quarta-feira, 28 de agosto de 2013

A IMPORTÂNCIA DA IMAGINAÇÃO PÓS-CAPITALISTA. ENTREVISTA COM DAVID HARVEY



Da habitação aos salários, David Harvey diz que examinar as contradições do capitalismo pode apontar o caminho para um mundo alternativo. A reportagem é de Ronan Burtenshaw e Aubrey Robinson, publicada no sítio Red Pepper, 22-08-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Há cinco anos no próximo mês, a Lehman Brothers pediu a maior falência da história dos Estados Unidos. O seu colapso apontou para o início da Grande Recessão – a mais substancial crise histórica mundial do capitalismo desde a Segunda Guerra Mundial. Como devemos entender os fundamentos desse sistema agora em crise? E, à medida que ele trava guerra contra as pessoas que trabalham sob o pretexto da austeridade, como podemos imaginar um mundo para além dele?
Poucos foram tão influentes em responder a essas perguntas quanto o geógrafo marxista David Harvey.
Eis a entrevista.

Você está trabalhando em um novo livro neste momento, The Seventeen Contradictions of Capitalism [As 17 contradições do capitalismo]. Por que o foco nas suas contradições?
A análise do capitalismo sugere que há contradições significativas e fundamentais. Periodicamente, essas contradições saem do controle e geram uma crise. Nós acabamos de passar por uma crise, e eu acho que é importante perguntar quais foram as contradições que nos levaram a isso. Como podemos analisar a crise em termos de contradições? Um dos grandes ditados de Marx era que a crise é sempre o resultado das contradições subjacentes. Portanto, temos que lidar com elas em si mesmas, ao invés de lidar com os seus resultados.

Uma das contradições em que você se foca é entre o uso e o valor de troca de uma mercadoria. Por que essa contradição é tão fundamental para o capitalismo, e por que você usa a habitação para ilustrá-la?
Todas as mercadorias devem ser entendidas como tendo um valor de uso e um valor de troca. Se eu tenho um bife, o valor de uso é que eu posso comê-lo, e o valor de troca é o quanto eu tive que pagar por ele. Mas a habitação é muito interessante, nesse sentido, porque, como um valor de uso, você pode entendê-la como abrigo, privacidade, um mundo de relações afetivas com as pessoas, uma grande lista de coisas para as quais você usa uma casa.
Mas depois há a questão de como você consegue essa casa. Antigamente, as casas eram construídas pelas próprias pessoas, e não havia absolutamente nenhum valor de troca. Depois, a partir do século XVIII, você tem a construção de casas especulativa – os terraços georgianos que eram construídos e vendidos posteriormente. Assim, as casas se tornaram valores de troca para os consumidores na forma de poupança. Se eu comprar uma casa e pagar a hipoteca sobre ela, eu posso acabar como proprietário da casa. Então, eu tenho um bem. Por isso, eu passo a ficar muito preocupado com a natureza do bem. Isso gera políticas interessantes – "não no meu quintal", "eu não quero que pessoas que não se parecem comigo se mudem para o meu lado". Então, você começa a ter a segregação nos mercados da habitação, porque as pessoas querem proteger o valor das suas poupanças.
Assim, cerca de 30 anos atrás, as pessoas começaram a usar a habitação como uma forma de ganho especulativo. Você podia comprar uma casa e 'virá-la' – você compra uma casa por 200 mil libras e depois de um ano você recebe 250 mil libras por ela. Você ganhou 50 mil libras. Então, porque não fazê-lo? O valor de troca assume o comando. E assim você tem esse boom especulativo. No ano 2000, depois do colapso dos mercados acionários globais, o capital excedente começou a fluir para a habitação. É um tipo interessante de mercado. Se eu comprar uma casa, então os preços da habitação sobem, e você diz: "Os preços da habitação estão subindo, eu deveria comprar uma casa". E, então, aparecem outras pessoas. Você tem uma bolha imobiliária. As pessoas são atraídas, e ela explode. Então, de repente, muitas pessoas descobrem que não podem mais ter o valor de uso do imóvel, porque o sistema de valor de troca o destruiu.
Isso levanta a questão: é uma boa ideia permitir que o valor de uso na habitação, que é crucial para as pessoas, seja definido por um sistema de valor de troca louco? Esse não é apenas um problema com a habitação, mas também com coisas como a educação e a saúde. Em muitos deles, nós ativamos a dinâmica do valor de troca na teoria de que ele vai fornecer o valor de uso, mas, frequentemente, o que ele faz é estragar os valores de uso, e as pessoas acabam não recebendo bons cuidados de saúde, educação ou habitação. É por isso que eu acho muito importante olhar para a distinção entre o valor de uso e o valor de troca.

