Márcio Pochmann
Impressiona como o debate acerca da oscilação inflacionária recente no Brasil se mantém ainda permeado pela visão liberal-conservadora. Não obstante as profundas modificações transcorridas nas economias mundial e nacional, o diagnóstico sobre a elevação do custo de vida prevalece a-histórico, como se as causas da inflação de hoje pudessem ser exatamente as mesmas de outros tempos e convergentes com a hipótese de igualdade plena entre países, o que torna o receituário idêntico para qualquer nação (Brasil, China, Moçambique ou Alemanha), independente do grau de desenvolvimento.
Pela perspectiva dominante, trata-se fundamentalmente da tradicional inflação de demanda que exige nada mais do que o velho tratamento: corte na demanda agregada. Em outras palavras, as classes trabalhadoras, vítimas do aumento do custo de vida, são novamente transformadas em vilões, seja pelo desemprego em desaceleração (mesmo que extremamente elevado), seja pelo salário que acompanha a inflação passada, ainda que bem distante dos ganhos de produtividade. Frente à maior complexidade das economias, diagnóstico e receituários seguem irretocáveis, indicando o empobrecimento de uma visão já arcaica. Da mesma forma com que não parece haver espaço decente para o questionamento dos erros seguidamente cometidos pelo abuso do receituário liberal-conservador, tampouco são construídas novas e ousadas ferramentas para tratar decentemente da inflação no capitalismo do Século XXI.
Nas economias avançadas, observa-se cada vez mais como o duplo movimento do pêndulo de Karl Polanyi se faz concreto. Após quase três décadas de predomínio neoliberal na condução das políticas econômicas e sociais, robustece o resgate - em novas bases - do papel do Estado. No aprofundamento da crise do setor privado dos EUA, o governo foi desesperadamente convocado de novo a lançar mão de diversas medidas antes tão criticadas por teóricos e praticantes do liberal-conservadorismo - que por lá, aliás, parecem taticamente ter desaparecido, enquanto por aqui atraiçoam como se fossem personalidades de plástico a viverem numa bolha social. Antes da vigência da contra-reforma neoliberal, desde o último quartel do Século XX, prevaleceu nas economias capitalistas o modo de regulação keynesiana pós-Depressão de 1929. Até o início da década de 1970, a regra de formação dos preços privados passava pela coordenação americana dos principais custos de produção em termos internacionais. De um lado, a estabilidade dos preços precedia o comando do dólar forte e das taxas de juros fixas praticadas pelo sistema financeiro, permitindo que o salário fosse transformado em fator quase fixo de produção, com pleno emprego e remuneração que incorporava a inflação passada e a produtividade plena. De outro, a governança do mundo tinha como referência as instituições do Pós-Guerra (ONU, Bird, FMI e Gatt) que se voltavam à ampliação da oferta de bens e serviços, enquanto no plano interno cada país constituía estoque regulador de produtos tanto para a segurança alimentar, como para a estabilização dos preços ao longo do tempo, mesmo nos momentos mais complexos, como os de excesso ou de escassez de bens. Com o esgotamento dos anos gloriosos do capitalismo do Pós-Guerra, ganhou ênfase a contra-reforma neoliberal, que procurou despolitizar a formação dos preços privados e bloquear a governança mundial. A estagflação da década de 1970, que colocou em xeque a garantia dos mercados de consumo de massa com preços estáveis, desembocou no impressionante movimento de centralização e concentração de capital. Gradualmente, os mercados nacionais oligopolizados foram transitando para o processo maior de monopolização internacional das estruturas de oferta e demanda de bens e serviços.
Com o Toyotismo globalizado superando o fordismo nacionalizado, a grande empresa passou a funcionar em rede para melhor aproveitar as vantagens comparativas prevalecentes no interior da economia-mundo, cada vez mais a operar sem estoques por decorrência da adoção do sistema just in time. A queda verificada nos custos de produção ocorreu simultaneamente à configuração de poucas e grandes empresas a dominar qualquer setor de atividade econômica e a depender do transporte intrafirmas, com custos rebaixados de energia e da modernização logística e informacional do processo de produção e distribuição. O vertiginoso aumento do poder econômico foi acompanhado por crescente exigência de apequenamento do poder do Estado e, em seqüência, dos trabalhadores. Assim, a contenção dos estoques reguladores, a privatização e a liberação comercial, financeira, tecnológica e produtiva também passaram pela desregulamentação dos mercados de trabalho, com vigência ampliada do desemprego e dos salários reais rebaixados pela desconexão da inflação passada e da produtividade física.
