domingo, 8 de setembro de 2013

O DIREITO À CIDADE NAS MANIFESTAÇÕES URBANAS: ENTREVISTA INÉDITA COM DAVID HARVEY



O geógrafo britânico David Harvey é um dos pensadores mais influentes da atualidade. Unindo geografia urbana, marxismo e filosofia social na compreensão das contradições do mundo contemporâneo, sua obra é um forte eixo de renovação da tradição crítica e ganha especial relevância num contexto de explosão de movimentos contestatórios urbanos no Brasil e no mundo.
Nesta entrevista, traduzida em primeira mão pelo Blog da Boitempo, Harvey discute as manifestações que tomaram as ruas do Brasil a partir de junho e os desafios para a organização de mobilizações urbanas de amplo escopo, assim como o lugar das novas tecnologias e dos movimentos sociais. À luz do urbanismo privatizado e securitário de Londres, o geógrafo comenta a importância do debate sobre o direito à cidade e os desafios de se pensar uma cidade anti-capitalista. Traçando paralelos com revoltas urbanas ao redor do globo, da China a Istambul, ele esboça, inclusive, acréscimos a sua obra mais recente, que dá nome e inspira o livro de intervenção Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil, que a Boitempo acaba de lançar analisando as causas e consequências das ditas “Jornadas de Junho”, e com o qual Harvey contribui como autor.

Em 1968, Henri Lefebvre introduzia o conceito do “direito à cidade”. Ele advogava o “resgate do homem como o principal protagonista da cidade que construiu (…) o ponto de encontro para a vida coletiva.” O senhor tem se referido a esse direito coletivo – de refazermos a nós mesmos e a nossas cidades – como “um dos mais preciosos, porém mais negligenciados de nossos direitos humanos.” De que formas o senhor pensa que temos negligenciado esse direito humano nos últimos anos?
Se a questão de que tipo de cidade é construída depende criticamente do tipo de pessoa que queremos ser, então a ampla falência em se discutir abertamente essa relação significa que abandonamos o remodelamento das pessoas e de suas paixões aos requisitos da acumulação do capital. Acredito que estava bem claro a seus planejadores e legisladores que a suburbanização dos Estados Unidos após 1945 não apenas ajudaria resgatar os EUA do prospecto de um retorno às condições de depressão dos anos 1930 por meio de uma ampla expansão da demanda efetiva, mas que serviria para criar um mundo social e político desprovido de consciência revolucionária ou de sentimento anticapitalista. Não é de se espantar que o movimento feminista da década de 1960 via o subúrbio como seu inimigo e que o estilo de vida suburbano tornou-se associado a um determinado tipo de subjetividade política socialmente preconceituosa, excludente e, em último caso, racista.

Londres é elogiada como uma cidade multicultural, e talvez um componente significativo do direito à cidade seja o direito de coexistir. Ao reimaginar e refazer cidades, como podemos garantir que esse processo não se dê de forma a privilegiar ou discriminar diferentes interesses ou comunidades que nela existem?
Não há nada que garanta isso além de movimentos sociais, engajamento político ativo e a disposição de lutar por seu lugar. Conflito na e pela cidade é saudável, e não uma patologia que intervenções estatais devam controlar e suprimir.

Vivemos em uma era digital. Em muitos casos, há quem desenvolva relações mais íntimas com pessoas a milhares de quilômetros de distância do que com seus próprios vizinhos de rua. Se é justo dizer que as cidades têm tendido, historicamente, a se desenvolver em torno de um espaço físico compartilhado, de que forma as tecnologias comunicativas que minam a preeminência de comunidades físicas/espaciais afetam a futura configuração da cidade?
As novas tecnologias são uma faca de dois gumes. Por um lado, funcionam como “armas de destruição em massa” levando as pessoas a acreditarem que a política só seria possível em algum mundo virtual. Por outro, podem ser usadas para inspirar e coordenar ação política nas ruas, nos bairros e por toda a cidade. Nada substitui corpos na rua mobilizados para ação política como vimos no Cairo, em Istambul, Atenas, São Paulo etc. Quando trabalham junto com política de rua ativa, as novas tecnologias podem ser um recurso fabuloso.

Em “Whose Rebel City?” [Cidade rebelde de quem?], Neil Grey sugere que em seu livro mais recente, Rebel Cities, a análise do senhor negligenciava a tradição [marxista] autonomista que surgiu durante as lutas urbanas das décadas de 1960 e 1970 na Itália – caracterizadas pelo slogan “Tomar a cidade”; por debates feministas em torno da reprodução social; pela ideia da “fábrica social” e o dito “ativismo comunitário territorial” –, focando sua teoria na absorção do capital e do trabalho excedente via urbanização. Como o senhor responde a essa crítica? Concorda que essas práticas políticas podem servir de modelos delineadores de como habitantes poderiam reorganizar suas cidades?
Acho essa crítica estranha. De fato, o capítulo 2 de Rebel cities trata da criação da urbanização por meio de processos de acumulação de capital, mas o capítulo 5 se dedica a movimentos sociais de classe nas cidades. Não pude cobrir todos esses movimentos, é claro, e então existem tantos, como os associados ao movimento autonomista na Itália que são, certamente, dignos de inclusão. Mas cheguei a me debruçar sobre a forma pela qual as casas das pessoas no começo do século na Itália complementavam os movimentos de conselho fabril e, é claro, se inspiraram muito no caso de El Alto assim como na Comuna de Paris e em outras insurgências urbanas, na tentativa de teorizar de que formas poderiam ser compreendidos no quadro da luta de classes. Então dizer que eu só me preocupei com a absorção do capital excedente é um tanto esquisito e sugere que Neil Grey ou não chegou ao final do livro ou foi desdenhoso porque não tratei de seu movimento social urbano favorito em particular.
Gostaria, no entanto, de ter citado o comentário de Gramsci sobre a importância de suplementar os conselhos fabris com comitês de bairro:
“No comitê de bairro, deveria tentar-se incorporar delegados também de outras categorias de trabalhadores que habitam o bairro: garçons, motoristas, condutores de bonde, ferroviários, lixeiros, empregados domésticos, comerciários etc. O comitê de bairro deveria ser a emanação de toda a classe trabalhadora que habita o bairro, emanação legítima e influente, capaz de fazer respeitar uma disciplina, investida de poder, espontaneamente delegado, bem como capaz de ordenar o fechamento imediato e integral de cada trabalho em todo o bairro.” (“Democrazia operaia“, L’Ordine Nuovo, 21 de junho, 1919; versão em português)

Na esteira da rápida urbanização e pleno inflacionamento da bolha de propriedade na China, o senhor falou de uma crescente luta de classes de base da qual quem mora no Ocidente simplesmente não ouve falar. Se olhássemos com mais cuidado à situação na China, o que poderíamos aprender?
Há muito mais saindo sobre a China agora e há um crescente reconhecimento dos perigos, tanto das gigantescas bolhas de ativos urbanos (particularmente na habitação), quanto de um problema crônico de superprodução de urbanização em resposta à queda de mercados de exportação em 2008. Existe agora muito nervosismo no que diz respeito à superacumulação urbana. Teoricamente, compreendo o que está acontecendo, mas não sei dizer quando o processo será interrompido. E sabemos que existe muita inquietação urbana e industrial na China, mas é muito difícil julgar o quanto e com que significância.

O senhor coloca seu conceito de “acumulação por desapossamento” no coração da urbanização sob regime capitalista. Atualmente, trechos significativos de Londres estão sendo transformados sob o pretexto de “regeneração”, processo que vem acompanhado de cortes nos benefícios habitacionais, e o novo bedroom tax*. Um exemplo entre muitos seria o das centenas de moradores do conjunto habitacional de Heygate, no centro da cidade, que perderam suas casas para que incorporadores imobiliários pudessem substituir habitação social por propriedades “a preços acessíveis”. Movimentos locais emergiram em resistência a esses despejos, mas enfrentam continuamente constrangimentos políticos e legais. Quais são seus pensamentos sobre a importância e as potenciais armadilhas de um movimento unificado em toda cidade – ou de escopo ainda maior?
Acho que é vital unificar, o quanto for possível, as lutas contra o desapossamento na cidade toda. Mas fazer isso requer uma imagem precisa das formas de desapossamento e de suas raízes. Por exemplo, existe atualmente uma necessidade de montar um quadro das práticas predatórias dos incorporadores imobiliários e de seus financiadores em nível metropolitano, e começar uma luta coletiva e de toda a cidade para refrear e controlar suas práticas. Recentemente vimos uma grande inquietação urbana no Brasil tratando principalmente de custos com o transporte, mas também (e isso é notável, dado que se trata do Brasil) contra a construção de estádios para a Copa do Mundo e o deslocamento e gasto de recursos públicos envolvidos. Então, lutas em nível metropolitano e trans-metropolitano não são impossíveis. O perigo, como sempre, é que as lutas possam esmaecer na medida em que as pessoas se cansam da luta. A única resposta é manter as lutas acontecendo e construir organizações que têm a capacidade de fazer isso (o MST no Brasil é um bom exemplo disso, apesar de não ser uma luta distintamente urbana).