Outra contradição que você descreve envolve um processo de mudança ao longo do tempo entre as ênfases do lado da oferta sobre a produção e as ênfases do lado da demanda sobre o consumo no capitalismo. Você pode falar sobre como isso se manifestou no século XX e por que isso é tão importante?
Uma das grandes questões é manter uma demanda de mercado adequada para que você possa absorver o que quer que o capital esteja produzindo. A outra é criar as condições sob as quais o capital pode produzir de forma lucrativa. Essas condições de produção rentável geralmente significam suprimir trabalho. Na medida em que você se envolve na repressão salarial – pagando salários cada vez mais baixos –, a taxa de lucro sobe.
Assim, do lado da produção, você quer esmagar o trabalho o máximo que você puder. Isso lhe dá lucros elevados. Mas então surge a pergunta: quem vai comprar o produto? Se o trabalho for espremido, onde fica o seu mercado? Se você esmaga o trabalho demais, você acaba em uma crise, porque não há demanda suficiente no mercado para absorver o produto.
Foi interpretado amplamente depois de um tempo que o problema da crise da década de 1930 foi a falta de demanda. Houve, portanto, uma mudança para investimentos liderados pelo Estado na construção de novas estradas, o WPA [a agência Works Progress Administration de obras públicas sob o New Deal] e tudo isso. Eles disseram: "Vamos revitalizar a economia pela demanda financiada pela dívida" e, ao fazer isso, voltaram-se para a teoria keynesiana.
Então, você sai dos anos 1930 com uma capacidade muito forte para gerir a demanda com muito envolvimento do Estado na economia. Como resultado disso, você tem taxas de crescimento muito elevadas, mas as altas taxas de crescimento são acompanhadas por um empoderamento da classe trabalhadora com salários em ascensão e sindicatos mais fortes. Sindicatos fortes e altos salários significam que a taxa de lucro começa a cair. O capital está em crise porque não está reprimindo o trabalho o suficiente, e por isso que tem a virada.
Nos anos 1970, eles se voltaram para Milton Friedman e para a Escola de Chicago, que se tornou dominante na teoria econômica, e as pessoas começaram a prestar atenção no lado da oferta – particularmente os salários. Você tem a repressão dos salários, que começa nos anos 1970. Ronald Reagan ataca os controladores do tráfego aéreo, Margaret Thatcher vai atrás dos mineiros, Pinochet mata as pessoas de esquerda. Você tem um ataque contra o trabalho – o que aumenta a taxa de lucro.
Quando você chega aos anos 1980, a taxa de lucro tem um salto, porque os salários estão sendo reprimidos, e o capital está indo bem. Mas aí vem o problema de onde você vai vender as coisas. Nos anos 1990, isso realmente coberto pela economia da dívida. Você começa a incentivar as pessoas a pedir muitos empréstimos – você começa a criar uma economia do cartão de crédito e uma economia financiada em altas hipotecas na habitação. Isso cobria o fato de que não havia demanda real lá fora.
Mas, no fim, isso explode em 2007-2008. O capital tem esta pergunta: "Você trabalha do lado da oferta ou do lado da demanda?". A minha visão de um mundo anticapitalista é que você deve unificar isso. Devemos voltar ao valor de uso. Que valores de uso as pessoas precisam e como podemos organizar a produção de forma a que ela corresponda a eles?

Parece que estamos em uma crise do lado da oferta, e mesmo assim a austeridade é uma tentativa de encontrar uma solução do lado da oferta. Como podemos conciliar isso?
Você tem que diferenciar entre os interesses do capitalismo como um todo e o que é especificamente de interesse da classe capitalista, ou de uma parte dela. Durante essa crise, grosso modo, a classe capitalista se saiu muito bem. Alguns deles se queimaram, mas, na maior parte, eles se saíram extremamente bem. De acordo com estudos recentes de países da OCDE, a desigualdade social aumentou muito significativamente desde o início da crise, o que significa que os benefícios da crise foram fluindo para as classes mais altas.
Em outras palavras, eles não querem sair da crise porque estão se saindo muito bem com isso. A população como um todo está sofrendo, o capitalismo como um todo não está saudável, mas a classe capitalista – particularmente uma oligarquia dentro dela – tem se saído extremamente bem. Há muitas situações em que os capitalistas individuais que operam em seus próprios interesses de classe realmente podem fazer coisas que são muito prejudiciais para o sistema capitalista como um todo. Eu acho que estamos nesse tipo de situação agora.