Paradoxalmente, a contra-reforma neoliberal das últimas três décadas conformou um projeto de globalização protagonizada por não mais de 500 grandes corporações transnacionais. Somente a soma do faturamento das três maiores empresas mundiais equivale ao PIB brasileiro, a 10ª economia do mundo. No Brasil, por exemplo, a Petrobras já é maior que o PIB argentino. Sem a regulação pública da competição intercapitalista, a governança mundial estruturada no imediato Pós-Guerra tornou-se disfuncional, especialmente quando a reprodução universal do modelo de crescimento da "economia do ter" parece encontrar os limites da sustentabilidade ambiental. Com a monopolização das estruturas de produção e distribuição, que torna as poucas corporações transnacionais cada vez maiores do que nações, as tradicionais agências multilaterais do sistema ONU perderam capacidade de garantir a governança mundial. Na decadência da economia americana, assiste-se ao deslocamento do centro dinâmico mundial para a Ásia, da mesma forma que - guardada a devida proporção - a Inglaterra passou o bastão no ingresso do Século XX aos EUA. Nos dias de hoje, assim como na decadência inglesa, o mundo ficou refém de muito poucos, que não desejam ver contrariado seus interesses privados. Depois de quase cinco anos de ação dos EUA no Iraque, o preço do barril de petróleo encontra-se bem acima dos cem dólares, mais de três vezes o valor do início do Século XXI, o que se reflete direta e indiretamente nos custos de produção da grande empresa em rede na economia-mundo. Da mesma forma, a estrutura de produção e distribuição segue cada vez mais monopolizada, permitindo a manipulação dos preços internacionais (commoditizados) justamente no momento de expansão das economias não desenvolvidas e da condição comercial externa mais aberta e sem estoque regulador. Tudo isso associado à instabilidade do sistema monetário internacional que, após a desordem da década de 1970, registra até hoje uma crise financeira a cada dois anos, como a atual vivida pelos países centrais.
Nesse sentido, a atual inflação global revela, de um lado, a força crescente dos monopólios privados a impor preços superiores aos custos para manutenção das margens fixas de lucro. De outro, o desequilíbrio de poder entre nação e corporação transnacional, cujo resultado tende a implicar aos trabalhadores, nos momentos de inflação, o prejuízo da perda do emprego ou da queda do salário.
Impressiona como o debate acerca da oscilação inflacionária recente no Brasil se mantém ainda permeado pela visão liberal-conservadora. Não obstante as profundas modificações transcorridas nas economias mundial e nacional, o diagnóstico sobre a elevação do custo de vida prevalece a-histórico, como se as causas da inflação de hoje pudessem ser exatamente as mesmas de outros tempos e convergentes com a hipótese de igualdade plena entre países, o que torna o receituário idêntico para qualquer nação (Brasil, China, Moçambique ou Alemanha), independente do grau de desenvolvimento.
Pela perspectiva dominante, trata-se fundamentalmente da tradicional inflação de demanda que exige nada mais do que o velho tratamento: corte na demanda agregada. Em outras palavras, as classes trabalhadoras, vítimas do aumento do custo de vida, são novamente transformadas em vilões, seja pelo desemprego em desaceleração (mesmo que extremamente elevado), seja pelo salário que acompanha a inflação passada, ainda que bem distante dos ganhos de produtividade. Frente à maior complexidade das economias, diagnóstico e receituários seguem irretocáveis, indicando o empobrecimento de uma visão já arcaica. Da mesma forma com que não parece haver espaço decente para o questionamento dos erros seguidamente cometidos pelo abuso do receituário liberal-conservador, tampouco são construídas novas e ousadas ferramentas para tratar decentemente da inflação no capitalismo do Século XXI.