Existe uma distinta carência de espaços de propriedade comum em Londres. Boa parte da cidade é privatizada e atende ao panóptico securitário da vigilância, e há uma escassez de espaços públicos livres de interferências do mercado. É importante buscar e construir espaços comunitários para permitir àqueles que resistem às depredações do capitalismo terem espaço não somente para trabalho, mas para explorar novas vias de interação criativa também?
A questão de liberar espaços controlados pelo Estado para fazer deles um bem comum controlado pelas pessoas é, na minha opinião, crucial. A reversão da privatização dos espaços públicos é também vital e eu esperaria ver muito mais movimentos dirigidos a esses fins.

O senhor tem falado sobre a possibilidade de uma “liga de cidades socialistas” como uma maneira poderosa de mudar a ordem do mundo. Será que poderia discorrer um pouco sobre o que quer dizer, e como elas poderiam funcionar?
É uma ideia um tanto distante à primeira vista mas existe muita aferição ocorrendo entre cidades, e em determinadas questões, como o controle de armas nos EUA, existem ligações cooperativas entre administrações urbanas que podem ter resultados progressivos. Não vejo por que tais práticas não possam ser desenvolvidas em resistências urbanas organizadas contra práticas neoliberais. Penso que uma resposta coordenada atravessando o escopo da administração urbana no Reino Unido para a chamada bedroom tax seria uma possibilidade que ecoaria a maneira pela qual a luta sobre a poll tax* se desenrolou anteriormente. Temos de fato feito coisas desse tipo, mas deixamos de analisá-las completamente e de apreciarmos suas possibilidades posteriormente.

A inquietação civil está se tornando uma característica recorrente da vida urbana em Londres, assim como em outras cidades ao redor do mundo, dentre elas Atenas, Madri, Cidade do México, Buenos Aires, Santiago, Bogotá, Rio de Janeiro e, mais recentemente, Estocolmo. Os motins (não apenas protestos e movimentos sociais organizados) estariam se tornarndo parte da caixa de ferramentas para reivindicar o direito à cidade? O que aqueles aqui [em Londres], na capital financeira do mundo, podem aprender dessas lutas em outras cidades?
Já que me convida a comentar essas questões, temos Istambul. Quando você olha para a situação global, sente que há uma situação vulcânica borbulhando debaixo da superfície da sociedade, e nunca sabe quando e onde ele explodirá em seguida (quem diria Istambul, apesar de estar claro para mim em minha visita anterior que havia lá muito descontentamento). Penso que temos de nos preparar para tais erupções e construir, tanto quanto seja possível, infraestruturas e formas organizacionais capazes de apoiar e desenvolvê-las em movimentos sustentáveis.

Mesmo reconhecendo a inerente legitimação da propriedade privada no interior do conceito, quais são suas visões sobre a eficácia da implementação de uma taxa sobre o valor da terra** no Reino Unido? Você acha que ela poderia atingir algum dos efeitos equalizadores advogados por seus proponentes?
Acredito que uma taxa sobre o valor da terra poderia ajudar, mas, em último caso, não endereça o problema das vastas extrações de riqueza por uma classe de rentistas que se tornou tão poderosa nos anos recentes, particularmente em grandes cidades como Londres e Nova Iorque, pois isto é uma das principais formas de espoliação que precisa ser confrontada.***

Bedroom tax é o apelido dado a uma das mais discutidas mudanças nas políticas públicas habitacionais impostas pelo pacote de reformas no bem-estar redigido no final de 2012, sob o Welfare Reform Act. Traduzido literalmente como “taxa do quarto”, trata-se de uma “penalidade de sub-ocupação” que reduz os benefícios dos beneficiários que possuiriam espaço demais. Em vigor desde abril de 2013, a medida é frequentemente comparada ao poll tax, ou imposto comunitário, imposto por Margaret Thatcher no final de seu governo. A medida, que substituía o imposto sobre o valor dos imóveis por uma taxa única a ser cobrada por habitante (“por cabeça”), foi fortemente resistida pela população e é um dos principais fatores atribuídos à queda da Primeira-Ministra neoliberal. [Nota do Editor]

** No Brasil, em especial em São Paulo, há um debate semelhante em torno da aplicabilidade dos instrumentos que visam a promoção da função social da propriedade, previstos pelo Estatuto da Cidade. O recente manifesto Urbanistas pela justiça social destaca o IPTU progressivo no tempo, o PEUC, o direito de preempção, e a desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública. [N.E.]

Publicado em inglês no The Occupied Times of London, de agosto de 2013.
A tradução é de Artur Renzo, para o Blog da Boitempo.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

A IMPORTÂNCIA DA IMAGINAÇÃO PÓS-CAPITALISTA. ENTREVISTA COM DAVID HARVEY



Da habitação aos salários, David Harvey diz que examinar as contradições do capitalismo pode apontar o caminho para um mundo alternativo. A reportagem é de Ronan Burtenshaw e Aubrey Robinson, publicada no sítio Red Pepper, 22-08-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Há cinco anos no próximo mês, a Lehman Brothers pediu a maior falência da história dos Estados Unidos. O seu colapso apontou para o início da Grande Recessão – a mais substancial crise histórica mundial do capitalismo desde a Segunda Guerra Mundial. Como devemos entender os fundamentos desse sistema agora em crise? E, à medida que ele trava guerra contra as pessoas que trabalham sob o pretexto da austeridade, como podemos imaginar um mundo para além dele?
Poucos foram tão influentes em responder a essas perguntas quanto o geógrafo marxista David Harvey.
Eis a entrevista.

Você está trabalhando em um novo livro neste momento, The Seventeen Contradictions of Capitalism [As 17 contradições do capitalismo]. Por que o foco nas suas contradições?
A análise do capitalismo sugere que há contradições significativas e fundamentais. Periodicamente, essas contradições saem do controle e geram uma crise. Nós acabamos de passar por uma crise, e eu acho que é importante perguntar quais foram as contradições que nos levaram a isso. Como podemos analisar a crise em termos de contradições? Um dos grandes ditados de Marx era que a crise é sempre o resultado das contradições subjacentes. Portanto, temos que lidar com elas em si mesmas, ao invés de lidar com os seus resultados.

Uma das contradições em que você se foca é entre o uso e o valor de troca de uma mercadoria. Por que essa contradição é tão fundamental para o capitalismo, e por que você usa a habitação para ilustrá-la?
Todas as mercadorias devem ser entendidas como tendo um valor de uso e um valor de troca. Se eu tenho um bife, o valor de uso é que eu posso comê-lo, e o valor de troca é o quanto eu tive que pagar por ele. Mas a habitação é muito interessante, nesse sentido, porque, como um valor de uso, você pode entendê-la como abrigo, privacidade, um mundo de relações afetivas com as pessoas, uma grande lista de coisas para as quais você usa uma casa.
Mas depois há a questão de como você consegue essa casa. Antigamente, as casas eram construídas pelas próprias pessoas, e não havia absolutamente nenhum valor de troca. Depois, a partir do século XVIII, você tem a construção de casas especulativa – os terraços georgianos que eram construídos e vendidos posteriormente. Assim, as casas se tornaram valores de troca para os consumidores na forma de poupança. Se eu comprar uma casa e pagar a hipoteca sobre ela, eu posso acabar como proprietário da casa. Então, eu tenho um bem. Por isso, eu passo a ficar muito preocupado com a natureza do bem. Isso gera políticas interessantes – "não no meu quintal", "eu não quero que pessoas que não se parecem comigo se mudem para o meu lado". Então, você começa a ter a segregação nos mercados da habitação, porque as pessoas querem proteger o valor das suas poupanças.
Assim, cerca de 30 anos atrás, as pessoas começaram a usar a habitação como uma forma de ganho especulativo. Você podia comprar uma casa e 'virá-la' – você compra uma casa por 200 mil libras e depois de um ano você recebe 250 mil libras por ela. Você ganhou 50 mil libras. Então, porque não fazê-lo? O valor de troca assume o comando. E assim você tem esse boom especulativo. No ano 2000, depois do colapso dos mercados acionários globais, o capital excedente começou a fluir para a habitação. É um tipo interessante de mercado. Se eu comprar uma casa, então os preços da habitação sobem, e você diz: "Os preços da habitação estão subindo, eu deveria comprar uma casa". E, então, aparecem outras pessoas. Você tem uma bolha imobiliária. As pessoas são atraídas, e ela explode. Então, de repente, muitas pessoas descobrem que não podem mais ter o valor de uso do imóvel, porque o sistema de valor de troca o destruiu.
Isso levanta a questão: é uma boa ideia permitir que o valor de uso na habitação, que é crucial para as pessoas, seja definido por um sistema de valor de troca louco? Esse não é apenas um problema com a habitação, mas também com coisas como a educação e a saúde. Em muitos deles, nós ativamos a dinâmica do valor de troca na teoria de que ele vai fornecer o valor de uso, mas, frequentemente, o que ele faz é estragar os valores de uso, e as pessoas acabam não recebendo bons cuidados de saúde, educação ou habitação. É por isso que eu acho muito importante olhar para a distinção entre o valor de uso e o valor de troca.

