Para Henrique Amorim “as formas de exploração do trabalho continuam sendo as mesmas e não há necessariamente uma nova forma de organização da produção que altere, por conta da inserção de novas tecnologias, o processo de ampliação da produtividade como característica central da organização capitalista da produção”. Em entrevista, concedida por e-mail, o sociólogo analisa a relação e a influência do desenvolvimento das novas tecnologias no trabalho. Assim, ele trata de questões que cercam este tema, como a possível transição da sociedade industrial fordista para uma sociedade pós-industrial. Álias, ele discorda desta tese. “As teses que compõem a teoria dos novos movimentos sociais, das sociedades pós-industriais ou mesmo das sociedades pós-materialistas se constituem em resposta a essa leitura de sujeito e de luta política. Seu objetivo foi o de ampliar as formas de participação dos indivíduos ou grupos de indivíduos na cena política a outras esferas da sociedade”, argumentou.
Henrique Jose Domiciano Amorim é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas, onde também realizou o mestrado em Sociologia e o doutorado em Ciências Sociais. Recebeu o título de pós-doutor da École des Hautes Études en Sciences Sociales e da Unicamp. Atualmente, é pesquisador da Unicamp. Escreveu Trabalho Imaterial: Marx e o Debate Contemporâneo (São Paulo: Annablume, 2009) e Teoria Social e Reducionismo Analítico: para uma crítica ao debate sobre a centralidade do trabalho (Caxias do Sul: Editora da Universidade Estadual de Caxias do Sul, 2006). Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como o senhor caracteriza a ruptura da concepção de trabalho da sociedade industrial motivada pela mudança das forças produtivas, pelo surgimento de novas tecnologias e pela mudança na forma de organizar o trabalho?
Henrique Amorim – Não vejo como seria possível apontar para uma ruptura como essa. As formas de exploração do trabalho continuam sendo as mesmas e não há necessariamente uma nova forma de organização da produção que altere, por conta da inserção de novas tecnologias, o processo de ampliação da produtividade como característica central da organização capitalista da produção. O desenvolvimento das forças produtivas se apresenta como uma das características centrais dessa ampliação e, por conseguinte, do lucro capitalista. Exatamente por conta disso não é possível pensar em uma alteração estrutural das formas de obtenção do lucro via produção que sejam motivadas pelo desenvolvimento das forças produtivas. É bom que se frise que não há nada de neutro no desenvolvimento dessas forças. Elas têm como objetivo final atender às demandas do processo de valorização. Nesse sentido, toda a ciência e tecnologia, introduzidas no universo dos processos de trabalho, cumprem o papel não apenas econômico de valorização do capital, mas também político de ampliação do controle dos coletivos de trabalho.
IHU On-Line – O senhor concorda com a tese de que estamos transitando da sociedade industrial-fordista, para a sociedade pós-industrial?
Henrique Amorim – Não, não concordo. Creio que as teses sobre a passagem de uma sociedade de tipo industrial para a pós-industrial estão assentadas em um falso problema que acaba por caracterizar falsas respostas. Explico: As leituras que apontam para a constituição de uma sociedade pós-industrial, ou pós-materialista, ou mesmo uma sociedade de serviços, partem da crítica de uma concepção de trabalho e de classe trabalhadora particular, difundida, sobretudo, pelos partidos comunistas no mundo sob influência do partido comunista soviético. Essa concepção ortodoxa de trabalho que se desenvolve até a década de 1970 tem como característica central a indicação de que o trabalho imediato-industrial é o meio pelo qual toda luta política deve ser constituída e, por conseguinte, a tese segundo a qual a classe que ocupa tal posição na estrutura produtiva é o sujeito da revolução.