Você já disse muitas vezes recentemente que uma das coisas que deveríamos fazer na esquerda é envolver a nossa imaginação pós-capitalista, começando por fazer a pergunta sobre como seria um mundo pós-capitalista. Por que isso é tão importante? E, na sua opinião, como seria um mundo pós-capitalista?
Isso é importante porque tem sido martelado nas nossas cabeças por um considerável período de tempo que não há alternativa. Uma das primeiras coisas que temos que fazer é pensar na alternativa a fim de avançar rumo à sua criação. A esquerda se tornou tão cúmplice com o neoliberalismo que você realmente não pode distinguir os seus partidos políticos dos da direita, exceto em questões nacionais ou sociais. Na economia política, não há muita diferença.
Temos que encontrar uma economia política alternativa para a forma como o capitalismo funciona, e existem alguns princípios. É por isso que as contradições são interessantes. Você olha para cada um delas, como, por exemplo, a contradição entre o valor de uso e de troca, e diz: "O mundo alternativo seria aquele em que nós definimos os valores de uso". Então, nós nos concentramos nesses valores de uso e tentamos diminuir o papel dos valores de troca. Ou na questão monetária – precisamos de dinheiro para circular mercadorias, não há dúvida sobre isso. Mas o problema com o dinheiro é que ele pode ser apropriado por pessoas privadas. Ele se torna uma forma de poder pessoal e, depois, um desejo fetichista. As pessoas mobilizam as suas vidas ao redor da busca desse dinheiro, mesmo quando ninguém sabe que ele existe.
Então, nós temos que mudar o sistema monetário – seja cobrando imposto de quaisquer excedentes que as pessoas estejam começando a obter, seja chegando a um sistema monetário que se dissolva e não possa ser armazenado, como as milhas aéreas. Mas, a fim de fazer isso, você também tem que superar a dicotomia entre propriedade privada e Estado e chegar a um regime de propriedade comum. E, em um certo ponto, você precisa gerar uma renda básica para as pessoas, porque, se você tem uma forma de dinheiro que seja antipoupança, então você precisa dar garantias às pessoas.
Você precisa dizer: "Você não precisa economizar para um dia ruim, porque você sempre vai receber essa renda básica, não importa o quê". Você tem que dar às pessoas essa segurança, em vez das economias privadas e pessoais. Alterando cada uma dessas coisas contraditórias, você chega a um tipo diferente de sociedade, que é muito mais racional do que a que temos. O que está acontecendo exatamente agora é que nós produzimos coisas e depois tentamos persuadir os consumidores a consumir tudo o que produzimos, independentemente se eles realmente querem ou precisam disso. Enquanto que deveríamos descobrir quais são as vontades e os desejos básicos das pessoas e, então, mobilizar o sistema de produção para produzir isso.
Ao eliminar a dinâmica do valor de troca, você pode reorganizar o sistema inteiro em um caminho diferente. Podemos imaginar em que direção se moveria uma alternativa socialista, enquanto ela irrompe a partir dessa forma dominante de acumulação de capital que gere tudo hoje.



quarta-feira, 7 de agosto de 2013

O MST, A REFORMA AGRÁRIA E O NEODESENVOLVIMENTISMO



Escrito por Maria Orlanda Pinassi e Frederico Daia Firmiano

Enquanto política pública, a Reforma Agrária no Brasil teve caráter essencialmente antipopular. Nos anos de chumbo, funcionou como contrarreforma para combater a aquisição espontânea das terras virgens da Amazônia pelos espoliados de outras regiões do país (1). De 1990 para cá, a Reforma Agrária, sob controle do Estado, passou a ser orientada pelo Banco Mundial e acaba cumprindo a mesma função social. Através da intervenção do governo federal, foi implantado um programa conhecido como “Novo Mundo Rural”, que estimulava a compra de terras para fins de Reforma Agrária, sob o argumento de que, desse modo, se agilizaria a desapropriação de áreas sob conflito e se contemplaria, com alguns investimentos, a formação de um novo conceito de “agricultura familiar”. O objetivo do programa era aproximar-se daqueles pequenos produtores familiares de regiões que apresentavam condições favoráveis para sua integração em um mercado já dominado pelo capital transnacional, fundamentalmente, como elo das cadeias produtivas do agronegócio, seja produzindo matéria-prima para as agroindústrias, seja produzindo alimentos para o mercado interno. Mas a intenção real por detrás disso tudo era transformá-los em trabalhadores flexíveis.

