“Não podemos entender a discussão do agronegócio sem primeiro compreender o que ele estabeleceu do ponto de vista produtivo e qual foi seu impacto na questão da concentração das propriedades de terra em países como o Brasil”. A afirmação é do professor e pesquisador da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Marcos Pedlowski. Em entrevista, concedida, por telefone, à IHU On-Line, Pedlowski explica como a prática, considerada por ele uma maquiagem para a proteção do latifúndio no país, pode ser prejudicial para a sociedade brasileira e mundial.
Segundo ele, “quem mais ganha com o agronegócio são as grandes cadeias de comercialização, que ficam com o grosso do que é gerado mundialmente”. Pedlowski aponta que “isso foge do nosso alcance, porque, geralmente, ficamos só observando a relação entre agronegócio, latifúndio e reforma agrária”. “O agronegócio não é autodestrutivo, é destrutivo só para a nação e para os países que tentam sair dessa dependência histórica e geopolítica dos países ricos”, afirma.
Marcos Pedlowski é professor associado da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, com atuação no âmbito do Laboratório de Estudos do Espaço Antrópico do Centro de Ciências do Homem da UENF.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quando, hisoricamente falando, surgiu a ideia de agronegócio?
Marcos Pedlowski – Academicamente, existem artigos que citam o surgimento do termo agronegócio na década de 1950, mas isso não é verídico. O conselho da Revolução Verde, no qual o agronegócio é irmão-gêmeo, nasceu com a concepção de uma nova forma de produzir, menos dependente das intempéries. Por outro lado, isso estabelece a necessidade de uma nova integração no processo produtivo na agricultura.
Porém, uma das promessas que a Revolução Verde trazia, a partir dessa maior cientificidade do processo produtivo, era o fim da fome, além da maior democracia no acesso à terra. Se olharmos no tempo, vemos que a Revolução Verde não acabou com a fome, e tão pouco democratizou a propriedade da terra no mundo. Pelo contrário, essa forma de produzir tem elevado o índice de concentração de terras na maior parte do planeta.
IHU On-Line - O agronegócio hoje está posicionado dentro de questões fundamentais no Brasil, como no debate do código florestal, e colocando o país como maior consumidor de agrotóxicos no mundo. Como o senhor vê a relação entre esses temas vinculados ao agronegócio?
Marcos Pedlowski – Temos que ligar essa questão da Revolução Verde e do agronegócio às características que o capitalismo tem nos países de periferia como o Brasil. O termo que foi cunhado, a partir da década de 1960, para definir o que acontece em países como o nosso é modernização conservadora. Do ponto de vista da importação ou dos pacotes, hoje falamos em implementos agrícolas, agrotóxicos, sementes geneticamente modificadas, e isso tudo foi feito às custas da manutenção.
Tenho visto alguns números sobre Coeficiente de Gini [1] no Brasil, uma curva que mede a igualdade e desigualdade. Quanto mais próximo o coeficiente está de zero, maior será a igualdade, quanto mais próximo de um, maior a desigualdade. Os últimos dados que temos são de 2006, e registram 0.87 no Brasil. Isso, na escala do coeficiente, é uma concentração bastante forte. O interessante é que, em 1996, o número era 0.856. Entre esses anos, tivemos um acréscimo de dois pontos, o que significa que aumentou a concentração da terra no país.
Não podemos entender a discussão do agronegócio sem primeiro compreender o que ele estabeleceu do ponto de vista produtivo e qual foi seu impacto na questão da concentração das propriedades de terra em países como o Brasil, onde essas propriedades já eram muito concentradas. Normalmente, a faceta mais ideológica e que ficou muito mais popularizada a partir da década de 1990, no Brasil, do agronegócio como algo moderno, e da agricultura familiar como algo atrasado, não é fortuita, já que corre na onda neoliberal.