As teses que compõem a teoria dos novos movimentos sociais, das sociedades pós-industriais ou mesmo das sociedades pós-materialistas se constituem em resposta a essa leitura de sujeito e de luta política. Seu objetivo foi o de ampliar as formas de participação dos indivíduos ou grupos de indivíduos na cena política a outras esferas da sociedade. Não obstante, creio que apesar de hegemônica, essa leitura ortodoxa de um operariado como portador de uma “missão histórica” revolucionária é equivocada. Há, em outras tendências, dentro do marxismo mesmo, críticas à ideia de sujeito, e também à tese de que uma ou outra classe seria aquela a ser considerada a classe capaz, por essência, de realizar a revolução ou mesmo de realizar lutas sociais de cunho anticapitalista. Uma dessas correntes é a althusseriana, mas não somente ela. A literatura que se ergue em torno do rechaço da teoria das classes e da teoria do valor-trabalho de Marx tendo como mote as análises que se restringiram à fábrica como locus de toda a luta política, estão, assim, respondendo a uma parte, a meu ver, equivocada das análises sobre as classes sociais e sobre a possibilidade de construção de forças sociais dentro e fora das indústrias. Ao ter, como mencionei, um ponto de partida restrito, tendem a diagnosticar as possibilidades de intervenção política em direta oposição a ele. Se tais teses partem de um falso problema, acabam por construir, em oposição, falsas respostas.
Portanto, creio que a literatura marxista ortodoxa valeu-se de parâmetros físicos para compreender o que seria material ou não material na produção e no trabalho. Ela parece ter sido constituída sob a rubrica inversa às teses do marxismo ortodoxo até então. Reproduz-se uma oposição teoricamente ineficaz e não dialética entre material e imaterial como eixo explicativo de todo debate nos anos que se seguem. Uma oposição que parece, de um lado, estar presente em dicotomias enrijecidas como as de trabalho produtivo e improdutivo, de trabalho intelectual e manual, de classe operária e classe trabalhadora e, de outro, que estão expressas nos termos do trabalho cognitivo e trabalho manual, da sociedade do conhecimento e sociedade industrial, do capital imaterial e capital material.
IHU On-Line – O trabalho, o sujeito do trabalho e a subjetividade manifestada no trabalho passam por que tipos de mutações?
Henrique Amorim – A ideia de sujeito remonta a concepção de consciência de classe que pessoalmente tenho discordância. Da leitura que faço de Marx, não acredito poder afirmar a priori qual é o grupo de indivíduos mais aptos a fazer a revolução ou a enfrentar o Estado burguês. No escopo de uma definição ampliada de classe trabalhadora, até seria possível afirmar que estaria, dentro desse espectro, a constituição de forças sociais revolucionárias. No entanto, seria necessário, antes disso, precisar o que é uma classe social e se ela existe de fato. Do meu ponto de vista, existem relações de classe, e não uma classe social trabalhadora já constituída como força social, como uma força revolucionária ou anticapitalista. Existem sim relações de classe que remontam à composição da estrutura social. Não vejo, assim, como seria possível elencar critérios sociológicos ou empíricos que comprovassem a participação de indivíduos em uma ou outra classe.
Como nos sugere Bensaïd: “Marx (…) não procede quase por definição (por enumeração de critérios), mas por ‘determinação’ de conceitos (…) que tendem ao concreto, articulando-se no seio da totalidade. (…) A noção de classe, segundo Marx, não é redutível nem a um atributo de que seriam portadoras as unidades individuais que a compõem, nem a soma dessas unidades. Ela é algo diferente. Uma totalidade relacional e não uma simples soma”. Nesse sentido: “a realidade dinâmica das classes não cai nunca no domínio inerte da objetividade pura. Sua coesão é irredutível à unidade formal de uma simples coleção de indivíduos”. [1]
Nesse sentido, o trabalho constitui, entre outras atividades, uma forma de reprodução das relações sociais capitalistas. As mutações no trabalho devem ser entendidas dentro de um conjunto de relações sociais que reproduzem a dinâmica da exploração e da dominação do trabalhador pelo capital. Ter atenção para como essa exploração e dominação se acentuam é uma tarefa dos marxistas e dos partidos e movimentos sociais de esquerda. No entanto, projetar a constituição de forças sociais a partir dessas mutações seria, no mínino, ingenuidade.
IHU On-Line – Para muitos, a marca distintiva que caracteriza a sociedade pós-industrial é a emergência da economia do imaterial e do trabalho imaterial. Como o senhor definiria os conceitos de economia imaterial e trabalho imaterial?
