívida movendo-se em conjunto rumo a orçamentos equilibrados. A ideia era deixar o mercado livre governar a economia. Mas, como a lucratividade ainda não se havia recuperado, a redução nos défices proporcionou um grande choque na procura e ajudou a desencadear as piores recessões e o crescimento mais lento da era do pós-guerra, entre 1991 e 1995. Para fazer com que a economia se expandisse outra vez, as autoridades dos EUA acabaram por adoptar uma abordagem de que o Japão foram pioneiro no fim da década de 1980. Ao manter taxas de juros baixas, o Federal Reserve tornou fácil assumir empréstimos de modo a encorajar o investimento em activos financeiros. Quando os preços dos activos subiram, as corporações e famílias experimentaram aumentos enormes na sua riqueza, pelo menos no papel. Eles foram portanto capazes de assumir empréstimos numa escala titânica, aumentar amplamente o seu investimento e consumo e, desse modo, impulsionar a economia. Assim, défices privados substituíram os públicos. Aquilo que pode ser chamado "keynesianismo de preços de activos" substituiu o keynesianismo tradicional. Testemunhámos portanto durante os últimos 12 anos ou mais o espectáculo extraordinário de uma economia mundial na qual a continuação da acumulação de capital acabou literalmente por depender de ondas históricas de especulação, cuidadosamente alimentadas e racionalizadas pelos decisores e reguladores do Estado – primeiro a bolha histórica do mercado de acções do fim dos anos 90, a seguir as bolhas dos mercados habitacionais e de crédito do princípio dos anos 2000.


JEONG – O sr. foi profético ao prever a crise actual bem como a recessão de 2001. Qual é a sua perspectiva para a economia global? Ela piorará, ou recuperar-se-á antes do fim de 2009? Espera que a crise actual seja tão severa quanto a Grande Depressão?
BRENNER
A crise actual é mais grave do que a pior recessão anterior do pós guerra, a de 1979-1982, e é concebível que possa rivalizar com a Grande Depressão, embora não haja qualquer meio de saber com certeza. Os previsores económicos subestimaram quão má ela é porque super-estimaram a força da economia real e deixaram de levar em conta a extensão da sua dependência sobre um crescendo de dívidas que repousavam em bolhas de preços de activos. Nos EUA, durante o ciclo de negócios recente dos anos 2001-2007, o crescimento do PIB foi de longe o mais lento da época do pós-guerra. Não houve aumento de emprego no sector privado. O aumento em fábricas e equipamento foi cerca de um terço da baixa anterior do pós-guerra. Os salários reais estavam basicamente esmagados. O crescimento económico foi impulsionado inteiramente pelo consumo pessoal e o investimento residencial, tornado possível pela facilidade do crédito e a ascensão dos preços das casas. O desempenho económico foi fraco, apesar dos enormes estímulos da bolha habitacional dos enormes défices federais da administração Bush. A habitação em si representou quase um terço do crescimento do PIB e acabou por ser metade do aumento do emprego nos anos 2001-2005. Portanto era de esperar que quando a bolha habitacional explodisse, o consumo e o investimento residencial cairiam e a economia mergulharia.


JEONG – Muitos afirmam que a crise actual é uma típica "crise de Minsky", não uma crise marxista, argumentando que o estouro da bolha da especulação financeira desempenhou o papel central na crise. Como responderia a isso?
BRENNER
Não penso que seja útil contrapor desse modo os aspectos reais e financeiros da crise. Como enfatizei, é uma crise marxista, que encontra as suas raízes numa queda a longo prazo da taxa de lucro, e no fracasso em recuperá-la, a qual é a fonte fundamental da prolongada baixa de acumulação de capital até o presente. Em 2001, a taxa de lucro da corporações não financeiras dos EUA era a mais baixa do período do pós-guerra, excepto para 1980. As corporações portanto não tinham outra opção senão retrair o investimento e o emprego, mas isto tornou ainda pior o problema da procura agregada, mais uma vez ensombrando o clima dos negócios. Isto é o que conta para o ultra baixo crescimento durante o ciclo de negócios que acaba de terminar. No entanto, para entender o colapso actual, é preciso demonstrar a conexão entre a fraqueza da economia real e o colapso financeiro. A principal ligação é a dependência cada vez maior da economia da assumpção de empréstimos a fim de mantê-la a girar e da dependência cada vez maior dos governos dos aumentos dos preços dos activos para permitir que a contracção de empréstimos continue. A condição básica para as bolhas do mercado habitacional e de crédito foi a perpetuação dos baixos custos da tomada de empréstimos. Além disso, a fraqueza da economia mundial, especialmente após as crises de 1997-1998 e 2001-2002, mais as enormes compras de dólares por parte de governos do Extremo Oriente a fim de manterem baixas as suas divisas e o crescimento do consumo nos EUA, feitas por taxas de juros a longo prazo inabitualmente baixas. Ao mesmo tempo, o Fed dos EUA manteve as taxas de juros a curto prazo mais baixas do que em qualquer momento desde a década de 1950. Como podiam emprestar barato, os bancos estavam desejosos de conceder empréstimos a especuladores, cujos investimentos impulsionaram os preços de activos de todo tipo sempre mais altos e o retorno sobre os empréstimos (taxas de juros de títulos) sempre mais baixos. Sintomaticamente, os preços da habitação ascenderam e o rendimento em termos reais dos títulos do tesouro dos EUA mergulhou. Mas como os rendimentos caíam cada vez mais baixo, as instituições do mundo todo que dependiam dos retornos do emprestado tinham cada vez mais dificuldade em ganhar lucros suficientes. Os fundos de pensão e as companhias de seguros foram particularmente atingidos, mas os hedge funds e os bancos de investimento também foram afectados. Estas instituições estavam portanto prontas para fazerem investimentos maciços em títulos apoiados pelas altamente dúbias hipotecas sub-prime devido aos inabituais altos retornos que ofereciam, ignorando o seu inabitual alto risco. De facto, elas não podiam conseguir o suficiente destes títulos. As suas compras de títulos apoiados por hipotecas permitiram aos originadores das hipotecas manterem-se a emprestar para tomadores cada vez menos qualificados. A bolha habitacional atingiu proporções históricas e a expansão económica pôde continuar. Mas, naturalmente, isto não podia perdurar para sempre. Quando os preços habitacionais caíram, a economia real entrou em recessão e o sector financeiro experimentou um colapso, porque ambos haviam dependido para o seu dinamismo da bolha habitacional. Hoje, a recessão está tornando o colapso pior porque está a exacerbar a crise habitacional. O colapso está a intensificar a recessão porque está a fazer demasiado difícil o acesso ao crédito. Foi a interacção entre a crise na economia real e o sector financeiro a reforçarem-se mutuamente que tornou o deslizamento declinante tão intratável para os decisores políticos e o potencial para a catástrofe tão evidente.


