O geógrafo britânico David Harvey é
um dos pensadores mais influentes da atualidade. Unindo geografia urbana,
marxismo e filosofia social na compreensão das contradições do mundo
contemporâneo, sua obra é um forte eixo de renovação da tradição crítica e
ganha especial relevância num contexto de explosão de movimentos contestatórios
urbanos no Brasil e no mundo.
Nesta entrevista, traduzida em
primeira mão pelo Blog da Boitempo, Harvey discute as manifestações
que tomaram as ruas do Brasil a partir de junho e os desafios para a
organização de mobilizações urbanas de amplo escopo, assim como o lugar das
novas tecnologias e dos movimentos sociais. À luz do urbanismo privatizado e
securitário de Londres, o geógrafo comenta a importância do debate sobre o
direito à cidade e os desafios de se pensar uma cidade anti-capitalista.
Traçando paralelos com revoltas urbanas ao redor do globo, da China a Istambul, ele
esboça, inclusive, acréscimos a sua obra mais recente, que dá nome e inspira o
livro de intervenção Cidades rebeldes:
Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil, que a Boitempo acaba de lançar analisando as causas e consequências
das ditas “Jornadas de Junho”, e com o qual Harvey contribui como autor.
Em 1968, Henri Lefebvre introduzia o
conceito do “direito à cidade”. Ele advogava o “resgate do homem como o
principal protagonista da cidade que construiu (…) o ponto de encontro para a
vida coletiva.” O senhor tem se referido a esse direito coletivo – de
refazermos a nós mesmos e a nossas cidades – como “um dos mais preciosos, porém
mais negligenciados de nossos direitos humanos.” De que formas o senhor pensa
que temos negligenciado esse direito humano nos últimos anos?
Se a questão de que tipo de cidade é
construída depende criticamente do tipo de pessoa que queremos ser, então a
ampla falência em se discutir abertamente essa relação significa que
abandonamos o remodelamento das pessoas e de suas paixões aos requisitos da
acumulação do capital. Acredito que estava bem claro a seus planejadores e
legisladores que a suburbanização dos Estados Unidos após 1945 não apenas
ajudaria resgatar os EUA do prospecto de um retorno às condições de depressão
dos anos 1930 por meio de uma ampla expansão da demanda efetiva, mas que
serviria para criar um mundo social e político desprovido de consciência
revolucionária ou de sentimento anticapitalista. Não é de se espantar que o
movimento feminista da década de 1960 via o subúrbio como seu inimigo e que o
estilo de vida suburbano tornou-se associado a um determinado tipo de
subjetividade política socialmente preconceituosa, excludente e, em último
caso, racista.
Londres é elogiada como uma cidade
multicultural, e talvez um componente significativo do direito à cidade seja o
direito de coexistir. Ao reimaginar e refazer cidades, como podemos garantir
que esse processo não se dê de forma a privilegiar ou discriminar diferentes
interesses ou comunidades que nela existem?
Não há nada que garanta isso além de
movimentos sociais, engajamento político ativo e a disposição de lutar por seu
lugar. Conflito na e pela cidade é saudável, e não uma patologia que
intervenções estatais devam controlar e suprimir.
Vivemos em uma era digital. Em muitos
casos, há quem desenvolva relações mais íntimas com pessoas a milhares de
quilômetros de distância do que com seus próprios vizinhos de rua. Se é justo
dizer que as cidades têm tendido, historicamente, a se desenvolver em torno de
um espaço físico compartilhado, de que forma as tecnologias comunicativas que
minam a preeminência de comunidades físicas/espaciais afetam a futura
configuração da cidade?
As novas tecnologias são uma faca de
dois gumes. Por um lado, funcionam como “armas de destruição em massa” levando
as pessoas a acreditarem que a política só seria possível em algum mundo
virtual. Por outro, podem ser usadas para inspirar e coordenar ação política
nas ruas, nos bairros e por toda a cidade. Nada substitui corpos na rua
mobilizados para ação política como vimos no Cairo, em Istambul, Atenas, São
Paulo etc. Quando trabalham junto com política de rua ativa, as novas
tecnologias podem ser um recurso fabuloso.
Em “Whose Rebel City?” [Cidade rebelde de quem?], Neil Grey sugere que em seu livro mais
recente, Rebel Cities, a análise do senhor negligenciava a tradição
[marxista] autonomista que surgiu durante as lutas urbanas das décadas de 1960
e 1970 na Itália – caracterizadas pelo slogan “Tomar a cidade”; por debates
feministas em torno da reprodução social; pela ideia da “fábrica social” e o
dito “ativismo comunitário territorial” –, focando sua teoria na absorção do
capital e do trabalho excedente via urbanização. Como o senhor responde a essa
crítica? Concorda que essas práticas políticas podem servir de modelos
delineadores de como habitantes poderiam reorganizar suas cidades?