A reforma agrária dos governos petistas

Lula da Silva e Dilma Rousseff, por seu turno, conduziram, sob o neodesenvolvimentismo, um ciclo de expansão do capital apoiado pelo padrão exportador de especialização produtiva (2), que elevou a monocultura do agronegócio à máxima potência – ao lado da mineração e de outras formas de “produção destrutiva”, que movimentam o setor energético e da construção civil, responsáveis pela formação da infraestrutura necessária para o desenvolvimento destes ramos da economia. Através dos vultosos recursos públicos destinados ao capital privado - oriundos, principalmente, do Fundo de Amparo ao Trabalhador e repassados pelo BNDES -, o Estado passou a compô-lo organicamente, convertendo as empresas privadas desses setores em verdadeirosplayers globais.
Ao mesmo tempo, intensificou os investimentos na nova “agricultura familiar”, através do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar-PRONAF, especialmente entre aqueles considerados mais “dinâmicos” e com capacidade de se integrar ao mercado. Incluem-se aí alguns assentamentos rurais, sobretudo nas regiões Sul e Sudeste, que, juntas, não somam 20% do total de assentamentos do país, dando forma e colorido ao “novo mundo rural” que Fernando Henrique Cardoso apenas desenhou.
Os governos petistas não apenas reduziram sobremaneira os investimentos na criação de novos assentamentos - cujo orçamento, em 2010, apresentou um passivo de R$ 800 milhões para obtenção de terras (IPEA, 2012) -, como não fizeram qualquer esforço para reverter o quadro de abandono da maior parte destas áreas, sem infraestrutura básica mínima. Conforme os dados do Sistema de Informações de Projetos de Reforma Agrária-SIPRA e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária-INCRA, elaborados pelo IPEA, dos 8.759 assentamentos rurais formados entre 1900 e 2011, 52,6% estão em fase inicial de execução. Se somados aos 29,5% dos assentamentos em fase de execução, temos 85,7% dos assentamentos geridos pelo INCRA sem infraestrutura produtiva e social, ou seja, mais de 7.500 assentamentos em situação de precariedade (IPEA, 2012, p. 268), que obriga os assentados a se submeterem a distintas formas de proletarização.
Além disso, no último ano, voltou à cena o Programa de Emancipação dos assentamentos que, em 2000, foi elaborado como política do governo de Fernando Henrique Cardoso e financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento-BID. Esta medida, prevista pelo Estatuto da Terra (1964), visava dar “autonomia” aos assentados rurais da Reforma Agrária, por meio da concessão do domínio da terra para as áreas já consolidadas, criadas há mais de 10 anos. Apesar de realizar algumas experiências, o programa não teve fôlego. Agora, segundo relatos de assentados em todo o país, os assentamentos com mais de 10 anos estão recebendo boletos bancários para pagarem pela terra e pelas benfeitorias feitas pelo Estado para se “emanciparem”, compulsoriamente. Ao lado dos já consolidados e “emancipados”, os demais assentamentos, antes mesmo de possuírem as condições estruturais mínimas necessárias para competir com os demais “agricultores familiares”, adentrarão, em condições obviamente inferiorizadas, a acirradíssima disputa por espaços no mercado agropecuário, hoje ultramonopolizado pelo capital transnacional.