JEONG – Mesmo que se concorde em que o capitalismo do pós-guerra entrou num período de baixa prolongada na década de 1970, parece inegável que a ofensiva capitalista neoliberal impediu o agravamento da baixa a partir da década de 1980.
BRENNER
Se por neoliberalismo quer dizer a viragem para as finanças e as desregulação, não vejo em que isto tenha ajudado a economia. Mas se quer dizer com isto o movimento de assalto dos empregadores e dos governos aos salários dos trabalhadores, às condições de trabalho e ao estado previdência, então não há dúvida de que impediu a queda da taxa de lucro de ficar ainda pior. Mesmo assim, a ofensiva dos empregadores não esperou pela era neoliberal da década de 1980. Ela começou na esteira da queda de lucratividade, tendo começado no princípio da década de 1970, juntamente com o keynesianismo. Além disso, ela não resultou na recuperação da taxa de lucro e apenas exacerbou o problema da procura agregada. O enfraquecimento da procura agregada finalmente impeliu as autoridades económicas a virarem-se para formas mais poderosas e perigosas de estímulo económico, o "keynesianismo de preços de activos" que levou ao desastre actual.


JEONG – Alguns argumentaram que um novo paradigma de "financiarização" ou "capitalismo conduzido pelas finanças" sustentou um chamado "Capital Ressurgente" (Gerard Dumesnil) entre a década de 1980 e o presente. O que pensa da tese da "financiarização" ou "capitalismo conduzido pelas finanças"?
BRENNER
A ideia de um capitalismo conduzido pelas finanças é uma contradição em termos, porque, falando na generalidade – há excepções significativas, como a concessão de empréstimos aos consumidores – a feitura sustentada de lucros financeiros depende da feitura sustentada de lucro na economia real. Para responder à queda da taxa de lucro na economia real, alguns governos, liderados pelo dos EUA, encorajaram uma viragem para as finanças desregulamentando o sector financeiro. Mas, porque a economia real continuava a definhar, o principal resultado da desregulamentação foi intensificar a competição no sector financeiro, o que tornou a feitura do lucro mais difícil e encorajou ainda maior especulação e assumpção de riscos. Os executivos de proa em bancos de investimento e hedge funds foram capazes de fazerem fortunas fabulosas, porque os seus salários dependiam de lucros a curto prazo. Eles puderam assegurar temporariamente altos retornos expandindo os activos/empré stimos das suas firmas e aumentando o risco. Mas este modo de fazer negócio, mais cedo ou mais tarde, acaba por ser a expensas da saúde financeira a longo prazo das próprias corporações dos executivos, levando, espectacularmente, à queda dos principais bancos de investimento da Wall Street. Toda a chamada expansão financeira a partir dos anos 1970 acabou muito rapidamente numa crise financeira desastrosa e exigiu um salvamento maciço por parte do Estado. Isto foi verdadeiro em relação ao boom de concessão de empréstimos ao terceiro mundo da década de 1979 e princípio da de 1980; às poupanças e aumento dos empréstimos, à mania do buyout alavancado e à bolha do imobiliário comercial da década de 1980; à bolha do mercado de acções da segunda metade da década de 1990; e naturalmente às bolhas do mercado habitacional e de crédito dos anos 2000. O sector financeiro parecia dinâmico só porque os governos estavam prontos para apoiá-lo em qualquer medida.


JEONG – O keynesianismo ou estatismo parece pronto a retornar como o novo espírito do tempo (Zeitgeist). Qual é a sua avaliação geral da ressurreição do keynesianismo ou estatismo? Será que isto pode ajudar a resolver ou, pelo menos, a aliviar a crise actual?
BRENNER
Os governos hoje realmente não têm opção senão virarem-se para o keynesianismo e o Estado para tentar salvar a economia. Afinal de contas, o mercado livre mostrou-se totalmente incapaz de impedir ou enfrentar a catástrofe económica, quem dirá assegurar a estabilidade e o crescimento. Eis porque as elites políticas do mundo, que ainda ontem celebravam os mercados financeiros desregulamentados, subitamente agora são todas keynesianas. Mas há razões para duvidar que o keynesianismo, no sentido de enormes défices governamentais e crédito fácil para estimular a procura, possa ter o impacto que muitos esperam. Afinal de contas, durante os últimos sete anos, graças à contracção de empréstimos e aos gastos encorajados pela bolha habitacional do Federal Reserve e pelos défices orçamentais da administração Bush, verificámos que era, com efeito, provavelmente o maior estímulo económico keynesiano na história do tempo de paz. Contudo, obtivemos o mais fraco ciclo de negócios da época do pós-guerra. Hoje, o desafio é muito maior. Quando a bolha habitacional entra em colapso e o crédito se torna mais difícil de obter, as famílias estão a cortar no consumo e no investimento residencial. Em consequência, as corporações estão a experimentar lucros cadentes. Elas estão portanto a cortar nos salários e a despedir trabalhadores a um ritmo rápido, detonando uma espiral de procura declinante e o declínio da lucratividade. As famílias contaram por muito tempo com a ascensão dos preços da casas para poderem tomar mais empréstimos e dedicam as suas poupanças a eles. Mas agora, por causa do acumular de dívida, elas terão de reduzir a contracção de empréstimos e aumentar a poupança no próprio momento em que a economia mais necessita que elas consumam. Podemos esperar que grande parte do dinheiro que o governo coloca nas mãos das famílias será poupado, não gasto. Uma vez que o keynesianismo dificilmente podia mover a economia durante a expansão, o que podemos nós esperar dele na pior recessão desde a década de 1930? Para ter um efeito significativo sobre a economia, a administração Obama provavelmente terá de contemplar uma enorme onda de investimento directo ou indirecto do governo, uma forma na verdade de capitalismo de Estado. Realmente cumprir isto, contudo, exigiria ultrapassar enormes obstáculos políticos e económicos. A cultura política dos EUA é extremamente hostil à empresa estatal. Ao mesmo tempo, o nível de despesas e de endividamento do Estado que seria exigido ameaçaria o dólar. Até agora, os governos do Leste asiático têm estado felizes em financiar os défices externo e governamental dos EUA, a fim de sustentar o consumo estado-unidense e as suas próprias exportações. Mas, com a crise a alcançar mesmo a China, estes governos podem perder a capacidade para financiar os défices dos EUA, especialmente quando eles crescem para uma dimensão sem precedentes. A perspectiva verdadeiramente terrífica de uma corrida sobre o dólar assoma no pano de fundo.