A questão da maior dependência do mercado e a maior inserção no mercado mundial virou quase uma religião. De lá para cá, temos usado o agronegócio como símbolo de modernidade, quando, na verdade, temos um maior nível de contaminação de solos e recursos hídricos, contaminação de trabalhadores por agrotóxicos e por dispersão de sementes geneticamente modificadas, os desmatamentos no centro-oeste e na Amazônia e a questão do trabalho escravo. Tudo isso está concentrado no agronegócio, que é apenas uma faceta ou maquiagem para a manutenção do latifúndio no país.
IHU On-Line - Qual é o discurso dos latifundiários acerca do trabalho escravo?
Marcos Pedlowski – Isso tem sido liderado pela senadora Kátia Abreu, que fala que devemos discutir à exaustão o que é trabalho escravo. Também já ouvi o deputado do PPS de Rondônia, Rubens Moreira Mendes, no Encontro Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo em Brasília. Ele fala que se fôssemos cumprir todos os critérios da legislação vigente, nenhum pequeno produtor cumpriria as normas. Por isso, é complexo falar o que é trabalho escravo, o que deveria ser feito é um diálogo exaustivo para ajustar a realidade do campo à legislação.
Quando temos documentação explícita e uma proposta de legislação mais rígida parada no congresso por força do latifúndio e do agronegócio, a PEC 438, quando sabemos exatamente o que é trabalho escravo, a escravidão por dívida ou a escravidão por não cumprimento da legislação trabalhista, não precisamos nos ater a normas mais estritas. O código civil e a constituição são suficientes para determinar e punir trabalho escravo, não há discussão. Sabemos que a legislação rediscutiu o que é trabalho escravo, o que é uma atitude de procrastinação das medidas que devem ser tomadas contra os escravocratas. É lamentável que a Banca Ruralista do Congresso esteja protegendo os produtores que viabilizam a sustentabilidade da agricultura agroexportadora nos países desenvolvidos. Não só se fala em rotular socialmente o álcool, mas também a soja e tudo mais.
Enquanto existir desconfiança, ou certeza, o trabalho escravo permanecerá no Brasil, e hoje ele está espraiado por todas as regiões. O estado com maior apreensão de trabalho escravo atualmente é Santa Catarina. Não existe escravidão em pequenas propriedades familiares, quando encontramos esta prática, é em latifúndios e empresas do agrobusiness. É esta a discussão que deve ser feita. Rediscutir o trabalho escravo é dizer que não sabemos quando alguém está preso, quando existem capatazes e jagunços, quando o trabalhador está com os documentos retidos ou não sabe o quanto ganhou por um dia de trabalho.
IHU On-Line - Analisando as propostas colocadas em jogo em relação às eleições deste ano, quando a reforma agrária, no Brasil, será realizada?
Marcos Pedlowski – A Reforma Agrária não será realizável enquanto não se entender que o que está em jogo é o apoio que as administrações federais dão ao agronegócio. O agronegócio representa uma possibilidade de articulação com o mercado globalizado, o que, do meu ponto de vista, é uma aposta equivocada se considerarmos que os preços das principais commodities estão em depressão histórica. Porém, existe a insistência no financiamento do agronegócio. Este ano, por exemplo, a agricultura está recebendo um aporte financeiro do governo federal de 12 bilhões de reais para colocar em safra. Deste dinheiro, 10 bilhões estão indo para o agronegócio.
No entanto, a dívida acumulada do agronegócio em 2008, é de 75 bilhões de reais, sendo que destes, 27 bilhões são dívidas da década de 1990. Essa é uma aposta que nos mantêm financiando o latifúndio, dependentes de uma agricultura globalizada em que temos uma depressão contínua dos valores reais dos produtos. E ainda há algo pior. Neste momento, com a crise na Europa e a ameaça de crise hipotecária na China, o Brasil pode ter um colapso em sua balança comercial por causa da aposta no agrobusiness.