Outra contradição que você descreve envolve um processo de mudança ao longo do tempo entre as ênfases do lado da oferta sobre a produção e as ênfases do lado da demanda sobre o consumo no capitalismo. Você pode falar sobre como isso se manifestou no século XX e por que isso é tão importante?
Uma das grandes questões é manter uma demanda de mercado adequada para que você possa absorver o que quer que o capital esteja produzindo. A outra é criar as condições sob as quais o capital pode produzir de forma lucrativa. Essas condições de produção rentável geralmente significam suprimir trabalho. Na medida em que você se envolve na repressão salarial – pagando salários cada vez mais baixos –, a taxa de lucro sobe.
Assim, do lado da produção, você quer esmagar o trabalho o máximo que você puder. Isso lhe dá lucros elevados. Mas então surge a pergunta: quem vai comprar o produto? Se o trabalho for espremido, onde fica o seu mercado? Se você esmaga o trabalho demais, você acaba em uma crise, porque não há demanda suficiente no mercado para absorver o produto.
Foi interpretado amplamente depois de um tempo que o problema da crise da década de 1930 foi a falta de demanda. Houve, portanto, uma mudança para investimentos liderados pelo Estado na construção de novas estradas, o WPA [a agência Works Progress Administration de obras públicas sob o New Deal] e tudo isso. Eles disseram: "Vamos revitalizar a economia pela demanda financiada pela dívida" e, ao fazer isso, voltaram-se para a teoria keynesiana.
Então, você sai dos anos 1930 com uma capacidade muito forte para gerir a demanda com muito envolvimento do Estado na economia. Como resultado disso, você tem taxas de crescimento muito elevadas, mas as altas taxas de crescimento são acompanhadas por um empoderamento da classe trabalhadora com salários em ascensão e sindicatos mais fortes. Sindicatos fortes e altos salários significam que a taxa de lucro começa a cair. O capital está em crise porque não está reprimindo o trabalho o suficiente, e por isso que tem a virada.
Nos anos 1970, eles se voltaram para Milton Friedman e para a Escola de Chicago, que se tornou dominante na teoria econômica, e as pessoas começaram a prestar atenção no lado da oferta – particularmente os salários. Você tem a repressão dos salários, que começa nos anos 1970. Ronald Reagan ataca os controladores do tráfego aéreo, Margaret Thatcher vai atrás dos mineiros, Pinochet mata as pessoas de esquerda. Você tem um ataque contra o trabalho – o que aumenta a taxa de lucro.
Quando você chega aos anos 1980, a taxa de lucro tem um salto, porque os salários estão sendo reprimidos, e o capital está indo bem. Mas aí vem o problema de onde você vai vender as coisas. Nos anos 1990, isso realmente coberto pela economia da dívida. Você começa a incentivar as pessoas a pedir muitos empréstimos – você começa a criar uma economia do cartão de crédito e uma economia financiada em altas hipotecas na habitação. Isso cobria o fato de que não havia demanda real lá fora.
Mas, no fim, isso explode em 2007-2008. O capital tem esta pergunta: "Você trabalha do lado da oferta ou do lado da demanda?". A minha visão de um mundo anticapitalista é que você deve unificar isso. Devemos voltar ao valor de uso. Que valores de uso as pessoas precisam e como podemos organizar a produção de forma a que ela corresponda a eles?

Parece que estamos em uma crise do lado da oferta, e mesmo assim a austeridade é uma tentativa de encontrar uma solução do lado da oferta. Como podemos conciliar isso?
Você tem que diferenciar entre os interesses do capitalismo como um todo e o que é especificamente de interesse da classe capitalista, ou de uma parte dela. Durante essa crise, grosso modo, a classe capitalista se saiu muito bem. Alguns deles se queimaram, mas, na maior parte, eles se saíram extremamente bem. De acordo com estudos recentes de países da OCDE, a desigualdade social aumentou muito significativamente desde o início da crise, o que significa que os benefícios da crise foram fluindo para as classes mais altas.
Em outras palavras, eles não querem sair da crise porque estão se saindo muito bem com isso. A população como um todo está sofrendo, o capitalismo como um todo não está saudável, mas a classe capitalista – particularmente uma oligarquia dentro dela – tem se saído extremamente bem. Há muitas situações em que os capitalistas individuais que operam em seus próprios interesses de classe realmente podem fazer coisas que são muito prejudiciais para o sistema capitalista como um todo. Eu acho que estamos nesse tipo de situação agora.

Você já disse muitas vezes recentemente que uma das coisas que deveríamos fazer na esquerda é envolver a nossa imaginação pós-capitalista, começando por fazer a pergunta sobre como seria um mundo pós-capitalista. Por que isso é tão importante? E, na sua opinião, como seria um mundo pós-capitalista?
Isso é importante porque tem sido martelado nas nossas cabeças por um considerável período de tempo que não há alternativa. Uma das primeiras coisas que temos que fazer é pensar na alternativa a fim de avançar rumo à sua criação. A esquerda se tornou tão cúmplice com o neoliberalismo que você realmente não pode distinguir os seus partidos políticos dos da direita, exceto em questões nacionais ou sociais. Na economia política, não há muita diferença.
Temos que encontrar uma economia política alternativa para a forma como o capitalismo funciona, e existem alguns princípios. É por isso que as contradições são interessantes. Você olha para cada um delas, como, por exemplo, a contradição entre o valor de uso e de troca, e diz: "O mundo alternativo seria aquele em que nós definimos os valores de uso". Então, nós nos concentramos nesses valores de uso e tentamos diminuir o papel dos valores de troca. Ou na questão monetária – precisamos de dinheiro para circular mercadorias, não há dúvida sobre isso. Mas o problema com o dinheiro é que ele pode ser apropriado por pessoas privadas. Ele se torna uma forma de poder pessoal e, depois, um desejo fetichista. As pessoas mobilizam as suas vidas ao redor da busca desse dinheiro, mesmo quando ninguém sabe que ele existe.
Então, nós temos que mudar o sistema monetário – seja cobrando imposto de quaisquer excedentes que as pessoas estejam começando a obter, seja chegando a um sistema monetário que se dissolva e não possa ser armazenado, como as milhas aéreas. Mas, a fim de fazer isso, você também tem que superar a dicotomia entre propriedade privada e Estado e chegar a um regime de propriedade comum. E, em um certo ponto, você precisa gerar uma renda básica para as pessoas, porque, se você tem uma forma de dinheiro que seja antipoupança, então você precisa dar garantias às pessoas.
Você precisa dizer: "Você não precisa economizar para um dia ruim, porque você sempre vai receber essa renda básica, não importa o quê". Você tem que dar às pessoas essa segurança, em vez das economias privadas e pessoais. Alterando cada uma dessas coisas contraditórias, você chega a um tipo diferente de sociedade, que é muito mais racional do que a que temos. O que está acontecendo exatamente agora é que nós produzimos coisas e depois tentamos persuadir os consumidores a consumir tudo o que produzimos, independentemente se eles realmente querem ou precisam disso. Enquanto que deveríamos descobrir quais são as vontades e os desejos básicos das pessoas e, então, mobilizar o sistema de produção para produzir isso.
Ao eliminar a dinâmica do valor de troca, você pode reorganizar o sistema inteiro em um caminho diferente. Podemos imaginar em que direção se moveria uma alternativa socialista, enquanto ela irrompe a partir dessa forma dominante de acumulação de capital que gere tudo hoje.