JEONG – Qual é a sua avaliação geral da vitória de Obama na última eleição presidencial? Pensa que Obama é um "mal menor", em comparação com a administração Bush? Muitos encaram Obama como um F.D.R. do século XXI. Na verdade, Obama prometeu um "novo New Deal". Pensa que os progressistas anti-capitalistas podem dar apoio crítico a algo do seu "novo New Deal"?
BRENNER
O triunfo de Obama na eleição deve ser saudado. Uma vitória de McCain teria sido uma vitória do Partido Republicano e dado um enorme impulso às forças mais reaccionárias da cena política estado-unidense. Teria sido um endosso do hiper-militarismo e do imperialismo da administração Bush, bem como à sua agenda explícita de eliminar o que resta de sindicatos, do estado previdência e da protecção ambiental. Dito isto, Obama é, como Roosevelt, um Democrata centrista, de que não se pode esperar, por sua própria iniciativa, fazer muito para defender os interesses da vasta maioria do povo trabalhador, que será sujeita a um assalto acelerado das corporações a tentarem compensar os seus lucros em colapso através da redução do emprego, dos salários e assim por diante. Obama apoiou o salvamento titânico do sector financeiro, o qual representa talvez o maior roubo do contribuinte na história dos EUA, especialmente porque ele não vem com condições para os bancos. Ele também apoiou o salvamento da indústria automóvel, embora condicionado a cortes maciços na remuneração dos trabalhadores. A moral da história é que, como Roosevelt, só se pode esperar que Obama tome acções decisivas em defesa do povo trabalhador se for pressionando para isso pela acção organizada directa dos de baixo. A administração Roosevelt aprovou a principal legislação progressista do New Deal, incluindo o Wagner Act e a Segurança Social, só depois de ter sido pressionada a fazê-lo por uma grande onda de greves em massa. Podemos esperar o mesmo de Obama.


JEONG – Segundo Rosa Luxemburgo, e recentemente David Harvey, o capitalismo ultrapassa a sua tendência para a crise através da expansão geográfica. Segundo Harvey, isto é muitas vezes facilitado por investimentos maciços do Estado em infraestrutura, para apoiar investimento de capital privado, muitas vezes investimento directo estrangeiro. Pensa que o capitalismo pode encontrar uma saída para a crise actual, na terminologia de Harvey, através de um "conserto espaço-temporal" ?
BRENNER
Esta é uma questão complexa. Penso, antes de mais nada, que é verdadeiro e criticamente importante dizer que a expansão geográfica tem sido essencial em toda a grande onda de acumulação de capital. Pode-se dizer que o crescimento da dimensão da força de trabalho e o crescimento do espaço geográfico do sistema são o sine qua non, o essencial, para o crescimento capitalista. O boom do pós-guerra é um bom exemplo, pois apresentou expansões espectaculares do capital para o Sul e Sudoeste dos EUA, para a Europa ocidental devastada pela guerra e para o Japão. O investimento de corporações dos EUA desempenhou um papel crítico, não só nos EUA mas na Europa ocidental nesta época. Sem nenhuma dúvida, esta expansão da força de trabalho e da arena geográfica capitalista foi indispensável para as altas taxas de lucro que tornaram o boom do pós-guerra tão dinâmico. De um ponto de vista marxista, isto foi uma onda clássica de acumulação de capital e, necessariamente, implicou tanto a absorção de enormes massas de trabalho externas ao sistema, especialmente das zonas rurais pré-capitalistas na Alemanha e no Japão, e a incorporação ou re-incorporação de espaço geográfico adicional numa enorme escala. No entanto, penso que de modo geral o padrão da longa baixa, desde o fim da década de 1960 e princípio da de 1970, foi diferente. É verdade que o capital respondeu à lucratividade em queda com nova expansão externa, procurando combinar técnicas avançadas com trabalho barato. A Ásia do Leste é naturalmente o caso fundamental e inquestionavelmente representa um momento histórico para o capitalismo mundial, de transformação fundamental. Mas, apesar de a expansão na Ásia do Leste ter representado uma resposta à lucratividade em queda, ela não tem, penso, constituído uma solução satisfatória. Isto porque, no fim, a nova produção manufactureira que emergiu tão espectacularmente na Ásia do Leste é também em grande medida uma duplicação da produção manufactureira que estava a verificar-se alhures, embora a verificar-se de forma mais barata. O problema é que numa escala de todo o sistema, isto é mais preocupante do que resolver o problema da super-capacidade. Por outras palavras, a globalização foi a resposta à lucratividade em queda, mas uma vez que as suas novas indústrias não são, basicamente, complementares para a divisão mundial do trabalho, e sim redundantes, houve uma continuação do problema da lucratividade. O resultado, penso, é que para realmente resolver o problema da lucratividade que por tanto tempo o atormentou – lenta acumulação de capital e recorrendo a sempre maiores níveis de contracção de empréstimos para sustentar a estabilidade – o sistema exigiu que a crise fosse adiada por muito tempo. Porque o problema é super-capacidade, agravada maciçamente pela acumulação de divida, o que ainda exige, como na visão clássica, uma sacudidela do sistema de firmas de alto custo e baixo lucro, o subsequente embaratecimento de meios de produção e a redução do preço do trabalho. É por meio da crise que, historicamente, o capitalismo tem restaurado a taxa de lucro e estabelecido as condições necessárias para a acumulação de capital mais dinâmica. Durante o período do pós-guerra, as crises foram evitadas, mas o custo foi um fracasso no ressuscitar da lucratividade levando ao agravamento da estagnação. A actual crise é aquela sacudidela que nunca aconteceu.