Henrique Amorim – Creio que a tese central da formação de uma sociedade pós-industrial está ancorada em um falso problema. Este falso problema diz respeito, entre outras questões, à distinção entre trabalho material e trabalho imaterial. Não vejo como definir distintamente produção ou economia material de imaterial. Se o fizesse, estaria concordando com a ideia de que o material se forma por trabalhos com predominância manual e o imaterial de trabalhos com predominância intelectual. Estaria concordando também com a ideia de que o conteúdo do trabalho ou mesmo da mercadoria produzida informam a natureza do trabalho.
Para mim, essa separação não pode ser feita. A característica central de toda a produção capitalista deve ser pensada na forma como ela é organizada, e não na matéria física ou abstrata que é utilizada na produção de mercadoria. Não importa, dessa maneira, se estamos falando da produção de uma mercadoria conhecimento ou de uma mercadoria máquina, pelo contrário, o importante é analisar como, em que condições, sob que tipo de empreendimento, em que encontro de relações sociais o conhecimento e a máquina foram produzidos. Em termos gerais, ambos podem ter sido produzidos na forma de uma mercadoria capitalista: redução do tempo global de produção com aumento de produtividade, gerando com isso uma diferença para cima entre o capital inicial e o final, informada pelo pagamento de um salário que não expressa o tempo total gasto na produção.
Nestes termos, inferir que a qualificação profissional do trabalhador, a matéria-prima trabalhada, os recursos utilizados representam, informam e constituem as relações sociais que estruturam o processo de trabalho não impõem a designação de uma materialidade que determina o conjunto de relações sociais.
IHU On-Line – Na teoria marxista, o que determina o valor de uma mercadoria é a quantidade de trabalho despendido para produzi-la, mais especificamente, a média do tempo utilizado de acordo com o grau de desenvolvimento das forças produtivas. Como interpretar o conceito valor com a emergência do trabalho imaterial?
Henrique Amorim – Não há lógica em afirmar que a estrutura social pode ou será transformada com o desenvolvimento das forças produtivas envolvidas no processo de produção de mercadorias, já que tais forças produtivas, em última instância, são expressão de relações sociais de produção cristalizadas [2]. A materialidade é dada, então, pelo conjunto de relações sociais estabelecidas, e não pela fisicidade dos elementos ativos em um processo de trabalho. Falar em materialismo não é simplesmente indicar o caráter tangível das coisas, é muito mais que isso, trata-se de reconhecer as relações efetivas que constituem nossa existência sob um determinado conjunto de relações sociais.
A diferenciação, portanto, entre material e imaterial não se relaciona, nestes termos, ao valor de troca, ao trabalho abstrato, mas sim ao valor de uso, ao trabalho concreto. Portanto, só faz sentido diferenciar a materialidade e a imaterialidade do trabalho quanto ao conteúdo do trabalho e não quanto à produção do valor de troca, já que ele continua determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário à produção de mercadorias distintas. Material ou imaterial, a valorização do capital tem fundamento na relação de troca entre mercadorias, isto é, em sua forma, e não no conteúdo do trabalho empregado. Nesse sentido, não há diferença conceitual entre a produção material ou imaterial.
A produção de mais-valia, ou mais valor, não é caracterizada pela relação de transformação física dos objetos trabalhados. A teoria de Marx evidencia um conjunto específico de relações sociais que tem por característica central a produção de mercadorias sob um objetivo particular. O objetivo da produção capitalista não é produzir valor, mas sim produzir um número maior de mercadorias em um tempo cada vez mais reduzido. O valor-trabalho deve, então, ser considerado como um desdobramento das atividades e das relações sociais que engendram a produção capitalista. A discussão sobre a materialidade e a imaterialidade do trabalho pode ser relacionada muito mais à especificidade da produção capitalista, ou seja, ao objetivo de valorização do capital baseado na ampliação das mercadorias produzidas. Isto é, quanto maior for a produção (em um tempo menor), maior será a mais-valia relativa constitutiva do conjunto de mercadorias. As relações sociais que dão base e garantem essa empreitada sequer se valem da natureza física das coisas.
IHU On-Line – No trabalho imaterial, o tempo de trabalho já não é necessariamente medido, pois tempo de trabalho e tempo de não trabalho confundem-se, sua linha divisória é tênue. Nesse sentido, como fica o conceito clássico de mais-valia?