quarta-feira, 7 de agosto de 2013

O MST, A REFORMA AGRÁRIA E O NEODESENVOLVIMENTISMO



Escrito por Maria Orlanda Pinassi e Frederico Daia Firmiano

Enquanto política pública, a Reforma Agrária no Brasil teve caráter essencialmente antipopular. Nos anos de chumbo, funcionou como contrarreforma para combater a aquisição espontânea das terras virgens da Amazônia pelos espoliados de outras regiões do país (1). De 1990 para cá, a Reforma Agrária, sob controle do Estado, passou a ser orientada pelo Banco Mundial e acaba cumprindo a mesma função social. Através da intervenção do governo federal, foi implantado um programa conhecido como “Novo Mundo Rural”, que estimulava a compra de terras para fins de Reforma Agrária, sob o argumento de que, desse modo, se agilizaria a desapropriação de áreas sob conflito e se contemplaria, com alguns investimentos, a formação de um novo conceito de “agricultura familiar”. O objetivo do programa era aproximar-se daqueles pequenos produtores familiares de regiões que apresentavam condições favoráveis para sua integração em um mercado já dominado pelo capital transnacional, fundamentalmente, como elo das cadeias produtivas do agronegócio, seja produzindo matéria-prima para as agroindústrias, seja produzindo alimentos para o mercado interno. Mas a intenção real por detrás disso tudo era transformá-los em trabalhadores flexíveis.

A reforma agrária dos governos petistas

Lula da Silva e Dilma Rousseff, por seu turno, conduziram, sob o neodesenvolvimentismo, um ciclo de expansão do capital apoiado pelo padrão exportador de especialização produtiva (2), que elevou a monocultura do agronegócio à máxima potência – ao lado da mineração e de outras formas de “produção destrutiva”, que movimentam o setor energético e da construção civil, responsáveis pela formação da infraestrutura necessária para o desenvolvimento destes ramos da economia. Através dos vultosos recursos públicos destinados ao capital privado - oriundos, principalmente, do Fundo de Amparo ao Trabalhador e repassados pelo BNDES -, o Estado passou a compô-lo organicamente, convertendo as empresas privadas desses setores em verdadeirosplayers globais.
Ao mesmo tempo, intensificou os investimentos na nova “agricultura familiar”, através do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar-PRONAF, especialmente entre aqueles considerados mais “dinâmicos” e com capacidade de se integrar ao mercado. Incluem-se aí alguns assentamentos rurais, sobretudo nas regiões Sul e Sudeste, que, juntas, não somam 20% do total de assentamentos do país, dando forma e colorido ao “novo mundo rural” que Fernando Henrique Cardoso apenas desenhou.
Os governos petistas não apenas reduziram sobremaneira os investimentos na criação de novos assentamentos - cujo orçamento, em 2010, apresentou um passivo de R$ 800 milhões para obtenção de terras (IPEA, 2012) -, como não fizeram qualquer esforço para reverter o quadro de abandono da maior parte destas áreas, sem infraestrutura básica mínima. Conforme os dados do Sistema de Informações de Projetos de Reforma Agrária-SIPRA e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária-INCRA, elaborados pelo IPEA, dos 8.759 assentamentos rurais formados entre 1900 e 2011, 52,6% estão em fase inicial de execução. Se somados aos 29,5% dos assentamentos em fase de execução, temos 85,7% dos assentamentos geridos pelo INCRA sem infraestrutura produtiva e social, ou seja, mais de 7.500 assentamentos em situação de precariedade (IPEA, 2012, p. 268), que obriga os assentados a se submeterem a distintas formas de proletarização.
Além disso, no último ano, voltou à cena o Programa de Emancipação dos assentamentos que, em 2000, foi elaborado como política do governo de Fernando Henrique Cardoso e financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento-BID. Esta medida, prevista pelo Estatuto da Terra (1964), visava dar “autonomia” aos assentados rurais da Reforma Agrária, por meio da concessão do domínio da terra para as áreas já consolidadas, criadas há mais de 10 anos. Apesar de realizar algumas experiências, o programa não teve fôlego. Agora, segundo relatos de assentados em todo o país, os assentamentos com mais de 10 anos estão recebendo boletos bancários para pagarem pela terra e pelas benfeitorias feitas pelo Estado para se “emanciparem”, compulsoriamente. Ao lado dos já consolidados e “emancipados”, os demais assentamentos, antes mesmo de possuírem as condições estruturais mínimas necessárias para competir com os demais “agricultores familiares”, adentrarão, em condições obviamente inferiorizadas, a acirradíssima disputa por espaços no mercado agropecuário, hoje ultramonopolizado pelo capital transnacional.

A reestruturação do INCRA: fragmentação na pauta e desfiguração do assentado

A Reforma Agrária, institucional e empreendedorista, funciona como o mais profundo golpe que se poderia dar sobre a Reforma Agrária popular, um golpe muito mais poderoso do que aquele encetado pela ditadura. Veja-se, por exemplo, a reestruturação atual pela qual passa o INCRA, ou “Novo INCRA”, como vem sendo chamada a “modernização administrativa” do setor, que irá descentralizar as atividades relativas à reforma agrária deslocando-as para outros órgãos federais e prefeituras. Os investimentos na melhoria de vias de acesso ao mercado pelos assentados para o escoamento da produção passará a ser de responsabilidade dos municípios, que deverão receber recursos do governo federal por meio do PAC-Equipamentos. A construção de casas nos lotes se dará por meio do programa Minha Casa, Minha Vida, a cargo do Ministério das Cidades, assim como o fornecimento de luz, que virá por meio do programa Luz Para Todos, do Ministério das Minas e Energia; e o fornecimento de água para as famílias do semiárido, que deverá ser de responsabilidade do Ministério da Integração Nacional. De modo geral, essa reestruturação política do órgão federal implicará diretamente sobre as formas de organização de luta dos movimentos sociais do campo, uma vez que fragmenta sua pauta de reivindicações e sua luta sindical.
As medidas dão o tiro de misericórdia que faltava à luta pela Reforma Agrária, um passo decisivo na desfiguração total do “assentado” que lutou pela terra para fugir da condição proletária e, agora, se vê às voltas de um novo processo de proletarização, lançando seus instrumentos de organização de luta a um desafio igualmente novo, sob o risco de se tornarem anacrônicos.
Diante do quadro, fazem coro os atuais detratores da Reforma Agrária, enquanto móvel de luta popular. Figuram aí desde os históricos representantes da direita ruralista do país até os apologetas do neodesenvolvimentismo, muitos dos quais, não surpreendentemente, têm suas origens ideológicas no marxismo evolucionista. Todos acabam se equivalendo no encerramento institucional e mercadológico da reforma agrária. Condenam-se, por isso, as ocupações por violarem a propriedade produtiva, assim como se julga anacrônica e desnecessária a luta pela terra do MST, um movimento que teria cumprido seu ciclo histórico, devendo então recolher-se à função de gerente/empreendedor dos negócios relativos aos assentamentos existentes.