JEONG – Assim, pensa que apenas a crise pode resolver a crise? Esta é a resposta marxista clássica.
BRENNER
Penso que provavelmente é este o caso. A analogia seria esta. Primeiro, no princípio da década de 1930, o New Deal e o keynesianismo foram ineficazes. De facto, apesar da extensão [da crise] ao longo dos anos 1930, houve um fracasso em estabelecer as condições para um novo boom, como se demonstrou quando a economia caiu outra vez em recessão profunda em 1937-1938. Mas, finalmente, devido à longa crise dos anos 30, sacudiram-se os altos custos e baixo lucro dos meios de produção, criando as condições básicas para altas taxas de lucro. Assim, no fim dos anos 1930, podia-se dizer que a taxa de lucro potencial era alta e que o que estava a faltar um choque era um choque de procura. Tal procura foi proporcionada naturalmente pelos gastos maciços com armamento para a II Guerra Mundial. Assim, durante a guerra, obtiveram-se altas taxas de lucro e estas proporcionaram a condição necessária para o boom do pós-guerra. Mas não penso que os défices keynesianos pudessem ter funcionado mesmo que tivessem sido tentados em 1933, porque era preciso, em termos marxistas, primeiro uma crise de limpeza do sistema.


JEONG – Pensa que a crise actual levará a um desafiar da hegemonia dos EUA? Teóricos do sistema mundial, como Immanuel Wallerstein, também entrevistado neste jornal, estão a argumentar que a hegemonia do imperialismo estado-unidense está a declinar.
BRENNER
Isto é, mais uma vez, uma questão complexa. Talvez eu esteja errado, mas penso que muitos daqueles que acreditam haver um declínio na hegemonia dos EUA vêm a hegemonia basicamente sobretudo como expressão do poder geopolítico estado-unidense e, por fim, da força dos EUA. Deste ponto de vista, é principalmente a dominância dos EUA que faz a liderança dos EUA, é o poder dos EUA sobre e contra outros países que mantém os EUA no topo. Não vejo a hegemonia dos EUA deste modo. Vejo as elites do mundo, especialmente as elites do núcleo capitalista concebido em termos amplos, como estando muito felizes com a hegemonia dos EUA porque o que ela significa para eles é que os EUA assumem o papel e o custo do polícia mundial. Isto é verdade, penso, para as elites mesmo dos países hoje mais pobres. Qual é o objectivo do polícia mundial EUA? Não é atacar outros países. É principalmente manter a ordem social numa escala mundial, criar condições estáveis para a acumulação global de capital. O seu principal propósito é liquidar quaisquer desafios populares ao capitalismo, apoiar as existentes estruturas de relações de classe. Durante a maior parte do período do pós-guerra, houve desafios nacionalistas- estatistas, especialmente dos de baixo, à rédea solta do capital. Eles sem dúvida foram recebidos pela força mais brutal dos EUA, na maior parte expressões nuas da sua dominação. Dentro do núcleo houve hegemonia dos EUA, do lado de fora houve dominação. Mas com a queda a União Soviética, com a China e o Vietname a adoptarem o caminho capitalista, e a derrota de movimentos de libertação nacional em lugares como o sul da África e a América Central, a resistência ao capital no mundo em desenvolvimento foi muito enfraquecida, pelo menos por enquanto. Assim, hoje, os governos e as elites não só da Europa ocidental e oriental, Japão e Coreia, como também Brasil, Índia e China – a maior parte dos lugares que se possa nomear – prefeririam a continuação da hegemonia dos EUA. A hegemonia dos EUA não cairá devido à ascensão de uma outra potência capaz de competir pela dominação mundial. Acima de tudo, a China prefere a hegemonia dos EUA. Os EUA não estão a planear atacar a China e, até agora, mantiveram o seu mercado amplamente aberto às exportações chinesas. Com os EUA a efectuarem o papel de polícia mundial e a assegurar sempre comércio mais livre e movimentos de capital, foi permitido à China competir em termos de custo de produção, num campo de jogo igual, e isto tem sido incrivelmente benéfico para a China – não podia ser melhor. Poderão os EUA continuar a sua hegemonia na crise actual? Isto é uma pergunta muito mais difícil. Mas que, em primeira aproximação, a resposta é sim. As elites do mundo querem antes de mais nada sustentar a actual ordem globalizada, e os EUA são a chave para isso. Ninguém das elites do mundo está a tentar explorar a crise, e os enormes problemas económicos dos EUA, para desafiar a sua hegemonia. A China mantém-se a dizer, "não vamos continuar a pagar para os EUA continuarem a dissipar", referindo-se à maneira como a China cobriu o record do défice de transacções correntes dos EUA durante a última década e os gigantescos défices orçamentais dos EUA agora a serem criados. Mas, pensa você que a China rompeu com os EUA? Nada disso. A China ainda está a despejar tanto dinheiro quanto pode dentro dos EUA a fim de tentar manter a economia estado-unidense em andamento, de modo a que a China possa manter o desenvolvimento do modo como o faz. Mas, naturalmente, o que é desejado nem sempre é possível. A profundidade da crise chinesa pode ser tão grande que não possa mais permitir-se financiar os défices dos EUA. Ou, na hipótese de défices sempre maiores dos EUA e de a impressão de dinheiro pelo Federal Reserve poder conduzir ao colapso do dólar, detonar a verdadeira catástrofe. Em ambos os casos, todas as apostas acabam. Se estas coisas acontecerem, teria de haver a construção de uma nova ordem. Mas, sob condições de crise profunda que seriam extremamente difíceis. Na verdade, sob tais condições, os EUA, bem como outros Estados, poderiam facilmente virar-se para o proteccionismo, o nacionalismo e mesmo a guerra. Penso, a partir deste momento, que as elites do mundo ainda estão a tentar evitar isto – eles não estão prontos. O que querem é manter mercados abertos, manter o comércio aberto. Isto porque entendem que da última vez que os Estados recorreram ao proteccionismo para resolver o problema foi a época da grande depressão e que tornou a depressão ainda pior, porque efectivamente quando alguns Estados começaram a proteger, todos moveram-se para a protecção e o mercado mundial encerrou. A seguir, naturalmente, veio o militarismo e a guerra. O fechamento de mercados mundiais hoje seria obviamente desastroso, de modo que elites e governos estão a fazer tudo o que podem para impedir um resultado proteccionista, estatista, nacionalista, militarista. Mas a política não é apenas uma expressão do que querem as elites, o que querem as elites muda ao longo do tempo. As elites estão, além disso, geralmente divididas e política implica autonomia. Assim, por exemplo, dificilmente pode ser descartado que, se a crise ficar muito má – o que neste ponto não seria uma grande surpresa – ver-se-ia um retorno à política de extrema-direita – uma política de proteccionismo, militarismo, anti-imigração, nacionalismo. Esta espécie de política podia ter amplo apelo popular. Secções crescentes dos negócios poderiam considerar isto como a única saída, pois veriam os seus mercados entrarem em colapso, o sistema em depressão, veriam uma necessidade de protecção da competição e de subsídios do Estado à procura através do gasto militar. Isto foi, naturalmente, a resposta que prevaleceu em grande parte da Europa e do Japão durante a crise do período entre guerras. Hoje, a direita está de rastros, devido aos fracassos da administração Bush e devido à crise. Mas, se a administração Obama for incapaz de conter o colapso económico, a direita poderia facilmente retornar... especialmente porque os Democratas não estão realmente a oferecer qualquer alternativa ideológica.