Henrique Amorim – Marx definiu, em O Capital, o valor de troca como a expressão fenomênica do valor que é agregado à mercadoria com base na exploração do trabalho; no tempo médio de trabalho socialmente necessário para a produção da mercadoria. Assim, a medida do valor para Marx é o tempo de trabalho despendido na produção, é a utilização da força de trabalho na produção medida em unidades de tempo, sendo que esse valor é fruto das necessidades humanas, sejam elas originadas do estômago ou da fantasia [3]. Portanto, Marx desenvolve a teoria do valor-trabalho como uma teoria da exploração do trabalho. Fundamenta-se, dessa forma, uma análise social que consagra a produção de mercadorias (materiais ou não) como seu objeto científico central e o trabalho abstrato como elemento decisivo para a valorização do capital.
A constituição do valor de troca e, posteriormente, do dinheiro como equivalente geral e mercadoria específica são os elementos que constituem a base do raciocínio de Marx sobre o processo de exploração do trabalho com o objetivo de ampliação da mais-valia relativa com base na redução do tempo de trabalho necessário e aumento da produtividade. O trabalho abstrato é caracterizado, assim, como um trabalho em geral que expressa quantidades diferentes de valores de troca das mercadorias, tornando-as socialmente intercambiáveis, portanto, um regulador das trocas de mercadorias distintas, isto é, com diferentes quantidades de tempo médio socialmente necessário para a sua produção.
Se a relação social central nas sociedades capitalistas fundamenta-se pela produção de mercadorias, e essas mercadorias se constituem pela relação de exploração, baseada na extração de mais trabalho, produtivo é todo aquele trabalho ou coletivo de trabalho que esteja subordinado a essa relação, que tem como objetivo reproduzir as relações sociais que dão base à produção de valores de troca. É possível, ademais, admitirmos que o núcleo de extração de mais trabalho ainda hoje esteja vinculado à produção fabril. No entanto, isso não indica que a produção de coisas físicas é a única a produzir mais-valia.
IHU On-Line – Em suas pesquisas e entrevistas com intelectuais franceses sobre a relação entre as novas tecnologias da informação e a teoria do valor-trabalho, a que conclusões o senhor chegou?
Henrique Amorim – O interessante de fazer um estudo como esse e fundamentá-lo em opiniões diversas é que as conclusões tornam-se cada vez mais provisórias. Isso não interfere, no entanto, nas possibilidades e na necessidade de avançarmos algumas hipóteses. Muitas delas foram desenvolvidas ao longo das questões anteriores.
1. A ideia de que as classes sociais são e não são existentes e que se formam em momentos esparsos como forças sociais revolucionárias ou anticapitalistas e também de que elas não podem ser pensadas como um enumerado de indivíduos que são colocados dentro ou fora dela de acordo com critérios empíricos arbitrariamente levantados é uma importante conclusão.
2. Que a materialidade do trabalho e da produção não está vinculada ao conteúdo do trabalho ou das qualificações que o trabalhador encerra. A materialidade está vinculada ao conjunto de relações sociais que informam uma prática social que passa pela organização do processo de produção como elemento de constituição de um modo de vida específico. A organização da produção é, portanto, a cristalização de relações sociais e como tal não pode ser pensada com base no caráter físico das matérias envolvidas. A imaterialidade do produto ou da qualificação profissional que é utilizada tem a ver apenas com o trabalho concreto, com a utilidade do produto, mas nunca com o trabalho abstrato, ou seja, não tem a ver com a formação de mais-valor. Nesse sentido, a informação como uma mercadoria deve ser considerada dentro do universo da produção de valor estrito senso já que está sob a mesma lógica que informa a produção de mercadorias da indústria tradicional. Entre muitas questões que ainda estou trabalhando, vejo como central a análise da teoria do valor-trabalho como uma teoria heurística, ou seja, ela, como também a teoria das classes de Marx, não podem ser pensadas com base em uma comprovação empírica. Não é possível dizer, portanto, quanto de valor existe em uma mercadoria, como também não é possível dizer quantos indivíduos compõem uma classe social. A teoria do valor-trabalho de Marx não pode ser considerada uma teoria aritmética. Ela é uma ferramenta de análise que não se confunde com a própria realidade observada, mesmo que seja por essa última dialeticamente constituída.