MST,  conquistas e contradições internas

Em três décadas de atuação intensa, o MST acumula conquistas memoráveis, cujas positividades legadas às novas gerações de lutadores sociais do Brasil e do mundo são inúmeras e inquestionáveis. Dentre elas, destacam-se, primeiramente, a determinação de uma militância que ousou organizar-se, ainda nos anos finais da ditadura militar, para combater o latifúndio improdutivo, enfrentar a violência desmedida que os latifundiários, pelo país afora, herdaram do persistente passado colonial e ainda as consequências sociais nefastas da chama “Revolução Verde”. Ancorado na ideologia, a um só tempo, desenvolvimentista e socialista, o MST, juntamente com CPT, PT e CUT, se dispunha a realizar as “tarefas em atraso”. Em três décadas de existência, rompeu o isolamento moral e real que a ordem impôs às suas difíceis causas e ganhou expressividade nacional. A duras penas, fez-se representar em cada um dos 23 estados brasileiros e no Distrito Federal, procurando reorganizar, em novas bases, a vida de milhares de famílias de trabalhadores rurais e urbanos, primeiro na disputa árdua pela terra, depois no processo de sua ocupação produtiva e reprodutiva. Num cenário político e econômico particularmente turbulento, o MST consolidou-se no maior e mais combativo movimento social do país e, merecidamente, as ações que realizou despertaram, para além do ódio da burguesia latifundiária, o reconhecimento das mais respeitáveis organizações sociais internacionais.
Outro resultado, menos óbvio, mas tão ou mais importante do que a conquista da terra, está nos inúmeros instrumentos de formação educacional e política (3) que o MST criou a fim de possibilitar que toda sua base, sem exceção, sem discriminação racial, geracional, de gênero, saísse da ignorância e recobrasse a dignidade roubada pelo mundo do capital.
Mas, nesse mesmo período, o MST vem renovando, em escala ampliada, a estrutura de impenitentes contradições internas, pois, como vimos, sua dinâmica reflete, para o bem e para o mal, uma complexidade na qual ancora expectativas e objetivos sociais contraditórios. A própria processualidade interna do MST vem sofrendo mudanças significativas, em função de suas relações com o Estado e com o capital, de sua difusa objetividade desenvolvimentista. A pressão que vem sofrendo para “apresentar resultados práticos” afasta o movimento do vislumbre socialista e o conduz para a reprodução de um pragmatismo que tende a se tornar hierárquico e estrutural. O mais grave é gerar, no seu interior, a semente da luta de classes, já que assentados e acampados, assim como assentados prósperos e precários, não possuem as mesmas expectativas, nem a mesma pauta de atuação cotidiana.
Uma amostra desse processo pode ser comprovada nos números que seguem. Por exemplo, durante a década de 1990, as ocupações de terra aumentaram progressivamente, saltando da casa de 50 ocupações, em 1990, para 856 no final da década, com destaque para os anos de 1997, 1998 e 1999 – triênio pós os massacres de Corumbiara, em 1995, e Carajás, em 1996, e após a realização da marcha do MST realizada em 1997, que reuniu mais de 1 milhão de trabalhadores e trabalhadoras.
Entre 2003 e 2004, foram realizadas 540 e 662 ocupações de terras, respectivamente, mas, desde então, este número só fez cair, ao ponto de, em 2010, terem sido realizadas apenas 184 ocupações de terras. O número de famílias que participou das ocupações tem desempenho similar. Ou seja, de uma participação crescente que, em 1999, alcança o número de 113.909 famílias em ocupações de terras, no ano de 2010, registram-se tão somente 16.936 famílias em ações similares.

Esgotamento do papel emancipatório e condições para sua retomada

Diante do quadro, arriscamos afirmar que este movimento se aproximou da fundação de uma sociabilidade alternativa, de transição, e da formação de um novo sujeito mais consciente do seu papel protagonista na história do país. Aproximou-se, mas não conferiu o resultado revolucionário deste direcionamento.
Observamos que, no plano político-institucional, com o agravante das afinidades ideológicas que preserva com o PT e a CUT, o MST esgotou definitivamente o seu papel emancipatório. Mas isso não quer dizer que não possa reassumi-lo. Para tanto, é preciso reconhecer a necessidade de se retomar e mesmo recriar formas mais ofensivas de luta, algo que já ocorre, de modo pontual, por iniciativa da sua militância mais combativa. Referimo-nos à luta das mulheres, especialmente, às ações articuladas e executadas por elas, em todo o Brasil, a partir do oito de março de 2006. Referimo-nos às lutas de ocupação que não têm necessariamente caráter reivindicativo, mas o objetivo de enfrentar e denunciar o aspecto essencialmente destrutivo do capital representado por transnacionais gigantescas, como a Vale, Aracruz, Monsanto, Stora Enzo, Cutrale etc. Infelizmente, tais ações vêm sendo muito criticadas e constrangidas por um pragmatismo legalista no interior do próprio movimento.
Da mesma forma, é necessário que o MST retome o princípio da autonomia política, desvinculando o que seriam os seus próprios objetivos dos objetivos neodesenvolvimentistas do petismo ou de qualquer outra forma política de reprodução do capital. Tal passo é fundamental ainda para que o MST, enquanto movimento de organização de massas, consiga enfrentar a realidade precária de sua base social flexível, proletarizada e precarizada, em muitos sentidos, porque não consegue reproduzir-se como camponês, ainda que parcialmente livre, em seus lotes. Isso não pode ser considerado um auto-fracasso, de natureza política, mas o resultado de uma grande ofensiva econômica do capital neoliberal no campo, que submete todas as demais formas de produção e de relação social à sua própria lógica.
Nestas condições, o movimento só tem uma alternativa se tiver a efetiva pretensão de se manter no campo da emancipação socialista, uma alternativa societária radical: retomar para si a luta pela terra contra (e não com) o capital, potencializar a consciência de classe dos seus próprios proletários, jamais negar, como se fosse um simples desvio de percurso, as evidências dessa condição explosiva de sua base social.

Maria Orlanda Pinassi é professora da FCL/UNESP de Araraquara; Frederico Daia Firmiano é professor da Fundação de Ensino Superior de Passos/Universidade do Estado de Minas Gerais-FESP/UEMG. Este texto contou com a contribuição de Silvia Beatriz Adoue.

(1) Ver a respeito Octávio Ianni. Colonização e contra-reforma agrária na Amazônia. Petrópolis; Editora Vozes, 1979.
(2) Jaime Osorio. América Latina: o novo padrão exportador de especialização produtiva – estudo de cinco economias da região. In.: Carla Ferreira; Jaime Osorio; Mathias Luce (Orgs.). Padrão de reprodução do capital: contribuições da teoria marxista da dependência. São Paulo. – Boitempo, 2012.

(3) Cerca de 350 mil integrantes do MST já frequentaram cursos de alfabetização, ensino fundamental, médio, superior e cursos técnicos. Por ano, há aproximadamente 28 mil educandos e 2 mil professores envolvidos em processos de educação. Destacamos o papel das escolas itinerantes, de formação técnica – com destaque para aquelas de ensino agroecológico – , das parcerias com universidades públicas (são 5 mil educandos nestas instituições) e para a Escola Nacional Florestan Fernandes que, desde 2005, vem recebendo militantes do próprio MST e de outros movimentos sociais do Brasil, da América Latina, da África, do mundo inteiro.

sábado, 6 de julho de 2013

MOBILIZAÇÃO REFLETE NOVA COMPOSIÇÃO TÉCNICA DO TRABALHO IMATERIAL DAS METRÓPOLES. ENTREVISTA ESPECIAL COM GIUSEPPE COCCO



Não estamos diante da “falência da política. Ao contrário, trata-se da persistência da política! Diante de tudo que os partidos de esquerda fazem para fornecer munições ao velho discurso antidemocrático e moralista da elite, esses movimentos mostram que a política está viva, apesar dos Felicianos, dos Aldos, da tecnocracia neodesenvolvimentista e da corrupção”, avalia o cientista político.
Confira a entrevista.

Na tentativa de compreender as razões que levaram milhares de cidadãos brasileiros às ruas, o sociólogo Giuseppe Cocco, que estuda o conceito de multidão abordado pelo italiano Antônio Negri, elenca algumas possibilidades. Na avaliação dele, o ciclo de “revoluções 2.0”, com base na internet, “começa a ter uma duração consistente (de mais de 3 anos) e entrou no imaginário, na linguagem de gerações de jovens que não formam mais suas opiniões na imprensa, mas diretamente nas redes sociais”. Outro aspecto importante é o fato de jovens brasileiros só terem conhecido “o Brasil de Lula”. E dispara: “No Brasil, o PT e seu governo (e sua coalizão) pensavam estar blindados pelos recentes sucessos eleitorais (a eleição de Haddad, a reeleição quase plebiscitária do Paes, no Rio), por estar num ciclo econômico positivo e por ter achado que o sagrado graal do ‘novo modelo’ econômico seria, na realidade, reeditar o velho nacional-desenvolvimentismo, rebatizado de neodesenvolvimentismo”.
De acordo com Cocco, havia e há no Brasil “um sem número de movimentos de protesto e resistência, em particular por causa dos efeitos dos megaeventos, e hoje esses movimentos se juntaram, confluindo com a multidão da nova composição do trabalho metropolitano”.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, ele assinala que os protestos ganharam força a partir do Movimento Passe Livre porque “a questão dos transportes e, mais em geral, do serviços é estratégica para o trabalho metropolitano”.
E esclarece: “Os operários fordistas lutavam por salários e horários. Os trabalhadores imateriais têm como fábrica a metrópole e lutam pela qualidade de vida da qual dependerá a inserção deles em um trabalho que não é mais um emprego, mas uma ‘empregabilidade’. Os operários fordistas lutavam para reduzir a parte do horário que ia embutida como lucro nos carros que produziam; os trabalhadores imateriais nas metrópoles desviam os slogans publicitários de uma montadora (‘Vem Pra Rua’) para ressignificar os agenciamentos produtivos que se desenham na circulação”.
Giuseppe Cocco é graduado em Ciência Política pela Université de Paris VIII e pela Università degli Studi di Padova. É mestre em Ciência, Tecnologia e Sociedade pelo Conservatoire National des Arts et Métiers e em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne). É doutor em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne). Atualmente é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e editor das revistas Global BrasilLugar Comum e Multitudes. Coordena a coleção A Política no Império (Civilização Brasileira).
Confira a entrevista.