A reestruturação do INCRA: fragmentação na pauta e desfiguração do assentado

A Reforma Agrária, institucional e empreendedorista, funciona como o mais profundo golpe que se poderia dar sobre a Reforma Agrária popular, um golpe muito mais poderoso do que aquele encetado pela ditadura. Veja-se, por exemplo, a reestruturação atual pela qual passa o INCRA, ou “Novo INCRA”, como vem sendo chamada a “modernização administrativa” do setor, que irá descentralizar as atividades relativas à reforma agrária deslocando-as para outros órgãos federais e prefeituras. Os investimentos na melhoria de vias de acesso ao mercado pelos assentados para o escoamento da produção passará a ser de responsabilidade dos municípios, que deverão receber recursos do governo federal por meio do PAC-Equipamentos. A construção de casas nos lotes se dará por meio do programa Minha Casa, Minha Vida, a cargo do Ministério das Cidades, assim como o fornecimento de luz, que virá por meio do programa Luz Para Todos, do Ministério das Minas e Energia; e o fornecimento de água para as famílias do semiárido, que deverá ser de responsabilidade do Ministério da Integração Nacional. De modo geral, essa reestruturação política do órgão federal implicará diretamente sobre as formas de organização de luta dos movimentos sociais do campo, uma vez que fragmenta sua pauta de reivindicações e sua luta sindical.
As medidas dão o tiro de misericórdia que faltava à luta pela Reforma Agrária, um passo decisivo na desfiguração total do “assentado” que lutou pela terra para fugir da condição proletária e, agora, se vê às voltas de um novo processo de proletarização, lançando seus instrumentos de organização de luta a um desafio igualmente novo, sob o risco de se tornarem anacrônicos.
Diante do quadro, fazem coro os atuais detratores da Reforma Agrária, enquanto móvel de luta popular. Figuram aí desde os históricos representantes da direita ruralista do país até os apologetas do neodesenvolvimentismo, muitos dos quais, não surpreendentemente, têm suas origens ideológicas no marxismo evolucionista. Todos acabam se equivalendo no encerramento institucional e mercadológico da reforma agrária. Condenam-se, por isso, as ocupações por violarem a propriedade produtiva, assim como se julga anacrônica e desnecessária a luta pela terra do MST, um movimento que teria cumprido seu ciclo histórico, devendo então recolher-se à função de gerente/empreendedor dos negócios relativos aos assentamentos existentes.

MST,  conquistas e contradições internas

Em três décadas de atuação intensa, o MST acumula conquistas memoráveis, cujas positividades legadas às novas gerações de lutadores sociais do Brasil e do mundo são inúmeras e inquestionáveis. Dentre elas, destacam-se, primeiramente, a determinação de uma militância que ousou organizar-se, ainda nos anos finais da ditadura militar, para combater o latifúndio improdutivo, enfrentar a violência desmedida que os latifundiários, pelo país afora, herdaram do persistente passado colonial e ainda as consequências sociais nefastas da chama “Revolução Verde”. Ancorado na ideologia, a um só tempo, desenvolvimentista e socialista, o MST, juntamente com CPT, PT e CUT, se dispunha a realizar as “tarefas em atraso”. Em três décadas de existência, rompeu o isolamento moral e real que a ordem impôs às suas difíceis causas e ganhou expressividade nacional. A duras penas, fez-se representar em cada um dos 23 estados brasileiros e no Distrito Federal, procurando reorganizar, em novas bases, a vida de milhares de famílias de trabalhadores rurais e urbanos, primeiro na disputa árdua pela terra, depois no processo de sua ocupação produtiva e reprodutiva. Num cenário político e econômico particularmente turbulento, o MST consolidou-se no maior e mais combativo movimento social do país e, merecidamente, as ações que realizou despertaram, para além do ódio da burguesia latifundiária, o reconhecimento das mais respeitáveis organizações sociais internacionais.
Outro resultado, menos óbvio, mas tão ou mais importante do que a conquista da terra, está nos inúmeros instrumentos de formação educacional e política (3) que o MST criou a fim de possibilitar que toda sua base, sem exceção, sem discriminação racial, geracional, de gênero, saísse da ignorância e recobrasse a dignidade roubada pelo mundo do capital.
Mas, nesse mesmo período, o MST vem renovando, em escala ampliada, a estrutura de impenitentes contradições internas, pois, como vimos, sua dinâmica reflete, para o bem e para o mal, uma complexidade na qual ancora expectativas e objetivos sociais contraditórios. A própria processualidade interna do MST vem sofrendo mudanças significativas, em função de suas relações com o Estado e com o capital, de sua difusa objetividade desenvolvimentista. A pressão que vem sofrendo para “apresentar resultados práticos” afasta o movimento do vislumbre socialista e o conduz para a reprodução de um pragmatismo que tende a se tornar hierárquico e estrutural. O mais grave é gerar, no seu interior, a semente da luta de classes, já que assentados e acampados, assim como assentados prósperos e precários, não possuem as mesmas expectativas, nem a mesma pauta de atuação cotidiana.
Uma amostra desse processo pode ser comprovada nos números que seguem. Por exemplo, durante a década de 1990, as ocupações de terra aumentaram progressivamente, saltando da casa de 50 ocupações, em 1990, para 856 no final da década, com destaque para os anos de 1997, 1998 e 1999 – triênio pós os massacres de Corumbiara, em 1995, e Carajás, em 1996, e após a realização da marcha do MST realizada em 1997, que reuniu mais de 1 milhão de trabalhadores e trabalhadoras.
Entre 2003 e 2004, foram realizadas 540 e 662 ocupações de terras, respectivamente, mas, desde então, este número só fez cair, ao ponto de, em 2010, terem sido realizadas apenas 184 ocupações de terras. O número de famílias que participou das ocupações tem desempenho similar. Ou seja, de uma participação crescente que, em 1999, alcança o número de 113.909 famílias em ocupações de terras, no ano de 2010, registram-se tão somente 16.936 famílias em ações similares.