Notas:
[1] Daniel Bensaïd. Marx, O Intempestivo: Grandezas e Misérias de uma aventura crítica (séculos XIX e XX). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, pp. 143, 147 e 149 respectivamente.
[2] Para Bihr (2001, p. 57, tomo I), “(…) As forças produtivas constituem em conjunto o conteúdo ao mesmo tempo material e social das relações de produção”.
[3] Karl Marx. O Capital. Rio de Janeiro. Nova cultural, 1988, p. 45.
(IHU On-line)
Henrique Jose Domiciano Amorim é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas, onde também realizou o mestrado em Sociologia e o doutorado em Ciências Sociais. Recebeu o título de pós-doutor da École des Hautes Études en Sciences Sociales e da Unicamp. Atualmente, é pesquisador da Unicamp. Escreveu Trabalho Imaterial: Marx e o Debate Contemporâneo (São Paulo: Annablume, 2009) e Teoria Social e Reducionismo Analítico: para uma crítica ao debate sobre a centralidade do trabalho (Caxias do Sul: Editora da Universidade Estadual de Caxias do Sul, 2006). Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como o senhor caracteriza a ruptura da concepção de trabalho da sociedade industrial motivada pela mudança das forças produtivas, pelo surgimento de novas tecnologias e pela mudança na forma de organizar o trabalho?
Henrique Amorim – Não vejo como seria possível apontar para uma ruptura como essa. As formas de exploração do trabalho continuam sendo as mesmas e não há necessariamente uma nova forma de organização da produção que altere, por conta da inserção de novas tecnologias, o processo de ampliação da produtividade como característica central da organização capitalista da produção. O desenvolvimento das forças produtivas se apresenta como uma das características centrais dessa ampliação e, por conseguinte, do lucro capitalista. Exatamente por conta disso não é possível pensar em uma alteração estrutural das formas de obtenção do lucro via produção que sejam motivadas pelo desenvolvimento das forças produtivas. É bom que se frise que não há nada de neutro no desenvolvimento dessas forças. Elas têm como objetivo final atender às demandas do processo de valorização. Nesse sentido, toda a ciência e tecnologia, introduzidas no universo dos processos de trabalho, cumprem o papel não apenas econômico de valorização do capital, mas também político de ampliação do controle dos coletivos de trabalho.
IHU On-Line – O senhor concorda com a tese de que estamos transitando da sociedade industrial-fordista, para a sociedade pós-industrial?
Henrique Amorim – Não, não concordo. Creio que as teses sobre a passagem de uma sociedade de tipo industrial para a pós-industrial estão assentadas em um falso problema que acaba por caracterizar falsas respostas. Explico: As leituras que apontam para a constituição de uma sociedade pós-industrial, ou pós-materialista, ou mesmo uma sociedade de serviços, partem da crítica de uma concepção de trabalho e de classe trabalhadora particular, difundida, sobretudo, pelos partidos comunistas no mundo sob influência do partido comunista soviético. Essa concepção ortodoxa de trabalho que se desenvolve até a década de 1970 tem como característica central a indicação de que o trabalho imediato-industrial é o meio pelo qual toda luta política deve ser constituída e, por conseguinte, a tese segundo a qual a classe que ocupa tal posição na estrutura produtiva é o sujeito da revolução.
As teses que compõem a teoria dos novos movimentos sociais, das sociedades pós-industriais ou mesmo das sociedades pós-materialistas se constituem em resposta a essa leitura de sujeito e de luta política. Seu objetivo foi o de ampliar as formas de participação dos indivíduos ou grupos de indivíduos na cena política a outras esferas da sociedade. Não obstante, creio que apesar de hegemônica, essa leitura ortodoxa de um operariado como portador de uma “missão histórica” revolucionária é equivocada. Há, em outras tendências, dentro do marxismo mesmo, críticas à ideia de sujeito, e também à tese de que uma ou outra classe seria aquela a ser considerada a classe capaz, por essência, de realizar a revolução ou mesmo de realizar lutas sociais de cunho anticapitalista. Uma dessas correntes é a althusseriana, mas não somente ela. A literatura que se ergue em torno do rechaço da teoria das classes e da teoria do valor-trabalho de Marx tendo como mote as análises que se restringiram à fábrica como locus de toda a luta política, estão, assim, respondendo a uma parte, a meu ver, equivocada das análises sobre as classes sociais e sobre a possibilidade de construção de forças sociais dentro e fora das indústrias. Ao ter, como mencionei, um ponto de partida restrito, tendem a diagnosticar as possibilidades de intervenção política em direta oposição a ele. Se tais teses partem de um falso problema, acabam por construir, em oposição, falsas respostas.