IHU On-Line – Manifestações sociais massivas descontentes com a política e a economia iniciaram no Oriente, na Espanha, em Wall Street. E agora chegam ao Brasil. Por quê? O que estas manifestações sociais representam?
Giuseppe Cocco – Podemos logo começar dizendo que o que caracteriza essas manifestações é que elas não representam exatamente nada ao passo que, por um tempo mais ou menos longo, elas expressam e constituem tudo. O primeiro elemento é este: elas têm uma dinâmica intempestiva, fogem a qualquer modelo de organização política (não apenas os velhos partidos ou os sindicatos, mas também o terceiro setor, as ONGs) e afirmam uma democracia radical articulada entre as redes e as ruas: autoconvocação e debates nas redes sociais, participação massiva às manifestações de rua, capacidade e determinação de enfrentar a repressão e até capacidade de construção e autogestão de espaços urbanos como foram a Praça Tahrir, as acampadas espanholas e as tentativas do Occupy Wall Street e, enfim, a Praça Taksim em Istambul, na Turquia. Para cada uma dessas ondas e dessas que chamamos de “primaveras”  houve um estopim específico, mas todas dispõem de uma mesma base social (por mais diferenciadas que sejam as trajetórias socioeconômicas dos diferentes países) e dos mesmos processos de subjetivação. No caso do Brasil, todo mundo sabe que o estopim foram os protestos contra o aumento do preço das passagens nos transportes públicos. Como foi o caso de outras marchas, a manifestação em São Paulo foi violentamente reprimida pela Polícia Militar. Só que dessa vez a faísca não se apagou numa “marcha da liberdade” e incendiou São Paulo e todo o país. Mas saber que o estopim foi esse não nos permite avançar na análise.
Por que agora? É difícil responder e talvez a característica própria desse tipo de movimento é que ninguém sabe propor razões “objetivas” indiscutíveis. Contudo, podemos avançar três explicações: a primeira explicação tem a forma de um segundo “estopim” e é a quase coincidência do episódio da repressão da marcha pelo passe livre em São Paulo com a renovação das primaveras árabes e do 15M espanhol nas lutas duríssimas da multidão turca na Praça Taksim, emIstambul (não por acaso, na segunda manifestação carioca, que já reunia 10 mil pessoas, um dos gritos era: “acabou a mordomia, o Rio vai virar uma Turquia”); uma segunda explicação está no fato que esse ciclo de “revoluções 2.0” começa a ter uma duração consistente (de mais de 3 anos) e entrou no imaginário, na linguagem de gerações de jovens que não formam mais suas opiniões na imprensa, mas diretamente nas redes sociais; a terceira explicação é mais consistente e a mais importante e diz respeito ao que são essas “novas gerações” no Brasil de hoje, ou seja, essas gerações de jovens que só conheceram o Brasil de Lula. O que é incrível e até irônico é que o próprio PT não tenha previsto isso e ainda hoje seja incapaz de enxergar esse dado importantíssimo.

IHU On-Line – Quais as aproximações e diferenças entre as manifestações brasileiras e as que vêm ocorrendo em outros países?
Giuseppe Cocco – As aproximações são mais importantes do que as diferenças, que apenas enfatizam a qualidade específica de cada evento.
Num primeiro nível, há em comum a articulação entre as redes e as ruas como processo de autoconvocação das marchas e manifestações que ninguém consegue representar, sequer as organizações que se encontraram no cerne da primeira chamada: a tentativa de “empoderar” os rapazes do Movimento pelo Passe Livre em São Paulo (“oficializados” pela presença no Roda Viva e a negociação com prefeitura e estado) mostrou que eles não controlam nem dirigem um movimento que se autorreproduz de maneira rizomática (as manifestações aconteciam ao mesmo tempo sem respeitar qualquer tipo de “trégua”).
Num segundo nível, há em comum o esgotamento da representação política. No Brasil, esse fenômeno foi totalmente subavaliado pela “esquerda” e, sobretudo, pelo PT porque não o entenderam (e não o entendem).
Inicialmente pensaram que fosse um problema das autocracias do Norte da África (Tunísia e Egito); depois que fosse a incapacidade dos socialistas espanhóis (PSOE) de responder de maneira soberana às injunções das agências internacionais de notação ou do Banco Central Europeu. Depois pensaram que o 15M espanhol não consegue encontrar uma nova dinâmica eleitoral ao passo que o partido de Beppe Grillo mostrou na Itália um fenômeno eleitoral totalmente novo e desgovernado.
Em seguida, pensaram que o Egito e a Tunísia foram normalizados eleitoralmente pelo islamismo conservador e aí aparece o levante turco contra o governo islâmico moderado.
No Brasil, o PT e seu governo (e sua coalizão) pensavam estar blindados pelos recentes sucessos eleitorais (a eleição de Haddad, a reeleição quase plebiscitária do Paes, no Rio), por estar num ciclo econômico positivo e por ter achado que o sagrado graal do “novo modelo” econômico seria, na realidade, reeditar o velho nacional-desenvolvimentismo, rebatizado de neodesenvolvimentismo. O que a esquerda como um todo, e o PT no Brasil não entenderam, é que a crise da representação é geral (mesmo que ela tenha sintomas e manifestações diferenciadas), e que os levantes da multidão no Egito, na Tunísia, na Espanha, na Turquia e agora no Brasil são a expressão, entre outras coisas, de uma recusa radical dessa maneira autorreferencial de pensar por parte dos governos e dos partidos políticos.
Num terceiro nível há a principal proximidade entre todos esses movimentos: a base social dessa produção de subjetividade é o novo tipo de trabalho que caracteriza o capitalismo cognitivo. As redes que protestam e se constituem nas ruas de MadriLisboaRomaAtenasIstambulNova York e agora de todas as cidades brasileiras são formadas pelo trabalho imaterial: estudantes, universitários, jovens precários, imigrantes, pobres, índios, ou seja a composição heterogênea do trabalho metropolitano. Não por acaso, por um lado, uma de suas formas principais de luta foi a “acampada” ou o “occupy” e, por outro, os levantes turco e brasileiro tiveram como estopim a defesa das formas de vida da multidão do trabalho metropolitano: a defesa do parque contra a especulação imobiliária (a construção de um shopping) em Istambul, e a luta contra o aumento do custo dos transportes, no caso do Brasil.
Diante dessas aproximações, as diferenças são bem menores, embora elas existam (e sejam até óbvias). Podemos apreender essas diferenças do ponto de vista das condições objetivas da cada país e do ponto de vista de como cada um desses movimentos foi transformando (ou não) a fase destituinte em momento constituinte. Assim, o 15M espanhol se apresenta como a experiência que mais conseguiu durar apesar de não ter revertido as políticas econômicas. As revoluções árabes foram normalizadas pelas vitórias eleitorais conservadoras, mas os levantes se tornam endêmicos.
Na Turquia e ainda mais no Brasil, não sabemos – literalmente – o que vai acontecer. É no plano das condições objetivas que encontramos a maior diferença: na Espanha e, em geral, no mediterrâneo as revoluções são marcadas pelos processos de “desclassificação” das classe médias. No Brasil é exatamente o contrário: tudo isso acontece no âmbito e no momento da emergência da “nova classe média”. Só que essa nova composição de classe é, na realidade, a nova composição do trabalho metropolitano, lutando pelos parques ou pelos transportes públicos: ascendendo socialmente, os pobres brasileiros se tornam o que as classes médias europeias se tornam, descendo: a nova composição técnica do trabalho imaterial das metrópoles.