Por outro lado, quando lembramos, objetivamente, o que já havia sido feito pelo FHC e pelo Lula em termos de agronegócio, percebemos que não houve reforma agrária. O que tem acontecido, principalmente na Amazônia, é o Programa de Regularização de Posses de caráter muito precário e que não mexe no centro do problema, que é o Coeficiente de Gini. Este coeficiente aumentou durante o governo Lula, isto significa que não houve nenhuma reforma. Isso é interessante. O agronegócio é feito por um número pequeno de proprietários.
Sabemos que proprietários com mais de mil hectares no Brasil, que são 1% dos proprietários, controlam 43% das terras no país. Não há, nesse horizonte, nenhuma proposta que reaja pela reforma agrária. Mas, na minha visão, quando analisamos especialmente os resultados surpreendentes que aparecem no censo agropecuário em 2008, e que causam certa estupefação, vemos que o grosso da produção, não apenas de alimentos, mas de commotidies, é da agricultura familiar. Isto nos mostra que a opção correta para o Brasil seria fazer uma corajosa reforma agrária e modernizar o campo brasileiro do ponto de vista das relações sociais e produtivas. Essa modernidade de agrotóxicos, desmatamentos, escravidão é falsa.
IHU On-Line - E como a Revisão dos índices de produtividade pode colaborar com o início da reforma agrária efetiva no Brasil?
Marcos Pedlowski – Certamente, essa é outra falácia. O latifúndio, toda vez que faz uma aposta ruim, vai correndo pro estado pedir renegociação e mais dinheiro. Ao mesmo tempo, quando vemos que nenhum esforço objetivo tem sido feito nas regiões brasileiras, não temos uma mudança de produtividade. Dizem que hoje somos 75% mais produtivos, mas 75% mais produtivos em relação a quê? Certas culturas têm sua produção estabilizada quando a área aumenta muito, como no caso da Amazônia. Ou seja, o que tivemos de aumento na produção está ancorado no aumento da área em produção, não existe um aumento de produtividade. Por isso que o latifúndio é contra a ausência de produtividade, porque sabe que, se esses índices estiverem defasados, deve investir muito mais, melhorar a capacidade dos trabalhadores e aperfeiçoar os investimentos públicos.
Na verdade, esse apoio à safra não passa de subsídios disfarçados. Ogoverno Lula reclama dos subsídios da União Europeia, mas, ao permitir essa rolagem eterna da dívida do latifúndio, não faz nada mais do que subsidiar. Acredito que essa questão da revisão dos índices de produtividade é uma necessidade, não apenas do ponto de vista da reforma agrária. Quando fica escancarado que determinados proprietários não estão preocupados com produtividade, e estão fazendo especulação fundiária, torna-se evidente que precisamos de uma mudança muito grande. Assim eles seriam obrigados a fazer um esforço para se adequar a uma realidade em termos de observação da função social da terra.
Por outro lado, se eles continuarem não querendo trabalhar na terra de forma mais produtiva, podemos usar isso para fazer uma reforma agrária. Como é apresentado, parece que só se quer a revisão para fazer a reforma agrária, isso não pode ser o único motivo. Um motivo a mais, e talvez a prioridade, é que termos muita terra improdutiva no país. E, convenhamos, o latifúndio não tem uma competência real para ser produtivo, especialmente se não tiver os subsídios que recebem do estado.
IHU On-Line - O que vem a ser o Neolatifúndio?
Marcos Pedlowski – O neolatifúndio é o que estão chamando de agronegócio. O problema é que ninguém gosta de ser chamado de latifundiário. É mais chique ser chamado de agroboy ou agro qualquer coisa. Eu pelo menos entendo a expressão como latifúndio com cara moderna, mas que continua sendo o latifúndio de sempre. Na literatura mexicana, quando se fala na questão da reforma agrária, usa-se o termo neolatifúndio como um filão para agronegócio. Mas quando se fala em agronegócio, não temos mais aquele latifundiário que forma sua empresa agrícola.
