Da habitação aos
salários, David Harvey diz que
examinar as contradições do capitalismo pode apontar o caminho para um mundo
alternativo. A reportagem é de Ronan
Burtenshaw e Aubrey Robinson,
publicada no sítio Red Pepper,
22-08-2013. A tradução é de Moisés
Sbardelotto.
Há cinco anos no
próximo mês, a Lehman Brothers pediu
a maior falência da história dos Estados
Unidos. O seu colapso apontou para o início da Grande Recessão – a mais
substancial crise histórica mundial do capitalismo desde a Segunda Guerra Mundial. Como
devemos entender os fundamentos desse sistema agora em crise? E, à medida que
ele trava guerra contra as pessoas que trabalham sob o pretexto da austeridade,
como podemos imaginar um mundo para além dele?
Poucos foram tão
influentes em responder a essas perguntas quanto o geógrafo marxista David Harvey.
Eis a entrevista.
Você está trabalhando em um novo livro
neste momento, The Seventeen Contradictions of Capitalism [As
17 contradições do capitalismo]. Por que o foco nas suas contradições?
A análise do capitalismo sugere que
há contradições significativas e fundamentais. Periodicamente, essas
contradições saem do controle e geram uma crise. Nós acabamos de passar por uma
crise, e eu acho que é importante perguntar quais foram as contradições que nos
levaram a isso. Como podemos analisar a crise em termos de contradições? Um dos
grandes ditados de Marx era
que a crise é sempre o resultado das contradições subjacentes. Portanto, temos
que lidar com elas em si mesmas, ao invés de lidar com os seus resultados.
Uma das contradições em que você se
foca é entre o uso e o valor de troca de uma mercadoria. Por que essa
contradição é tão fundamental para o capitalismo, e por que você usa a
habitação para ilustrá-la?
Todas as mercadorias devem ser
entendidas como tendo um valor de uso e um valor de troca. Se eu tenho um bife,
o valor de uso é que eu posso comê-lo, e o valor de troca é o quanto eu tive que
pagar por ele. Mas a habitação é muito interessante, nesse sentido, porque,
como um valor de uso, você pode entendê-la como abrigo, privacidade, um mundo
de relações afetivas com as pessoas, uma grande lista de coisas para as quais
você usa uma casa.
Mas depois há a questão de como você
consegue essa casa. Antigamente, as casas eram construídas pelas próprias
pessoas, e não havia absolutamente nenhum valor de troca. Depois, a partir do
século XVIII, você tem a construção de casas especulativa – os terraços
georgianos que eram construídos e vendidos posteriormente. Assim, as casas se
tornaram valores de troca para os consumidores na forma de poupança. Se eu
comprar uma casa e pagar a hipoteca sobre ela, eu posso acabar como
proprietário da casa. Então, eu tenho um bem. Por isso, eu passo a ficar muito
preocupado com a natureza do bem. Isso gera políticas interessantes – "não
no meu quintal", "eu não quero que pessoas que não se parecem comigo
se mudem para o meu lado". Então, você começa a ter a segregação nos
mercados da habitação, porque as pessoas querem proteger o valor das suas
poupanças.
Assim, cerca de 30 anos atrás, as
pessoas começaram a usar a habitação como uma forma de ganho especulativo. Você
podia comprar uma casa e 'virá-la' – você compra uma casa por 200 mil libras e
depois de um ano você recebe 250 mil libras por ela. Você ganhou 50 mil libras.
Então, porque não fazê-lo? O valor de troca assume o comando. E assim você tem
esse boom especulativo. No ano 2000, depois do colapso dos mercados acionários
globais, o capital excedente começou a fluir para a habitação. É um tipo
interessante de mercado. Se eu comprar uma casa, então os preços da habitação
sobem, e você diz: "Os preços da habitação estão subindo, eu deveria
comprar uma casa". E, então, aparecem outras pessoas. Você tem uma bolha
imobiliária. As pessoas são atraídas, e ela explode. Então, de repente, muitas
pessoas descobrem que não podem mais ter o valor de uso do imóvel, porque o
sistema de valor de troca o destruiu.