Esgotamento do papel emancipatório e condições para sua retomada

Diante do quadro, arriscamos afirmar que este movimento se aproximou da fundação de uma sociabilidade alternativa, de transição, e da formação de um novo sujeito mais consciente do seu papel protagonista na história do país. Aproximou-se, mas não conferiu o resultado revolucionário deste direcionamento.
Observamos que, no plano político-institucional, com o agravante das afinidades ideológicas que preserva com o PT e a CUT, o MST esgotou definitivamente o seu papel emancipatório. Mas isso não quer dizer que não possa reassumi-lo. Para tanto, é preciso reconhecer a necessidade de se retomar e mesmo recriar formas mais ofensivas de luta, algo que já ocorre, de modo pontual, por iniciativa da sua militância mais combativa. Referimo-nos à luta das mulheres, especialmente, às ações articuladas e executadas por elas, em todo o Brasil, a partir do oito de março de 2006. Referimo-nos às lutas de ocupação que não têm necessariamente caráter reivindicativo, mas o objetivo de enfrentar e denunciar o aspecto essencialmente destrutivo do capital representado por transnacionais gigantescas, como a Vale, Aracruz, Monsanto, Stora Enzo, Cutrale etc. Infelizmente, tais ações vêm sendo muito criticadas e constrangidas por um pragmatismo legalista no interior do próprio movimento.
Da mesma forma, é necessário que o MST retome o princípio da autonomia política, desvinculando o que seriam os seus próprios objetivos dos objetivos neodesenvolvimentistas do petismo ou de qualquer outra forma política de reprodução do capital. Tal passo é fundamental ainda para que o MST, enquanto movimento de organização de massas, consiga enfrentar a realidade precária de sua base social flexível, proletarizada e precarizada, em muitos sentidos, porque não consegue reproduzir-se como camponês, ainda que parcialmente livre, em seus lotes. Isso não pode ser considerado um auto-fracasso, de natureza política, mas o resultado de uma grande ofensiva econômica do capital neoliberal no campo, que submete todas as demais formas de produção e de relação social à sua própria lógica.
Nestas condições, o movimento só tem uma alternativa se tiver a efetiva pretensão de se manter no campo da emancipação socialista, uma alternativa societária radical: retomar para si a luta pela terra contra (e não com) o capital, potencializar a consciência de classe dos seus próprios proletários, jamais negar, como se fosse um simples desvio de percurso, as evidências dessa condição explosiva de sua base social.

Maria Orlanda Pinassi é professora da FCL/UNESP de Araraquara; Frederico Daia Firmiano é professor da Fundação de Ensino Superior de Passos/Universidade do Estado de Minas Gerais-FESP/UEMG. Este texto contou com a contribuição de Silvia Beatriz Adoue.

(1) Ver a respeito Octávio Ianni. Colonização e contra-reforma agrária na Amazônia. Petrópolis; Editora Vozes, 1979.
(2) Jaime Osorio. América Latina: o novo padrão exportador de especialização produtiva – estudo de cinco economias da região. In.: Carla Ferreira; Jaime Osorio; Mathias Luce (Orgs.). Padrão de reprodução do capital: contribuições da teoria marxista da dependência. São Paulo. – Boitempo, 2012.

(3) Cerca de 350 mil integrantes do MST já frequentaram cursos de alfabetização, ensino fundamental, médio, superior e cursos técnicos. Por ano, há aproximadamente 28 mil educandos e 2 mil professores envolvidos em processos de educação. Destacamos o papel das escolas itinerantes, de formação técnica – com destaque para aquelas de ensino agroecológico – , das parcerias com universidades públicas (são 5 mil educandos nestas instituições) e para a Escola Nacional Florestan Fernandes que, desde 2005, vem recebendo militantes do próprio MST e de outros movimentos sociais do Brasil, da América Latina, da África, do mundo inteiro.