Não é somente a questão local que influencia, temos ligação direta entre as grandes multinacionais de produção de sementes, de agrotóxicos, e essa ligação não para por aí. Temos quem recolhe a safra, - um exemplo são os produtos da Monsanto que vão para a Bunge - depois alguém exporta e vai parar no Carrefour, em Paris, ou no Walmart, em Washington. Se observarmos os cálculos, quem mais ganha com o agronegócio são as grandes cadeias de comercialização, que ficam com o grosso do que é gerado mundialmente. Isso foge do nosso alcance, porque, geralmente, ficamos só observando a relação entre agronegócio, latifúndio e reforma agrária. Esse seria moderno, tecnológico. A defesa desse novo latifúndio, na verdade, é outra forma de falar que não precisamos mais de reforma agrária.
IHU On-Line - A estratégia adotada pelo agronegócio, levando em conta o desmatamento, o trabalho escravo e degradante, uso de agrotóxicos, é autodestrutiva?
Marcos Pedlowski – Não, ela só nos destrói. Na lógica, que é globalizada, aqueles que são responsáveis pelo funcionamento não estão onde os grandes problemas vão se manifestar. O agronegócio não é autodestrutivo, só para a nação e para os países que tentam sair dessa dependência histórica e geopolítica dos países ricos. Um exemplo é Campos dos Goytacazes. Quando se fecham as usinas, os usineiros vão construir hotéis, grandes prédios comerciais e vão vender terreno na rua.
A empresa jurídica vai falir, e a pessoa física vai estar na boa. Temos situações em que a fábrica falida de um usineiro, que estava escravizando pessoas, é transferida para outro lugar. Não vemos estes trabalhadores escravos procurarem seus direitos. Essa mobilidade do agronegócio traz a impunidade. O latifúndio quer falar que trabalho escravo só pode ser punido se julgado, mas existem causas trabalhistas que duram 30 anos. Se pensarmos em projetos de desenvolvimento nacional, isso é destrutivo para o país. O agronegócio se recicla.
Notas:
[1] Coeficiente de Gini é uma medida de desigualdade desenvolvida pelo estatístico italiano Corrado Gini. É comumente utilizada para calcular a desigualdade de distribuição de renda mas pode ser usada para qualquer distribuição. Ele consiste em um número entre 0 e 1, onde 0 corresponde à completa igualdade de renda (onde todos têm a mesma renda) e 1 corresponde à completa desigualdade (onde uma pessoa tem toda a renda, e as demais nada têm). O índice de Gini é o coeficiente expresso em pontos percentuais (é igual ao coeficiente multiplicado por 100).
Segundo ele, “quem mais ganha com o agronegócio são as grandes cadeias de comercialização, que ficam com o grosso do que é gerado mundialmente”. Pedlowski aponta que “isso foge do nosso alcance, porque, geralmente, ficamos só observando a relação entre agronegócio, latifúndio e reforma agrária”. “O agronegócio não é autodestrutivo, é destrutivo só para a nação e para os países que tentam sair dessa dependência histórica e geopolítica dos países ricos”, afirma.
Marcos Pedlowski é professor associado da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, com atuação no âmbito do Laboratório de Estudos do Espaço Antrópico do Centro de Ciências do Homem da UENF.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quando, hisoricamente falando, surgiu a ideia de agronegócio?
Marcos Pedlowski – Academicamente, existem artigos que citam o surgimento do termo agronegócio na década de 1950, mas isso não é verídico. O conselho da Revolução Verde, no qual o agronegócio é irmão-gêmeo, nasceu com a concepção de uma nova forma de produzir, menos dependente das intempéries. Por outro lado, isso estabelece a necessidade de uma nova integração no processo produtivo na agricultura.
Porém, uma das promessas que a Revolução Verde trazia, a partir dessa maior cientificidade do processo produtivo, era o fim da fome, além da maior democracia no acesso à terra. Se olharmos no tempo, vemos que a Revolução Verde não acabou com a fome, e tão pouco democratizou a propriedade da terra no mundo. Pelo contrário, essa forma de produzir tem elevado o índice de concentração de terras na maior parte do planeta.