JEONG – Falou acerca de uma crise potencial na China. O que pensa do estado actual da economia chinesa?
BRENNER
Penso que a crise chinesa vai ser um bocado pior do que se espera, e isto por duas razões principais. A primeira é que a crise americana, e mais geralmente a crise global, é muito mais séria do que se espera e, em última análise, o destino da economia chinesa está inextricavelmente dependente do destino da economia dos EUA, a economia global. Isto não é só porque a China tem dependido em tão grande medida das exportações para o mercado dos EUA. É também porque a maior parte do resto do mundo também está dependente dos EUA, o que inclui especialmente a Europa. Se eu não estiver enganado, a Europa recentemente tornou-se o maior mercado de exportação da China. Mas, quando a crise com origem nos EUA deitar abaixo a Europa, o mercado europeu para bens chineses também contrairá. Assim, a situação para a China é muito pior do que se espera, porque a crise económica é muito pior do que se espera. Em segundo lugar, o entusiasmo pelo crescimento económico verdadeiramente espectacular da China tem ignorado o papel das bolhas na condução da economia chinesa. A China tem crescido basicamente através de exportações e particularmente de um excedente comercial crescente com os EUA. Devido a este excedente, o governo chinês teve de adoptar passos políticos para manter a divisa chinesa baixa e a sua manufactura competitiva. Especificamente, ele comprou activos denominados em dólares numa escala gigantesca imprimindo quantias gigantescas do renmibi, a divisa chinesa. Mas o resultado foi injectar enormes quantias de dinheiro dentro da economia chinesa, avançando sempre crédito a longo prazo mais facilitado. Por um lado, as empresas e os governos locais utilizaram este crédito fácil para financiar investimentos maciços. Mas, isto eternizou maior super-capacidade. Por outro lado, eles utilizaram o crédito fácil para comprar terra, casas, acções e outras espécies de activos financeiros. Mas isto provocou bolhas maciças de preços de activos, as quais têm actuado, como nos EUA, para permitir mais contracção de empréstimo e gastos. Quando as bolhas chinesas estalarem, a profundidade da super-capacidade tornar-se-á clara. Quando as bolhas chinesas estalarem, ver-se-á também, tal como no resto do mundo, uma enorme pancada na procura do consumidor e crises financeiras desordenadas. Assim, a crise chinesa é muito séria e poderia tornar a crise global ainda mais severa.


JEONG – Assim, pensa que a lógica capitalista da super-produção também é aplicável à China.
BRENNER
Sim, tal como a Coreia e grande parte da Ásia do Leste após os anos 90. Não é diferente. A única coisa que não aconteceu ainda é a espécie de revalorização da divisa que realmente matou a expansão da manufactura coreana. O governo chinês está a fazer tudo para evitar isso.


JEONG – De modo que não concorda com a caracterização da sociedade chinesa como uma espécie de "economia de mercado não capitalista" .
BRENNER
Não, de modo algum


JEONG – Então pensa que a China actualmente é capitalista?
BRENNER
Penso que é plenamente capitalista. Talvez se possa dizer que a China teve uma economia de mercado não capitalista até os anos 80, quando tiveram um crescimento impressionante por meio de empresas de cidade e de aldeia (town and village enterprises, TVEs). As TVEs eram de propriedade pública, possuídas por governos locais mas operadas com base no mercado. Aquela forma económica, pode-se dizer, iniciou a transição para o capitalismo. Assim, talvez no princípio dos anos 90, ainda era uma espécie de sociedade de mercado não capitalista, especialmente porque ainda havia um grande sector industrial possuído e planeado pelo Estado central. Mas, a partir daquele ponto, houve uma transição para o capitalismo, a qual certamente neste momento foi completada.