Acho essa crítica estranha. De fato,
o capítulo 2 de Rebel cities trata da criação da urbanização
por meio de processos de acumulação de capital, mas o capítulo 5 se dedica a
movimentos sociais de classe nas cidades. Não pude cobrir todos esses
movimentos, é claro, e então existem tantos, como os associados ao
movimento autonomista na Itália que são, certamente, dignos de
inclusão. Mas cheguei a me debruçar sobre a forma pela qual as casas das
pessoas no começo do século na Itália complementavam os movimentos de conselho
fabril e, é claro, se inspiraram muito no caso de El Alto assim como na Comuna
de Paris e em outras insurgências urbanas, na tentativa de teorizar de que
formas poderiam ser compreendidos no quadro da luta de classes. Então dizer que
eu só me preocupei com a absorção do capital excedente é um tanto esquisito e
sugere que Neil Grey ou não chegou ao final do livro ou foi desdenhoso porque
não tratei de seu movimento social urbano favorito em particular.
Gostaria, no entanto, de ter citado o
comentário de Gramsci sobre a importância de suplementar os conselhos fabris
com comitês de bairro:
“No comitê de bairro, deveria
tentar-se incorporar delegados também de outras categorias de trabalhadores que
habitam o bairro: garçons, motoristas, condutores de bonde, ferroviários,
lixeiros, empregados domésticos, comerciários etc. O comitê de bairro deveria
ser a emanação de toda a classe trabalhadora que habita o bairro, emanação
legítima e influente, capaz de fazer respeitar uma disciplina, investida de
poder, espontaneamente delegado, bem como capaz de ordenar o fechamento
imediato e integral de cada trabalho em todo o bairro.” (“Democrazia operaia“, L’Ordine Nuovo, 21 de junho,
1919; versão em português)
Na esteira da rápida urbanização e
pleno inflacionamento da bolha de propriedade na China, o senhor falou de uma
crescente luta de classes de base da qual quem mora no Ocidente simplesmente
não ouve falar. Se olhássemos com mais cuidado à situação na China, o que
poderíamos aprender?
Há muito mais saindo sobre a China
agora e há um crescente reconhecimento dos perigos, tanto das gigantescas
bolhas de ativos urbanos (particularmente na habitação), quanto de um problema
crônico de superprodução de urbanização em resposta à queda de mercados de
exportação em 2008. Existe agora muito nervosismo no que diz respeito à
superacumulação urbana. Teoricamente, compreendo o que está acontecendo, mas
não sei dizer quando o processo será interrompido. E sabemos que existe muita
inquietação urbana e industrial na China, mas é muito difícil julgar o quanto e
com que significância.
O senhor coloca seu conceito de
“acumulação por desapossamento” no coração da urbanização sob regime
capitalista. Atualmente, trechos significativos de Londres estão sendo
transformados sob o pretexto de “regeneração”, processo que vem acompanhado de
cortes nos benefícios habitacionais, e o novo bedroom tax*. Um exemplo entre muitos seria o das centenas de moradores do
conjunto habitacional de Heygate, no centro da cidade, que
perderam suas casas para que incorporadores imobiliários pudessem substituir
habitação social por propriedades “a preços acessíveis”. Movimentos locais
emergiram em resistência a esses despejos, mas enfrentam continuamente
constrangimentos políticos e legais. Quais são seus pensamentos sobre a
importância e as potenciais armadilhas de um movimento unificado em toda cidade
– ou de escopo ainda maior?
Acho que é vital unificar, o quanto
for possível, as lutas contra o desapossamento na cidade toda. Mas
fazer isso requer uma imagem precisa das formas de desapossamento e de
suas raízes. Por exemplo, existe atualmente uma necessidade de montar um quadro
das práticas predatórias dos incorporadores imobiliários e de seus financiadores
em nível metropolitano, e começar uma luta coletiva e de toda a cidade para
refrear e controlar suas práticas. Recentemente vimos uma grande inquietação
urbana no Brasil tratando principalmente de custos com o transporte, mas também
(e isso é notável, dado que se trata do Brasil) contra a construção de estádios
para a Copa do Mundo e o deslocamento e gasto de recursos públicos envolvidos.
Então, lutas em nível metropolitano e trans-metropolitano não são impossíveis.
O perigo, como sempre, é que as lutas possam esmaecer na medida em que as
pessoas se cansam da luta. A única resposta é manter as lutas acontecendo e
construir organizações que têm a capacidade de fazer isso (o MST no Brasil é um
bom exemplo disso, apesar de não ser uma luta distintamente urbana).