Portanto, creio que a literatura marxista ortodoxa valeu-se de parâmetros físicos para compreender o que seria material ou não material na produção e no trabalho. Ela parece ter sido constituída sob a rubrica inversa às teses do marxismo ortodoxo até então. Reproduz-se uma oposição teoricamente ineficaz e não dialética entre material e imaterial como eixo explicativo de todo debate nos anos que se seguem. Uma oposição que parece, de um lado, estar presente em dicotomias enrijecidas como as de trabalho produtivo e improdutivo, de trabalho intelectual e manual, de classe operária e classe trabalhadora e, de outro, que estão expressas nos termos do trabalho cognitivo e trabalho manual, da sociedade do conhecimento e sociedade industrial, do capital imaterial e capital material.
IHU On-Line – O trabalho, o sujeito do trabalho e a subjetividade manifestada no trabalho passam por que tipos de mutações?
Henrique Amorim – A ideia de sujeito remonta a concepção de consciência de classe que pessoalmente tenho discordância. Da leitura que faço de Marx, não acredito poder afirmar a priori qual é o grupo de indivíduos mais aptos a fazer a revolução ou a enfrentar o Estado burguês. No escopo de uma definição ampliada de classe trabalhadora, até seria possível afirmar que estaria, dentro desse espectro, a constituição de forças sociais revolucionárias. No entanto, seria necessário, antes disso, precisar o que é uma classe social e se ela existe de fato. Do meu ponto de vista, existem relações de classe, e não uma classe social trabalhadora já constituída como força social, como uma força revolucionária ou anticapitalista. Existem sim relações de classe que remontam à composição da estrutura social. Não vejo, assim, como seria possível elencar critérios sociológicos ou empíricos que comprovassem a participação de indivíduos em uma ou outra classe.
Como nos sugere Bensaïd: “Marx (…) não procede quase por definição (por enumeração de critérios), mas por ‘determinação’ de conceitos (…) que tendem ao concreto, articulando-se no seio da totalidade. (…) A noção de classe, segundo Marx, não é redutível nem a um atributo de que seriam portadoras as unidades individuais que a compõem, nem a soma dessas unidades. Ela é algo diferente. Uma totalidade relacional e não uma simples soma”. Nesse sentido: “a realidade dinâmica das classes não cai nunca no domínio inerte da objetividade pura. Sua coesão é irredutível à unidade formal de uma simples coleção de indivíduos”. [1]
Nesse sentido, o trabalho constitui, entre outras atividades, uma forma de reprodução das relações sociais capitalistas. As mutações no trabalho devem ser entendidas dentro de um conjunto de relações sociais que reproduzem a dinâmica da exploração e da dominação do trabalhador pelo capital. Ter atenção para como essa exploração e dominação se acentuam é uma tarefa dos marxistas e dos partidos e movimentos sociais de esquerda. No entanto, projetar a constituição de forças sociais a partir dessas mutações seria, no mínino, ingenuidade.
IHU On-Line – Para muitos, a marca distintiva que caracteriza a sociedade pós-industrial é a emergência da economia do imaterial e do trabalho imaterial. Como o senhor definiria os conceitos de economia imaterial e trabalho imaterial?
Henrique Amorim – Creio que a tese central da formação de uma sociedade pós-industrial está ancorada em um falso problema. Este falso problema diz respeito, entre outras questões, à distinção entre trabalho material e trabalho imaterial. Não vejo como definir distintamente produção ou economia material de imaterial. Se o fizesse, estaria concordando com a ideia de que o material se forma por trabalhos com predominância manual e o imaterial de trabalhos com predominância intelectual. Estaria concordando também com a ideia de que o conteúdo do trabalho ou mesmo da mercadoria produzida informam a natureza do trabalho.