JEONG – O que pensa da severidade da crise económica coreana que está a decorrer? Pensa que poderia ser mais severa do que a crise do FMI de 1997-1998? A fim de enfrentar a crise em curso, o governo Lee Myung-bak está agora a ressuscitar o estilo Park Chung-Hee de investimento conduzido pelo Estado na construção de enorme infraestrutura social, especialmente o "Grande Canal" da península coreana, enquanto copia políticas de Obama de crescimento verde. Contudo, o governo de Lee Myung-bak ainda tenta aderir às políticas de desregulação neoliberal do período da crise pós 1997, especialmente ao voltar-se para o Acordo de Livre Comércio EUA-Coreia. Pode-se chamar a isto uma abordagem híbrida, combinando o que parece ser um retorno anacrónico ao estilo Park Chung-Hee de desenvolvimento conduzido pelo Estado com o neoliberalismo contemporâneo. Será isto eficaz para combater ou aliviar a crise que vem aí?
BRENNER
É duvidoso que isto venha a ser eficaz. Não necessariamente porque represente um regresso ao capitalismo organizado pelo Estado de Park ou porque abrace o neoliberalismo. É porque, qualquer que seja a sua forma interna, continua a depender da globalização numa época em que a crise global está a provocar uma contracção extraordinária do mercado mundial. Estávamos a conversar acerca da China e eu argumentava que a China provavelmente terá sérias perturbações. Mas a China tem salários baixos, potencialmente um enorme mercado interno, de modo que, com tempo, seria concebível que pudesse ter um melhor resultado do que a Coreia ao enfrentar a crise, embora eu não esteja seguro acerca disto. A Coreia, penso, terá uma queda dura. Houve uma queda dura em 1997-1998, mas foi salva pela bolha do mercado de acções dos EUA e o resultante crescimento da contracção de empréstimos, gastos e importações dos EUA. Mas, quando a bolha do mercado de acções dos EUA explodiu em 2000-2002, a Coreia caiu numa recessão ainda mais séria do que a crise de 1997-1998. No entanto, a bolha habitacional estado-unidense veio em resgate da Coreia durante o período recente. Mas, agora a bolha, a segunda dos EUA, entrou em colapso e não há terceira bolha para por a Coreia fora da crise actual. Não é necessariamente porque a Coreia esteja a fazer as coisas erradas. Não penso que possa haver um caminho fácil para qualquer parte do que se tornou um sistema capitalista verdadeiramente global, interdependente.


JEONG – Assim, o que está a dizer é que o ambiente externo é muito pior do que alguma vez já o foi anteriormente.
BRENNER
Esse é o ponto principal.


JEONG – Quais são então as tarefas prioritárias dos progressistas na Coreia? Os progressistas coreanos são muito críticos de Lee Myung-bak. Eles habitualmente apoiam o crescimento do Estado Previdência e a redistribuição do rendimento como uma alternativa ao projecto de Lee de investir na construção do Canal, com grandes despesas de capital. Esta é a questão candente na sociedade coreana de hoje. Os progressistas coreanos destacam que apesar das conversas de Lee Myung-bak acerca do crescimento verde, o seu projecto de construção destruiria ambientes completos. Concorda com eles?
BRENNER
Naturalmente deveríamos opor-nos a tais projectos ecologicamente desastrosos.


JEONG – Pensa que construir um Estado Previdência estilo sueco seria a estratégia razoável para os progressistas coreanos em meio à crise económica?
BRENNER
Penso que a coisa mais importante que os progressistas coreanos poderiam fazer seria refortalecer as organizações coreanas do trabalho. Só pela reconstrução do movimento da classe trabalhadora coreana a esquerda poderia construir o poder de que precisa para vencer quaisquer exigências que defenda. O único meio de a classe trabalhadora poder realmente desenvolver o seu poder é através da construção de novas organizações no decorrer da luta e é apenas através da luta que elas poderão chegar a políticas progressistas, ou na verdade decidir quais as políticas progressistas que realmente deveriam ser avançadas neste momento. Penso que o melhor caminho para forjar uma resposta política de esquerda hoje é ajudar o povo mais afectado a ganhar a organização e o poder para decidir o que é colectivamente do seu interesse. Assim, ao invés de tentar imaginar a partir de agora, a partir de cima de um modo tecnocrático, o que é a melhor resposta, a chave para a esquerda é catalisar a reconstituição do poder do povo trabalhador. O movimento trabalhista coreano foi obviamente um bocado enfraquecido a partir da crise de 1997-1998. No mínimo, a prioridade para os progressistas é fazer o que puderem para melhorar o ambiente para o trabalho organizado, para refortalecer os sindicatos a partir de agora. Isto vale não só para a Coreia, mas para toda a parte do mundo. Aqui está o objectivo chave. Sem revivificar o poder da classe trabalhadora, a esquerda rapidamente descobrirá que a maior parte das questões de política governamental são realmente académicas. Quero dizer que se a esquerda tiver de afectar a política do Estado deve haver uma mudança, uma grande mudança, no equilíbrio do poder de classe.


JEONG – Espera que haja uma abertura para os progressistas num mundo em que se verificam os fracassos recentes do neoliberalismo?
BRENNER
A derrota do neoliberalismo está definitivamente a criar grandes oportunidades que a esquerda antes não dispunha. O neoliberalismo nunca recorreu muito a grandes partes da população. O povo trabalhador nunca se identificou com mercados livres, finanças livres e tudo isso. Mas, penso que amplas secções da população foram convencidas de que isto era a única alternativa, estavam convencidas do TINA. Mas agora a crise económica revelou a bancarrota total do modo neoliberal de organização económica e já se pode ver a mudança. Ela foi muito poderosamente manifestada na oposição do povo trabalhador americano aos salvamentos dos bancos e do sector financeiro. O que eles estão a dizer hoje é: "Disseram-nos que salvar as instituições financeiras, os mercados financeiros, é a chave para restaurar a economia, a prosperidade. Mas nós não acreditamos nisto. Não queremos que vá mais dinheiro para estas pessoas que estão apenas a roubar-nos". De modo que há um grande vácuo ideológico. Portanto há uma grande abertura para ideias de esquerda. O problemas é que há muito pouca organização do povo trabalhador, quem dirá qualquer expressão política. De modo que se pode dizer que há uma oportunidade muito grande criada pela mudança no ambiente político, ou o clima ideológico, mas que por si mesmo não vai proporcionar uma saída progressista. De modo que, mais uma vez, a prioridade principal para progressistas – para quaisquer activistas da esquerda – em que deveriam ser activos é tentar reviver as organizações do povo trabalhador. Sem a re-criação do poder da classe trabalhadora pouco progresso será possível e o único caminho para recriar esse poder é através da mobilização para a acção directa. Só através da entrada em acção do povo trabalhador, colectivamente e em massa, ele será capaz de criar a organizar e acumular o poder necessário para proporcionar a base social, por assim dizer, para uma transformação da sua própria consciência, para a radicalização política.