IHU On-Line – Além do aumento do preço das passagens, quais são os outros motivos que desencadearam as manifestações?
Giuseppe Cocco – Podemos elencar duas respostas. A primeira é a seguinte: se pensarmos bem, essa pergunta encontra sua resposta numa sua simples reformulação: “por que nas cidades e metrópoles brasileiras não há mais lutas e mais levantes pelo sem número de motivos que a justificariam?"
No Brasil, não faltam razões! Uma vez que “pegou” é só escolher, a lista é infinita.
Vou trazer apenas um exemplo, contando uma anedota: um dia fui assistir a um Fórum da UPP Social (que hoje não existe mais) em duas favelinhas da Zona Norte, bem precárias. Toda a parafernália dos governos estadual e municipal estava mobilizada, com seus carros de função, para dar sentido à pacificação. Os poucos moradores que falaram colocaram dois problemas essenciais: primeiro, disseram, vivemos no meio do esgoto; segundo, os policiais agem de maneira violenta e arbitrária.
As dezenas de secretários e outros servidores presentes não conseguiram dizer nada sobre como seria resolvido esse problema básico do saneamento. Saindo da favelinha, passei por uma centena de adolescentes que ficava sem fazer nada na entrada e, no caminho de volta ao Centro do Rio, a 5 minutos de carro, passei na frente de uma obra gigantesca, faraônica: o Maracanã!
A pergunta de cima encontra uma resposta bem igual a que colocava Keynes em 1919: “nem sempre as pessoas aceitam morrer em silêncio”. Havia no Rio de Janeiro e no Brasil (e continua havendo) um sem número de movimentos de protesto e resistência, em particular por causa dos efeitos dos megaeventos, e hoje esses movimentos se juntaram, confluindo com a multidão da nova composição do trabalho metropolitano. No Rio, os manifestantes sempre se juntam para dirigir invectivas pesadas ao governador Sergio Cabral e ao prefeito Eduardo Paes.
Chegamos assim à segunda resposta: o movimento foi mesmo pelos 0,20 centavos! Só que esse “pouco” é na realidade “muito”. Por quê? Porque a questão dos transportes e, mais em geral, dos serviços é estratégica para o trabalho metropolitano. Os operários fordistas lutavam por salários e horários. Os trabalhadores imateriais têm como fábrica a metrópole e lutam pela qualidade de vida da qual dependerá a inserção deles em um trabalho que não é mais um emprego, mas uma “empregabilidade”.
Os operários fordistas lutavam para reduzir a parte do horário que ia embutida como lucro nos carros que produziam; os trabalhadores imateriais nas metrópoles desviam os slogans publicitários de uma montadora (“Vem Pra Rua”) para ressignificar os agenciamentos produtivos que se desenham na circulação. Os operários fordistas lutavam contra o trabalho. Os trabalhadores imateriais lutam no terreno da produção de subjetividade. É na circulação que a subjetividade se produz e produz valor e renda.

IHU On-Line – Os manifestantes deixam claro que são apartidários, não querem violência e não têm lideranças. Como interpreta esse discurso? Como pensar um novo modelo político a partir dessas características?
Giuseppe Cocco – Com certeza, uma das dimensões constitutivas da Revolução 2.0 é a crise da representação e essa é uma questão central. Precisamos lembrar que a antecipação da revolução 2.0 como crítica radical da representação é sul-americana. O “Que se vayan todos” argentino antecipou em 10 anos o “No nos representan” espanhol. Só que as dimensões dessa crise são processadas pelo discurso oficial – ou seja, partidário – de maneira invertida. E essa inversão não é por acaso. Aliás, os últimos desdobramentos do movimento (as agressões contra os partidos de esquerda nas manifestações do dia 20 de junho) nos mostram muito bem como funciona essa inversão.
Os partidos (sobretudo aqueles que estão no governo) dizem que esses movimentos são limitados porque recusam os partidos, não são “orgânicos”, porque têm uma “ideologia” que os recusa e, portanto, são potencialmente antidemocráticos. Obviamente, isso é correto. Só que, a afirmação correta esconde duas belas falsificações.
primeira também é óbvia: os “grupos” que rezam por uma crítica fundamentalista da representação têm pouca consistência social e nenhuma capacidade de determinar, sequer influenciar, movimentos desse tamanho.
segunda falsificação é uma consequência dessa primeira: os partidos atribuem a crise da representação a um processo e a uma crítica que viria de fora, quando na realidade os maiores e únicos responsáveis dessa crise são eles!
E a responsabilidade está na indiferenciação da clivagem direita/esquerda, ou seja, no fato de os governos mudarem e continuarem fazendo as mesmas coisas, inclusive com a reciclagem das mesmas figuras políticas. Assim, o PSOEespanhol atribuiu ao 15M sua derrota eleitoral, quando na realidade o 15M é apenas a consequência do fato que os socialistas espanhóis faziam a mesma política econômica da direita. É exatamente o que acabou acontecendo no Brasil de Lula e, sobretudo, de Dilma. O movimento que nasceu com a luta contra o aumento recusa as dimensões autoritárias e arrogantes das coalizões e desses consensos que reúnem direita e esquerda na reprodução dos interesses de sempre.
É o Haddad que devia representar o novo e se apresenta junto ao Alckmin para juntos dizerem a mesma coisa: que a redução da tarifa terá um custo (sic!). É a coalizão conservadora que governa o estado e a prefeitura do Rio, e onde o PT planeja e executa remoções de pobres, desrespeitando a própria LOM. São as alianças espúrias com os ruralistas de um ministro de esquerda. É a condução autoritária das megaobras e dos megaeventos. É a entrega da Comissão de Direitos Humanos da Câmara a um fundamentalista que, exatamente no dia seguinte da grande manifestação da segunda-feira, fez votar o projeto de Lei que define a homossexualidade como uma doença.
A esquerda e a incapacidade
A extrema esquerda ou a esquerda radical erram quando pensam que estão “salvas” dessa situação. Os partidos de esquerda são incapazes de entender que esse movimento se forma na recusa – confusa, flutuante, ambígua e até perigosa – do partido, da organização separada, da bandeira. Isso porque a recusa é geral, não faz distinções e funciona como rejeição de qualquer plataforma ideológica preparada e determinada por lógicas de aparelhos separados: nisso há uma percepção de que um dos problemas da política é a construção de aparelhos que tendem – antes de tudo – a reproduzir a si mesmos.
A agressão de um grupo organizado ao bloco de bandeiras do PSTU, do PSOL e do PCB na marcha da quinta feira, 20 de junho, quebrou as ilusões de que a crise seria somente do PT e assustou todo o mundo. Contudo, nesse episódio lamentável encontramos, mais uma vez, o funcionamento perverso da lógica da representação. Os grupos agressores eram claramente organizados e tinham esses objetivos tão claramente quanto o processo de organização indica as manipulações mais podres. Todas as análises e denúncias que imediatamente foram produzidas identificaram esses grupos (que claramente agiam a mando de algum desenho de provocar essa situação) com a manifestação em geral.
Sem partidos
Na realidade, o apoio genérico dos jovens à palavra de ordem “sem partidos!” não tem nenhuma significação linear e ainda menos “fascista”. Paradoxalmente, a recusa dos partidos, inclusive dos “radicais” e de suas bandeiras, é a recusa – claro, confusa e contraditória – da homologação de direita e esquerda e uma demanda para uma “verdadeira esquerda”. Essa demanda não é idealista e não pode ser travada com linguagens e símbolos obsoletos (as bandeiras vermelhas, por exemplo). Para reerguer as bandeiras vermelhas, é preciso deixá-las em casa por um bom momento! A bandeira vermelha precisa abandonar sua dimensão ideal e transcendente (ou seja, vazia) e voltar a ser interna (imanente) às linguagens das lutas como eles são. Nesse terreno é possível e necessário construir outra representação e, sobretudo, reforçar a democracia.