Para mim, essa separação não pode ser feita. A característica central de toda a produção capitalista deve ser pensada na forma como ela é organizada, e não na matéria física ou abstrata que é utilizada na produção de mercadoria. Não importa, dessa maneira, se estamos falando da produção de uma mercadoria conhecimento ou de uma mercadoria máquina, pelo contrário, o importante é analisar como, em que condições, sob que tipo de empreendimento, em que encontro de relações sociais o conhecimento e a máquina foram produzidos. Em termos gerais, ambos podem ter sido produzidos na forma de uma mercadoria capitalista: redução do tempo global de produção com aumento de produtividade, gerando com isso uma diferença para cima entre o capital inicial e o final, informada pelo pagamento de um salário que não expressa o tempo total gasto na produção.
Nestes termos, inferir que a qualificação profissional do trabalhador, a matéria-prima trabalhada, os recursos utilizados representam, informam e constituem as relações sociais que estruturam o processo de trabalho não impõem a designação de uma materialidade que determina o conjunto de relações sociais.
IHU On-Line – Na teoria marxista, o que determina o valor de uma mercadoria é a quantidade de trabalho despendido para produzi-la, mais especificamente, a média do tempo utilizado de acordo com o grau de desenvolvimento das forças produtivas. Como interpretar o conceito valor com a emergência do trabalho imaterial?
Henrique Amorim – Não há lógica em afirmar que a estrutura social pode ou será transformada com o desenvolvimento das forças produtivas envolvidas no processo de produção de mercadorias, já que tais forças produtivas, em última instância, são expressão de relações sociais de produção cristalizadas [2]. A materialidade é dada, então, pelo conjunto de relações sociais estabelecidas, e não pela fisicidade dos elementos ativos em um processo de trabalho. Falar em materialismo não é simplesmente indicar o caráter tangível das coisas, é muito mais que isso, trata-se de reconhecer as relações efetivas que constituem nossa existência sob um determinado conjunto de relações sociais.
A diferenciação, portanto, entre material e imaterial não se relaciona, nestes termos, ao valor de troca, ao trabalho abstrato, mas sim ao valor de uso, ao trabalho concreto. Portanto, só faz sentido diferenciar a materialidade e a imaterialidade do trabalho quanto ao conteúdo do trabalho e não quanto à produção do valor de troca, já que ele continua determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário à produção de mercadorias distintas. Material ou imaterial, a valorização do capital tem fundamento na relação de troca entre mercadorias, isto é, em sua forma, e não no conteúdo do trabalho empregado. Nesse sentido, não há diferença conceitual entre a produção material ou imaterial.
A produção de mais-valia, ou mais valor, não é caracterizada pela relação de transformação física dos objetos trabalhados. A teoria de Marx evidencia um conjunto específico de relações sociais que tem por característica central a produção de mercadorias sob um objetivo particular. O objetivo da produção capitalista não é produzir valor, mas sim produzir um número maior de mercadorias em um tempo cada vez mais reduzido. O valor-trabalho deve, então, ser considerado como um desdobramento das atividades e das relações sociais que engendram a produção capitalista. A discussão sobre a materialidade e a imaterialidade do trabalho pode ser relacionada muito mais à especificidade da produção capitalista, ou seja, ao objetivo de valorização do capital baseado na ampliação das mercadorias produzidas. Isto é, quanto maior for a produção (em um tempo menor), maior será a mais-valia relativa constitutiva do conjunto de mercadorias. As relações sociais que dão base e garantem essa empreitada sequer se valem da natureza física das coisas.
IHU On-Line – No trabalho imaterial, o tempo de trabalho já não é necessariamente medido, pois tempo de trabalho e tempo de não trabalho confundem-se, sua linha divisória é tênue. Nesse sentido, como fica o conceito clássico de mais-valia?
Henrique Amorim – Marx definiu, em O Capital, o valor de troca como a expressão fenomênica do valor que é agregado à mercadoria com base na exploração do trabalho; no tempo médio de trabalho socialmente necessário para a produção da mercadoria. Assim, a medida do valor para Marx é o tempo de trabalho despendido na produção, é a utilização da força de trabalho na produção medida em unidades de tempo, sendo que esse valor é fruto das necessidades humanas, sejam elas originadas do estômago ou da fantasia [3]. Portanto, Marx desenvolve a teoria do valor-trabalho como uma teoria da exploração do trabalho. Fundamenta-se, dessa forma, uma análise social que consagra a produção de mercadorias (materiais ou não) como seu objeto científico central e o trabalho abstrato como elemento decisivo para a valorização do capital.