Existe uma distinta carência de
espaços de propriedade comum em Londres. Boa parte da cidade é privatizada e
atende ao panóptico securitário da vigilância, e há uma escassez de espaços
públicos livres de interferências do mercado. É importante buscar e construir
espaços comunitários para permitir àqueles que resistem às depredações do
capitalismo terem espaço não somente para trabalho, mas para explorar novas
vias de interação criativa também?
A questão de liberar espaços
controlados pelo Estado para fazer deles um bem comum controlado pelas pessoas
é, na minha opinião, crucial. A reversão da privatização dos espaços públicos é
também vital e eu esperaria ver muito mais movimentos dirigidos a esses fins.
O senhor tem falado sobre a
possibilidade de uma “liga de cidades socialistas” como uma maneira poderosa de
mudar a ordem do mundo. Será que poderia discorrer um pouco sobre o que quer
dizer, e como elas poderiam funcionar?
É uma ideia um tanto distante à
primeira vista mas existe muita aferição ocorrendo entre cidades, e em
determinadas questões, como o controle de armas nos EUA, existem ligações
cooperativas entre administrações urbanas que podem ter resultados
progressivos. Não vejo por que tais práticas não possam ser desenvolvidas em
resistências urbanas organizadas contra práticas neoliberais. Penso que uma
resposta coordenada atravessando o escopo da administração urbana no Reino
Unido para a chamada bedroom tax seria uma possibilidade que
ecoaria a maneira pela qual a luta sobre a poll tax* se
desenrolou anteriormente. Temos de fato feito coisas desse tipo, mas deixamos
de analisá-las completamente e de apreciarmos suas possibilidades
posteriormente.
A inquietação civil está se tornando
uma característica recorrente da vida urbana em Londres, assim como em outras
cidades ao redor do mundo, dentre elas Atenas, Madri, Cidade do México, Buenos
Aires, Santiago, Bogotá, Rio de Janeiro e, mais recentemente, Estocolmo. Os
motins (não apenas protestos e movimentos sociais organizados) estariam se
tornarndo parte da caixa de ferramentas para reivindicar o direito à cidade? O
que aqueles aqui [em Londres], na capital financeira do mundo, podem aprender
dessas lutas em outras cidades?
Já que me convida a comentar essas
questões, temos Istambul. Quando você olha para a situação global, sente que há
uma situação vulcânica borbulhando debaixo da superfície da sociedade, e nunca
sabe quando e onde ele explodirá em seguida (quem diria Istambul, apesar de
estar claro para mim em minha visita anterior que havia lá muito descontentamento).
Penso que temos de nos preparar para tais erupções e construir, tanto quanto
seja possível, infraestruturas e formas organizacionais capazes de apoiar e
desenvolvê-las em movimentos sustentáveis.
Mesmo reconhecendo a inerente
legitimação da propriedade privada no interior do conceito, quais são suas
visões sobre a eficácia da implementação de uma taxa sobre o valor da terra** no Reino Unido? Você acha que ela poderia atingir algum dos
efeitos equalizadores advogados por seus proponentes?
Acredito que uma taxa sobre o valor
da terra poderia ajudar, mas, em último caso, não endereça o problema das
vastas extrações de riqueza por uma classe de rentistas que se tornou tão
poderosa nos anos recentes, particularmente em grandes cidades como Londres e Nova
Iorque, pois isto é uma das principais formas de espoliação que precisa ser
confrontada.***
* Bedroom tax é o
apelido dado a uma das mais discutidas mudanças nas políticas públicas
habitacionais impostas pelo pacote de reformas no bem-estar redigido no final
de 2012, sob o Welfare Reform Act. Traduzido literalmente como “taxa do quarto”, trata-se de uma
“penalidade de sub-ocupação” que reduz os benefícios dos beneficiários que
possuiriam espaço demais. Em vigor desde abril de 2013, a medida é
frequentemente comparada ao poll tax, ou imposto comunitário,
imposto por Margaret Thatcher no final de seu governo. A medida, que substituía
o imposto sobre o valor dos imóveis por uma taxa única a ser cobrada por
habitante (“por cabeça”), foi fortemente resistida pela população e é um dos
principais fatores atribuídos à queda da Primeira-Ministra neoliberal. [Nota do
Editor]
** No Brasil, em especial em São
Paulo, há um debate semelhante em torno da aplicabilidade dos instrumentos
que visam a promoção da função social
da propriedade, previstos pelo Estatuto da Cidade. O recente
manifesto Urbanistas pela justiça social destaca o IPTU
progressivo no tempo, o PEUC, o direito de preempção, e a desapropriação com
pagamento em títulos da dívida pública. [N.E.]
Publicado em
inglês no The Occupied
Times of London, de agosto de 2013.
A tradução é de Artur Renzo, para o Blog da Boitempo.
A tradução é de Artur Renzo, para o Blog da Boitempo.