[*] Do Departamento de História da Universidade da Califórnia, director do Center for Social Theory and Comparative History .
[**] Professor de C. Económicas na Gyeongsang National University, Coreia do Sul, e editor de Marxism 21.
O original encontra-se em http://www.hani. co.kr/arti/ society/society_ general/335869. html

Stedile: governo tem medo de entrar no debate sobre crise

Para o líder do MST, há o temor de repercussões eleitorais. Em entrevista para a Agência Brasil, ele avalia que a falta de debate e de novas idéias para combater a crise levam o governo e a classe empresarial a não conseguir resolver as questões econômicas atuais.
A falta de debate e de novas idéias para combater a crise financeira mundial levam o governo e a classe empresarial a não conseguir resolver as questões econômicas atuais. A opinião é do líder do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) João Pedro Stedile, que, em entrevista à Agência Brasil, disse que o governo tem medo da discussão sobre a crise. “O governo tem medo de entrar de cabeça no debate sobre a crise, temendo repercussões eleitorais”, disse.
O líder do MST defendeu a estatização dos bancos, o fim do superávit primário e a garantia de emprego como formas de construir um “novo modelo econômico” para o Brasil. Ele elogiou o programa habitacional lançado pelo governo, mas se disse preocupado com a execução da construção de 1 milhão de casas. “ Nunca vi construtora ganhar dinheiro construindo casa para pobre”, criticou.
Para Stedile, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), apontado pelo próprio governo como alternativa para enfrentar a crise, não cumpre a função anticíclica. “O PAC é um projeto antigo, de antes da crise. É necessário pensar outra matriz industrial para resolver problemas do povo, não da exportação”, destacou.


Agência Brasil – Como os movimentos sociais, em especial o MST, têm encarado a questão da crise financeira mundial?

João Pedro Stedile Hoje, há um consenso nos movimentos sociais, desde as centrais sindicais até as pastorais, de que a crise que está instalada na economia capitalista é internacional e vai pegar todo mundo, ela é profunda, não é apenas da produção. Vai abarcar aspectos sociais, ambientais, políticos e, inclusive, os paradigmas do capitalismo. Nós estamos muito preocupados porque está faltando na sociedade brasileira um processo de debate sobre a natureza da crise, para que o povo brasileiro tenha conhecimento dela, participe e construa alternativas populares para resistir. O pior dos cenários é simplesmente ficar assistindo, na televisão, à interpretação que o governo ou os capitalistas vão dar.


ABr – A interpretação atual da crise, em sua opinião, é equivocada?
Stedile Evidentemente os capitalistas vão querer sair da crise o mais rápido possível e mais ricos. Para isso, vão pressionar o Estado, como sempre fizeram, para que o Estado transfira a eles dinheiro público. Com isso, vão aumentar a exploração sobre os trabalhadores e o desemprego. Vão diminuir as condições de vida da população. E o governo, com medo da crise, vai ficar todo o tempo dizendo: calma que o leão é manso. É preciso que a população tenha espaço para debater e, sobretudo, que os meios de comunicação que não são dos capitalistas ajudem.

ABr – Por que o senhor acha que o governo tem medo da crise?
Stedile O governo tem medo de entrar de cabeça no debate sobre a crise temendo repercussões eleitorais. Só há uma forma de ampliar o debate. Se os movimentos sociais e as igrejas pegarem esse debate como peça prioritária, utilizando os meios alternativos que nós temos. O governo tem que sair do casulo. O governo parece que está com medo de sair do debate. Ele precisa se abrir e dizer que não sabe o que fazer, mas chamar para debater.

ABr – Como a agricultura brasileira vem sentindo os efeitos da crise?
Stedile Essa crise tem atingindo mais em cheio o agronegócio, que é, no fundo, o modo de os capitalistas organizarem a produção agrícola no Brasil. Para isso, eles impuseram um modelo, que nós chamamos de agricultura industrial, totalmente dependente dos insumos, dos agrotóxicos e do mercado internacional. O mercado internacional vai diminuir, a renda dos europeus, americanos e chineses vai diminuir, portanto, vai diminuir o preço das commodities e vai diminuir o mercado. Evidentemente que, de novo, os capitalistas do agronegócio vão querer jogar sobre as costas dos trabalhadores o peso da crise. Já estão jogando. De dezembro pra cá, segundo dados do próprio governo, mais de 300 mil trabalhadores rurais assalariados perderam o emprego.


ABr – E nos assentamentos do MST, como a crise está impactando?

Stedile Na agricultura familiar e camponesa, em que estão inseridos os assentados, como o próprio modo de produção não é capitalista, o que a gente tem debatido é que temos condições de resistir mais à perversidade da crise. Nós não dependemos de emprego, nós achamos que vai haver uma revalorização dos alimentos, ou seja, na crise o único dinheiro que os trabalhadores reservam é para comida. Pode cortar a luz, telefone, mas a comida não. Temos uma avaliação de que o povo camponês sofrerá menos os efeitos da crise.

ABr – Sofrerá?
Stedile Sofrerá, talvez mais pela redução no ritmo das políticas públicas agrícolas. Isso é que nos preocupa. Estamos pressionando para que o governo transforme a crise em uma oportunidade. Para proteger a população, essa era a hora de aumentar a reforma agrária, de aumentar os investimentos públicos na agricultura e deixar de lado o agronegócio, deixar de lado os grandes projetos do BNDES [o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] para a expansão do plantio de eucalipto, para expansão do etanol. Isso não desenvolve o país e só gera desemprego. Esse é o debate que estamos fazendo entre nós.