A constituição do valor de troca e, posteriormente, do dinheiro como equivalente geral e mercadoria específica são os elementos que constituem a base do raciocínio de Marx sobre o processo de exploração do trabalho com o objetivo de ampliação da mais-valia relativa com base na redução do tempo de trabalho necessário e aumento da produtividade. O trabalho abstrato é caracterizado, assim, como um trabalho em geral que expressa quantidades diferentes de valores de troca das mercadorias, tornando-as socialmente intercambiáveis, portanto, um regulador das trocas de mercadorias distintas, isto é, com diferentes quantidades de tempo médio socialmente necessário para a sua produção.
Se a relação social central nas sociedades capitalistas fundamenta-se pela produção de mercadorias, e essas mercadorias se constituem pela relação de exploração, baseada na extração de mais trabalho, produtivo é todo aquele trabalho ou coletivo de trabalho que esteja subordinado a essa relação, que tem como objetivo reproduzir as relações sociais que dão base à produção de valores de troca. É possível, ademais, admitirmos que o núcleo de extração de mais trabalho ainda hoje esteja vinculado à produção fabril. No entanto, isso não indica que a produção de coisas físicas é a única a produzir mais-valia.
IHU On-Line – Em suas pesquisas e entrevistas com intelectuais franceses sobre a relação entre as novas tecnologias da informação e a teoria do valor-trabalho, a que conclusões o senhor chegou?
Henrique Amorim – O interessante de fazer um estudo como esse e fundamentá-lo em opiniões diversas é que as conclusões tornam-se cada vez mais provisórias. Isso não interfere, no entanto, nas possibilidades e na necessidade de avançarmos algumas hipóteses. Muitas delas foram desenvolvidas ao longo das questões anteriores.
1. A ideia de que as classes sociais são e não são existentes e que se formam em momentos esparsos como forças sociais revolucionárias ou anticapitalistas e também de que elas não podem ser pensadas como um enumerado de indivíduos que são colocados dentro ou fora dela de acordo com critérios empíricos arbitrariamente levantados é uma importante conclusão.
2. Que a materialidade do trabalho e da produção não está vinculada ao conteúdo do trabalho ou das qualificações que o trabalhador encerra. A materialidade está vinculada ao conjunto de relações sociais que informam uma prática social que passa pela organização do processo de produção como elemento de constituição de um modo de vida específico. A organização da produção é, portanto, a cristalização de relações sociais e como tal não pode ser pensada com base no caráter físico das matérias envolvidas. A imaterialidade do produto ou da qualificação profissional que é utilizada tem a ver apenas com o trabalho concreto, com a utilidade do produto, mas nunca com o trabalho abstrato, ou seja, não tem a ver com a formação de mais-valor. Nesse sentido, a informação como uma mercadoria deve ser considerada dentro do universo da produção de valor estrito senso já que está sob a mesma lógica que informa a produção de mercadorias da indústria tradicional. Entre muitas questões que ainda estou trabalhando, vejo como central a análise da teoria do valor-trabalho como uma teoria heurística, ou seja, ela, como também a teoria das classes de Marx, não podem ser pensadas com base em uma comprovação empírica. Não é possível dizer, portanto, quanto de valor existe em uma mercadoria, como também não é possível dizer quantos indivíduos compõem uma classe social. A teoria do valor-trabalho de Marx não pode ser considerada uma teoria aritmética. Ela é uma ferramenta de análise que não se confunde com a própria realidade observada, mesmo que seja por essa última dialeticamente constituída.
Notas:
[1] Daniel Bensaïd. Marx, O Intempestivo: Grandezas e Misérias de uma aventura crítica (séculos XIX e XX). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, pp. 143, 147 e 149 respectivamente.
[2] Para Bihr (2001, p. 57, tomo I), “(…) As forças produtivas constituem em conjunto o conteúdo ao mesmo tempo material e social das relações de produção”.
[3] Karl Marx. O Capital. Rio de Janeiro. Nova cultural, 1988, p. 45.
(IHU On-line)
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