IHU On-Line – O senhor publicou recentemente no Twitter que “as lutas da multidão em São Paulo e no Rio são o melhor resultado dos governos Lula. Tão bom que ninguém no PT foi capaz de antecipar”. Pode nos explicar essa ideia? Trata-se da falência da política?
Giuseppe Cocco – Começando do final: não estamos diante da “falência da política. Ao contrário, trata-se da persistência da política! Diante de tudo que os partidos de esquerda fazem para fornecer munições ao velho discurso antidemocrático e moralista da elite, esses movimentos mostram que a política está viva, apesar dos Felicianos, dos Aldos, da tecnocracia neodesenvolvimentista e da corrupção! Ser contra o moralismo da direita não significa achar “graça” nos comportamentos imorais da esquerda no poder. Trata-se apenas de não cair nas armadilhas da direita, mas num esforço de conjunção ética dos fins e dos meios.
Esse movimento, qualquer seja seu desfecho, é o movimento da multidão do trabalho metropolitano, o mais puro produto dos 10 anos de governo do PT. Vamos aprofundar e esclarecer essa afirmação em dois momentos. Num primeiro momento, essa afirmação é uma valoração positiva dos governos Lula e Dilma. Uma avaliação positiva não porque tenham sido de “esquerda” ou socialistas, mas porque eles se deixaram atravessar – sem querer – por ume série de linhas de mudança: políticas de acesso, cotas de cor, políticas sociais, criação de empregos, valorização do salário mínimo, expansão do crédito.
A esquerda radical julgava essas políticas exatamente como agora – ironicamente nesse caso até o PT – julgam a questão das “bandeiras”: idealmente. “Lula está implementando outro modelo, outra sociedade, socialista?” se perguntava e criticava. Ora, ninguém implementa modelo alternativo, mesmo quando se está no governo. Apenas pode ter a sensibilidade de apreender as dinâmicas reais que, na sociedade, poderão amplificar-se e produzir algo novo.
Os governos Lula e Dilma associaram o governo da interdependência na globalização com a produção, tímida e real, de uma nova geração de direitos e de inclusão produtiva. Estatisticamente, isso se traduziu na mobilidade ascendente dos níveis de rendimento de mais de 50 milhões de brasileiros e pela entrada de novas gerações nas escolas técnicas e universidades. Lula não quis saber de bandeiras e até declarou que ele “nunca tinha sido socialista”. Ficou dentro da sociedade indo atrás das linguagens, dos símbolos e das políticas que entendia.
Na virada da década de 2010, esse processo se consolidou em dois fenômenos maiores: o primeiro é eleitoral e tem o nome de “lulismo”, ou seja, a capacidade que Lula tem de ganhar e, sobretudo, fazer ganhar eleições majoritárias: começando pela presidente Dilma e chegando ao prefeito Haddad; o segundo é o regime discursivo da emergência de uma “nova classe média”, com base nos trabalhos do economista Marcelo Neri. Com a crise do capitalismo global (2007-2008) e a chegada de Dilma ao poder, o discurso da “nova classe média” foi além das preocupações do marketing eleitoral, para tornar-se a base social de uma virada que vê, no papel do Estado junto das grandes empresas, o alfa e o ômega de um novo modelo desenvolvimentista (neodesenvolvimentista).
Economia
Sociologicamente, o objetivo do neodesenvolvimentismo é transformar os pobres em “classe média”, e para isso é preciso economicamente de um Brasil Maior, capaz de se reindustrializar. O governo Dilma chegou a baixar os juros e multiplicou os subsídios às indústrias produtoras de bens de consumo duráveis, em particular de carros, e à construção civil. O que o movimento afirmou e certificou foi a dimensão ilusória desse suposto modelo (isso não significa que o modelo não será implementado; significa apenas que ele perdeu a patina de consenso que o legitimava e deverá apresentar-se como cada vez mais autoritário). No plano macroeconômico, a inflexão tecnocrática não deu muito certo, pois a tentativa de mexer nos juros resultou na volta da inflação dos preços (que está na base da revolta). A inflação dos juros e aquelas dos preços se reapresentaram como as duas faces de um impasse renovado que só uma mobilização produtiva (da qual não há sinal) pode resolver .
Nova classe média não existe
No plano sociológico, a “nova classe média” não existe, porque o que se constitui é uma nova composição social cujas características técnicas são de trabalhar diretamente nas redes de circulação e serviços da metrópole. A figura econômica (a “média” da faixa de renda) esconde o conteúdo sociológico de uma inclusão produtiva que não passa mais pela prévia implementação na relação salarial. Esse trabalho dos incluídos enquanto excluídos é um trabalho de tipo diferente: ele é precarizado (do ponto de vista da relação de emprego); imaterial (do ponto de vista que depende da recomposição subjetiva e comunicativa do trabalho manual e intelectual) e terciário (do ponto de vista da cadeia produtiva, aquela dos serviços).
A qualidade da inserção produtiva desse trabalho depende diretamente dos direitos prévios aos quais têm acesso e que, ao mesmo tempo, ele produz, como, por exemplo, poder circular pela metrópole. É exatamente essa composição técnica e social do trabalho metropolitano o que constitui a outra face da “nova classe média” oriunda do período Lula. Ao mesmo tempo em que ela foi a base eleitoral das sucessivas derrotas do neoliberalismo, ela é também hoje, na sua recomposição política, a oposição ao neodesenvolvimentismo. Para ela, a questão da mobilidade urbana tem a mesma dimensão que tinha o salário para os operários ao mesmo tempo em que o segmento estratégico é aquele dos serviços.
As cidades e metrópoles brasileiras – e não a reindustrialização – constituem o maior gargalo, ao mesmo tempo social, político e econômico. A ideologia e a coalizão de interesses que estão com a presidente Dilma não mostraram, até agora, a menor capacidade de enxergar esse dado. Mais do que isso, essa nova composição do trabalho imaterial e metropolitano produz, a partir de formas de vida, outras formas de vida. Por isso, o movimento do passe livre, como aquele de Istambulque defendia um parque, foi juntando todos os focos de resistência que existem nas metrópoles, até se espalhar – como está fazendo nesse momento, dramaticamente e assustadoramente – pelas periferias onde nunca teve manifestação de massa nenhuma.
O que esse “levante” da multidão do trabalho imaterial nos mostra é que o “legado” destes últimos dez anos de governo está em disputa, e que o mais interessante é ficar por dentro dessas alternativas, em vez de querer colocar uma ou outra bandeira. A política e os movimentos estão dentro e contra. Por exemplo, pensemos a questão dos megaeventos, das copas e olimpíadas. Muitos dos focos de resistência nas metrópoles são movimentos que criticam os gastos com obras, estádios, favelas que resistem contra as remoções etc. Ao mesmo tempo, a possibilidade de o movimento ter acontecido sem uma repressão brutal, por enquanto, se deve também à Confederation Cup. Mais uma vez, o conflito é dentro e contra.

IHU On-Line – O que é possível vislumbrar para o cenário político a partir das manifestações?
Giuseppe Cocco – Creio que o evento é tão potente e imprevisto que ninguém saberá responder a essa pergunta. Sobretudo neste momento: a cada dia e talvez a cada hora mudam alguns dados fundamentais. O que podemos dizer é que o cenário eleitoral de 2014 até 2018 estava desenhado e as variáveis vislumbradas eram aquelas macroeconômicas. O movimento se convidou para essa discussão. Só que não há ninguém que possa sentar nessa eventual mesa dizendo que o representa.
A terra tremeu e continua tremendo, só que a fumaça levantada não nos deixa ainda ver quais prédios cairão e quais ficarão em pé. Nesse cenário, podemos fazer duas conjeturas.
Numa primeira, a presidente Dilma pode abrir pela esquerda, por exemplo, com uma reforma ministerial que colocaria pessoas qualificadas e altamente progressistas em ministérios-chave como a Justiça, Cidade e Transportes, MinC e Educação, convocando a sociedade a se constituir – em todos os níveis possíveis – em assembleias participativas para discutir as urgências metropolitanas.
Na segunda (que me parece ser aquela anunciada pelo pronunciamento do dia 21 de junho), ela se limita a reconhecer a existência de outra composição social no movimento e a construção de um grande pacto sobre os serviços públicos, mas não anuncia nada de novo a não ser algumas bandeiras de longo prazo (a destinação de 100% dos royalties do petróleo para a educação) e enfatiza a questão da ordem: repressão dos “violentos” e respeito pelos megaeventos (ou seja, mais repressão). E isso depois dos fatos bem sombrios da quinta-feira (aparição desses grupos pagos para agredir os partidos e, no Rio, repressão generalizada da manifestação perseguindo a centenas de milhares de participantes durante toda a dispersão).
O cenário que vislumbro é pessimista: parece-me que boa parte dos militantes de esquerda está caindo na armadilha das “bandeiras”, e que isso acabará por realmente entregar o movimento à direita e, por cima, haverá repressão, eventualmente também das opiniões. Nesse cenário muito provável, para salvar a si mesmos e evitar uma renovação geral, as burocracias e outros fisiologismos encastelados nos diferentes governos e coalizões, estão destruindo as possibilidades de uma grande renovação da esquerda e levando todo o mundo de roldão no buraco que será o resultado eleitoral de 2014. Mas quero muito estar errado. Se for verdade que estou errado, serão as lutas da multidão que o dirão e o cenário que elas têm de enfrentar é muito, muito complexo.