Nas economias avançadas, observa-se cada vez mais como o duplo movimento do pêndulo de Karl Polanyi se faz concreto. Após quase três décadas de predomínio neoliberal na condução das políticas econômicas e sociais, robustece o resgate - em novas bases - do papel do Estado. No aprofundamento da crise do setor privado dos EUA, o governo foi desesperadamente convocado de novo a lançar mão de diversas medidas antes tão criticadas por teóricos e praticantes do liberal-conservadorismo - que por lá, aliás, parecem taticamente ter desaparecido, enquanto por aqui atraiçoam como se fossem personalidades de plástico a viverem numa bolha social. Antes da vigência da contra-reforma neoliberal, desde o último quartel do Século XX, prevaleceu nas economias capitalistas o modo de regulação keynesiana pós-Depressão de 1929. Até o início da década de 1970, a regra de formação dos preços privados passava pela coordenação americana dos principais custos de produção em termos internacionais. De um lado, a estabilidade dos preços precedia o comando do dólar forte e das taxas de juros fixas praticadas pelo sistema financeiro, permitindo que o salário fosse transformado em fator quase fixo de produção, com pleno emprego e remuneração que incorporava a inflação passada e a produtividade plena. De outro, a governança do mundo tinha como referência as instituições do Pós-Guerra (ONU, Bird, FMI e Gatt) que se voltavam à ampliação da oferta de bens e serviços, enquanto no plano interno cada país constituía estoque regulador de produtos tanto para a segurança alimentar, como para a estabilização dos preços ao longo do tempo, mesmo nos momentos mais complexos, como os de excesso ou de escassez de bens. Com o esgotamento dos anos gloriosos do capitalismo do Pós-Guerra, ganhou ênfase a contra-reforma neoliberal, que procurou despolitizar a formação dos preços privados e bloquear a governança mundial. A estagflação da década de 1970, que colocou em xeque a garantia dos mercados de consumo de massa com preços estáveis, desembocou no impressionante movimento de centralização e concentração de capital. Gradualmente, os mercados nacionais oligopolizados foram transitando para o processo maior de monopolização internacional das estruturas de oferta e demanda de bens e serviços.
Com o Toyotismo globalizado superando o fordismo nacionalizado, a grande empresa passou a funcionar em rede para melhor aproveitar as vantagens comparativas prevalecentes no interior da economia-mundo, cada vez mais a operar sem estoques por decorrência da adoção do sistema just in time. A queda verificada nos custos de produção ocorreu simultaneamente à configuração de poucas e grandes empresas a dominar qualquer setor de atividade econômica e a depender do transporte intrafirmas, com custos rebaixados de energia e da modernização logística e informacional do processo de produção e distribuição. O vertiginoso aumento do poder econômico foi acompanhado por crescente exigência de apequenamento do poder do Estado e, em seqüência, dos trabalhadores. Assim, a contenção dos estoques reguladores, a privatização e a liberação comercial, financeira, tecnológica e produtiva também passaram pela desregulamentação dos mercados de trabalho, com vigência ampliada do desemprego e dos salários reais rebaixados pela desconexão da inflação passada e da produtividade física.
Paradoxalmente, a contra-reforma neoliberal das últimas três décadas conformou um projeto de globalização protagonizada por não mais de 500 grandes corporações transnacionais. Somente a soma do faturamento das três maiores empresas mundiais equivale ao PIB brasileiro, a 10ª economia do mundo. No Brasil, por exemplo, a Petrobras já é maior que o PIB argentino. Sem a regulação pública da competição intercapitalista, a governança mundial estruturada no imediato Pós-Guerra tornou-se disfuncional, especialmente quando a reprodução universal do modelo de crescimento da "economia do ter" parece encontrar os limites da sustentabilidade ambiental. Com a monopolização das estruturas de produção e distribuição, que torna as poucas corporações transnacionais cada vez maiores do que nações, as tradicionais agências multilaterais do sistema ONU perderam capacidade de garantir a governança mundial. Na decadência da economia americana, assiste-se ao deslocamento do centro dinâmico mundial para a Ásia, da mesma forma que - guardada a devida proporção - a Inglaterra passou o bastão no ingresso do Século XX aos EUA. Nos dias de hoje, assim como na decadência inglesa, o mundo ficou refém de muito poucos, que não desejam ver contrariado seus interesses privados. Depois de quase cinco anos de ação dos EUA no Iraque, o preço do barril de petróleo encontra-se bem acima dos cem dólares, mais de três vezes o valor do início do Século XXI, o que se reflete direta e indiretamente nos custos de produção da grande empresa em rede na economia-mundo. Da mesma forma, a estrutura de produção e distribuição segue cada vez mais monopolizada, permitindo a manipulação dos preços internacionais (commoditizados) justamente no momento de expansão das economias não desenvolvidas e da condição comercial externa mais aberta e sem estoque regulador. Tudo isso associado à instabilidade do sistema monetário internacional que, após a desordem da década de 1970, registra até hoje uma crise financeira a cada dois anos, como a atual vivida pelos países centrais.
Nesse sentido, a atual inflação global revela, de um lado, a força crescente dos monopólios privados a impor preços superiores aos custos para manutenção das margens fixas de lucro. De outro, o desequilíbrio de poder entre nação e corporação transnacional, cujo resultado tende a implicar aos trabalhadores, nos momentos de inflação, o prejuízo da perda do emprego ou da queda do salário.
Márcio Pochmann, professor licenciado do Instituto de Economia (IE) e do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (CESIT) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É presidente do Ipea.
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