Isso levanta a questão: é uma boa
ideia permitir que o valor de uso na habitação, que é crucial para as pessoas,
seja definido por um sistema de valor de troca louco? Esse não é apenas um
problema com a habitação, mas também com coisas como a educação e a saúde. Em
muitos deles, nós ativamos a dinâmica do valor de troca na teoria de que ele
vai fornecer o valor de uso, mas, frequentemente, o que ele faz é estragar os
valores de uso, e as pessoas acabam não recebendo bons cuidados de saúde,
educação ou habitação. É por isso que eu acho muito importante olhar para a
distinção entre o valor de uso e o valor de troca.
Outra contradição que você descreve
envolve um processo de mudança ao longo do tempo entre as ênfases do lado da
oferta sobre a produção e as ênfases do lado da demanda sobre o consumo no
capitalismo. Você pode falar sobre como isso se manifestou no século XX e por
que isso é tão importante?
Uma das grandes questões é manter uma
demanda de mercado adequada para que você possa absorver o que quer que o
capital esteja produzindo. A outra é criar as condições sob as quais o capital
pode produzir de forma lucrativa. Essas condições de produção rentável
geralmente significam suprimir trabalho. Na medida em que você se envolve na
repressão salarial – pagando salários cada vez mais baixos –, a taxa de lucro
sobe.
Assim, do lado da produção, você quer
esmagar o trabalho o máximo que você puder. Isso lhe dá lucros elevados. Mas
então surge a pergunta: quem vai comprar o produto? Se o trabalho for
espremido, onde fica o seu mercado? Se você esmaga o trabalho demais, você
acaba em uma crise, porque não há demanda suficiente no mercado para absorver o
produto.
Foi interpretado amplamente depois de
um tempo que o problema da crise da década de 1930 foi a falta de demanda.
Houve, portanto, uma mudança para investimentos liderados pelo Estado na
construção de novas estradas, o WPA [a agência Works Progress Administration de obras públicas
sob o New Deal] e tudo isso. Eles disseram: "Vamos
revitalizar a economia pela demanda financiada pela dívida" e, ao fazer
isso, voltaram-se para a teoria keynesiana.
Então, você sai dos anos 1930 com uma
capacidade muito forte para gerir a demanda com muito envolvimento do Estado na
economia. Como resultado disso, você tem taxas de crescimento muito elevadas,
mas as altas taxas de crescimento são acompanhadas por um empoderamento da
classe trabalhadora com salários em ascensão e sindicatos mais fortes.
Sindicatos fortes e altos salários significam que a taxa de lucro começa a
cair. O capital está em crise porque não está reprimindo o trabalho o
suficiente, e por isso que tem a virada.
Nos anos 1970, eles se voltaram para Milton Friedman e para a Escola de Chicago, que se tornou dominante na teoria
econômica, e as pessoas começaram a prestar atenção no lado da oferta –
particularmente os salários. Você tem a repressão dos salários, que começa nos
anos 1970. Ronald Reagan ataca os controladores
do tráfego aéreo, Margaret Thatcher vai atrás
dos mineiros, Pinochet mata as pessoas de
esquerda. Você tem um ataque contra o trabalho – o que aumenta a taxa de lucro.
Quando você chega aos anos 1980, a
taxa de lucro tem um salto, porque os salários estão sendo reprimidos, e o
capital está indo bem. Mas aí vem o problema de onde você vai vender as coisas.
Nos anos 1990, isso realmente coberto pela economia da dívida. Você começa a
incentivar as pessoas a pedir muitos empréstimos – você começa a criar uma
economia do cartão de crédito e uma economia financiada em altas hipotecas na
habitação. Isso cobria o fato de que não havia demanda real lá fora.
Mas, no fim, isso explode em 2007-2008. O capital tem esta pergunta: "Você trabalha do lado da oferta ou
do lado da demanda?". A minha visão de um mundo anticapitalista é que você
deve unificar isso. Devemos voltar ao valor de uso. Que valores de uso as
pessoas precisam e como podemos organizar a produção de forma a que ela
corresponda a eles?
Parece que estamos em uma crise do lado
da oferta, e mesmo assim a austeridade é uma tentativa de encontrar uma solução
do lado da oferta. Como podemos conciliar isso?