ABr – Como o senhor avalia as medidas tomadas pelo governo até então para conter os efeitos da crise no Brasil?
Stedile O governo, na boa intenção, diminuiu o percentual do depósito compulsório que os bancos precisam fazer para o Banco Central. Isso representou R$ 180 bilhões que os bancos privados, que recebem o nosso depósito à vista, deixaram de recolher ao BC. A intenção do governo era que esses bancos aplicassem na indústria e na produção para reativar a economia. Mas eles recompraram títulos da dívida pública interna. Ou seja, emprestaram novamente para o governo, a 12 % de juros. Ou seja, os bancos enriqueceram ainda mais. É fácil até fazer a conta. Significa que o governo ajudou os bancos a se apropriarem de R$ 20 bilhões em uma tacada só. Além disso, muitas empresas aproveitam a notícia da crise para reorganizar o seu processo produtivo. Há empresas que estão tendo lucro, como a Vale do Rio Doce, que anunciou R$ 20 bilhões de lucro e colocou na rua 2 mil operários. É um caso de se aproveitar da crise para aumentar a exploração sobre os trabalhadores
ABr – O senhor acha que as medidas então não surtiram efeito?
Stedile As propostas dos governo e das classes dominantes são as propostas clássicas do capitalismo. A saída que está sendo pensada é mais liberalismo, mais dependência do capital internacional. E também dá para perceber que a classe dominante brasileira não tem um projeto de desenvolvimento do Brasil, ao contrário do que aconteceu na crise de 1929, quando a burguesia brasileira estava articulada ao redor do governo Getúlio Vargas. Agora, a burguesia brasileira não tem um projeto para o país. Ela só quer ter lucro e isso é uma tragédia, para ela, inclusive.

ABr – E o que o senhor acha e o que os movimentos sociais acham que precisa ser feito?

Stedile Reduzir juros é insuficiente. O que nós precisamos é de uma terceira alternativa, que é uma alternativa popular. Precisamos discutir com as forças organizadas da sociedade um novo projeto de país, um novo modelo econômico para o Brasil.


ABr – O que esse novo modelo incluiria?
Stedile Algumas medidas prioritárias. A primeira seria a estatização de todo o sistema financeiro. Se não se controla a circulação do dinheiro, nunca vai reativar a produção. Segundo ponto: é necessário acabar com o superávit primário. O governo recolhe os impostos de todos nós e aí separa R$ 200 bilhões para pagar em juros. Isso tem que acabar. Tem que pegar esse dinheiro que está sobrando do orçamento e investir na produção. Mas não é em qualquer produção. Não é em automóveis. Tem que aplicar no que a população brasileira está precisando. Moradia popular, transporte de massa, trem, metrô, navio. Aplicar em escolas. Temos um déficit educacional enorme. Como é que se faz para pular dos 10% de jovens na universidade, que nós temos, para os 80% que tem a Bolívia? Construindo universidade, contratando professor, comprando livro, isso tudo é indústria. Só no investimento na educação, que é a grande tese do Cristovam Buarque, já se poderia incentivar a economia. E o dinheiro tem que vir do superávit primário, que tem que acabar. Pedi para que os economistas amigos do MST pesquisem o seguinte: estou desconfiado de que o Brasil é o único país do mundo a manter o superávit primário. Na Europa, todos os países são deficitários.

ABr – O que mais é necessário?
Stedile – Aplicar recursos e garantir emprego para todo mundo. Todo brasileiro adulto tem que ter direito a emprego. Foi o que Roosevelt fez para tirar os Estados Unidos da crise e transformar em potência mundial. Isso não é novidade. Isso tudo que estou dizendo não é radicalismo.

ABr – Como fica a defesa da reforma agrária em meio a um contexto de crise financeira?

Stedile A reforma agrária fixa o homem no campo e desfaveliza o país. Além disso, contribui para a produção de alimentos. Os únicos que produzem alimentos são camponeses. O agronegócio produz celulose, etanol, algodão, soja, mas comida não. Quem produz leite, arroz e feijão é o camponês. Essa seria a maneira de ativarmos a produção agrícola. Mas não é voltar àquela reforma agrária antiga.

ABr – E como é a reforma agrária moderna?
Stedile Agora, queremos outro tipo de reforma agrária. Trata-se de uma reforma agrária que combine o camponês com as agroindústrias cooperativadas. Em vez de o BNDES dar R$ 1 bilhão para a Nestlé, por exemplo, deveria dar o mesmo valor para 100 cooperativas de camponeses que vão pasteurizar o leite, fazer iogurte e vender em sua região. Não precisa mais ter Nestlé. Tem que ter cooperativa de pequenos agricultores. Agora, sem dinheiro público não tem cooperativa que funcione, assim como não tem Nestlè que funcione sem dinheiro do BNDES. Em vez de o BNDES dar R$ 1 bilhão para que a Aracruz saia do prejuízo que ela teve, ele deveria pegar esse dinheiro e emprestar para os camponeses reflorestarem as margens dos rios. Teríamos outra paisagem no país, um reequilíbrio ambiental . Não teria essa loucura do monocultivo do eucalipto que desequilibra toda nossa natureza.

ABr – O senhor falou da necessidade de um programa de construção de casas. Como o senhor avalia o programa Minha Casa, Minha Vida, lançado pelo governo, que visa à construção de 1 milhão de casas populares?
Stedile O programa de habitação é bom. Espero que o governo tenha capacidade de operação para que de fato 1 milhão de casas sejam financiadas. O meu medo é que o governo deixe isso para o mercado. O governo cria as condições, libera recursos e aí diz que o mercado vai construir 1 milhão de casas. Nunca vi construtora ganhar dinheiro fazendo casa para pobre. Será que não seria melhor voltar a estimular as cooperativas, os mutirões que, de qualquer maneira, vão comprar cimento, vidro, luz elétrica. Mas deixar para empresas construir é um perigo. Seria melhor então deixar para uma empresa estatal como o Chávez [Hugo Chávez, presidente da Venezuela] faz.

ABr – E quanto ao PAC? O governo tem enfatizado que o programa vai ajudar a enfrentar os efeitos da crise. O que o senhor acha?
Stedile O PAC é um projeto antigo, de antes da crise e tem o objetivo de financiar hidrelétricas, portos e caminhos para que as multinacionais exportem mais barato. Mas agora, com a crise, é necessário pensar outra matriz industrial para resolver problemas do povo, não da exportação.