Você tem que diferenciar entre os
interesses do capitalismo como um todo e o que é especificamente de interesse
da classe capitalista, ou de uma parte dela. Durante essa crise, grosso modo, a
classe capitalista se saiu muito bem. Alguns deles se queimaram, mas, na maior
parte, eles se saíram extremamente bem. De acordo com estudos recentes de países
da OCDE, a desigualdade social aumentou muito
significativamente desde o início da crise, o que significa que os benefícios
da crise foram fluindo para as classes mais altas.
Em outras palavras, eles não querem
sair da crise porque estão se saindo muito bem com isso. A população como um
todo está sofrendo, o capitalismo como um todo não está saudável, mas a classe
capitalista – particularmente uma oligarquia dentro dela – tem se saído
extremamente bem. Há muitas situações em que os capitalistas individuais que
operam em seus próprios interesses de classe realmente podem fazer coisas que
são muito prejudiciais para o sistema capitalista como um todo. Eu acho que
estamos nesse tipo de situação agora.
Você já disse muitas vezes recentemente
que uma das coisas que deveríamos fazer na esquerda é envolver a nossa
imaginação pós-capitalista, começando por fazer a pergunta sobre como seria um
mundo pós-capitalista.
Por que isso é tão importante? E, na sua opinião, como seria um mundo
pós-capitalista?
Isso é importante porque tem sido
martelado nas nossas cabeças por um considerável período de tempo que não há
alternativa. Uma das primeiras coisas que temos que fazer é pensar na
alternativa a fim de avançar rumo à sua criação. A esquerda se tornou tão
cúmplice com o neoliberalismo que você realmente não pode distinguir os seus
partidos políticos dos da direita, exceto em questões nacionais ou sociais. Na
economia política, não há muita diferença.
Temos que encontrar uma economia
política alternativa para a forma como o capitalismo funciona, e existem alguns
princípios. É por isso que as contradições são interessantes. Você olha para
cada um delas, como, por exemplo, a contradição entre o valor de uso e de
troca, e diz: "O mundo alternativo seria aquele em que nós definimos os
valores de uso". Então, nós nos concentramos nesses valores de uso e
tentamos diminuir o papel dos valores de troca. Ou na questão monetária –
precisamos de dinheiro para circular mercadorias, não há dúvida sobre isso. Mas
o problema com o dinheiro é que ele pode ser apropriado por pessoas privadas.
Ele se torna uma forma de poder pessoal e, depois, um desejo fetichista. As pessoas
mobilizam as suas vidas ao redor da busca desse dinheiro, mesmo quando ninguém
sabe que ele existe.
Então, nós temos que mudar o sistema
monetário – seja cobrando imposto de quaisquer excedentes que as pessoas
estejam começando a obter, seja chegando a um sistema monetário que se dissolva
e não possa ser armazenado, como as milhas aéreas. Mas, a fim de fazer isso,
você também tem que superar a dicotomia entre propriedade privada e Estado e
chegar a um regime de propriedade comum. E, em um certo ponto, você precisa
gerar uma renda básica para as pessoas, porque, se você tem uma forma de dinheiro que
seja antipoupança, então você precisa dar garantias às pessoas.
Você precisa dizer: "Você não
precisa economizar para um dia ruim, porque você sempre vai receber essa renda
básica, não importa o quê". Você tem que dar às pessoas essa segurança, em
vez das economias privadas e pessoais. Alterando cada uma dessas coisas
contraditórias, você chega a um tipo diferente de sociedade, que é muito mais
racional do que a que temos. O que está acontecendo exatamente agora é que nós
produzimos coisas e depois tentamos persuadir os consumidores a consumir tudo o
que produzimos, independentemente se eles realmente querem ou precisam disso.
Enquanto que deveríamos descobrir quais são as vontades e os desejos básicos
das pessoas e, então, mobilizar o sistema de produção para produzir isso.
Ao eliminar a dinâmica do valor de
troca, você pode reorganizar o sistema inteiro em um caminho diferente. Podemos
imaginar em que direção se moveria uma alternativa socialista, enquanto ela
irrompe a partir dessa forma dominante de acumulação de capital que gere tudo
hoje.
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