IHU On-Line - O agronegócio hoje está posicionado dentro de questões fundamentais no Brasil, como no debate do código florestal, e colocando o país como maior consumidor de agrotóxicos no mundo. Como o senhor vê a relação entre esses temas vinculados ao agronegócio?
Marcos Pedlowski – Temos que ligar essa questão da Revolução Verde e do agronegócio às características que o capitalismo tem nos países de periferia como o Brasil. O termo que foi cunhado, a partir da década de 1960, para definir o que acontece em países como o nosso é modernização conservadora. Do ponto de vista da importação ou dos pacotes, hoje falamos em implementos agrícolas, agrotóxicos, sementes geneticamente modificadas, e isso tudo foi feito às custas da manutenção.
Tenho visto alguns números sobre Coeficiente de Gini [1] no Brasil, uma curva que mede a igualdade e desigualdade. Quanto mais próximo o coeficiente está de zero, maior será a igualdade, quanto mais próximo de um, maior a desigualdade. Os últimos dados que temos são de 2006, e registram 0.87 no Brasil. Isso, na escala do coeficiente, é uma concentração bastante forte. O interessante é que, em 1996, o número era 0.856. Entre esses anos, tivemos um acréscimo de dois pontos, o que significa que aumentou a concentração da terra no país.
Não podemos entender a discussão do agronegócio sem primeiro compreender o que ele estabeleceu do ponto de vista produtivo e qual foi seu impacto na questão da concentração das propriedades de terra em países como o Brasil, onde essas propriedades já eram muito concentradas. Normalmente, a faceta mais ideológica e que ficou muito mais popularizada a partir da década de 1990, no Brasil, do agronegócio como algo moderno, e da agricultura familiar como algo atrasado, não é fortuita, já que corre na onda neoliberal.
A questão da maior dependência do mercado e a maior inserção no mercado mundial virou quase uma religião. De lá para cá, temos usado o agronegócio como símbolo de modernidade, quando, na verdade, temos um maior nível de contaminação de solos e recursos hídricos, contaminação de trabalhadores por agrotóxicos e por dispersão de sementes geneticamente modificadas, os desmatamentos no centro-oeste e na Amazônia e a questão do trabalho escravo. Tudo isso está concentrado no agronegócio, que é apenas uma faceta ou maquiagem para a manutenção do latifúndio no país.
IHU On-Line - Qual é o discurso dos latifundiários acerca do trabalho escravo?
Marcos Pedlowski – Isso tem sido liderado pela senadora Kátia Abreu, que fala que devemos discutir à exaustão o que é trabalho escravo. Também já ouvi o deputado do PPS de Rondônia, Rubens Moreira Mendes, no Encontro Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo em Brasília. Ele fala que se fôssemos cumprir todos os critérios da legislação vigente, nenhum pequeno produtor cumpriria as normas. Por isso, é complexo falar o que é trabalho escravo, o que deveria ser feito é um diálogo exaustivo para ajustar a realidade do campo à legislação.
Quando temos documentação explícita e uma proposta de legislação mais rígida parada no congresso por força do latifúndio e do agronegócio, a PEC 438, quando sabemos exatamente o que é trabalho escravo, a escravidão por dívida ou a escravidão por não cumprimento da legislação trabalhista, não precisamos nos ater a normas mais estritas. O código civil e a constituição são suficientes para determinar e punir trabalho escravo, não há discussão. Sabemos que a legislação rediscutiu o que é trabalho escravo, o que é uma atitude de procrastinação das medidas que devem ser tomadas contra os escravocratas. É lamentável que a Banca Ruralista do Congresso esteja protegendo os produtores que viabilizam a sustentabilidade da agricultura agroexportadora nos países desenvolvidos. Não só se fala em rotular socialmente o álcool, mas também a soja e tudo mais.
Enquanto existir desconfiança, ou certeza, o trabalho escravo permanecerá no Brasil, e hoje ele está espraiado por todas as regiões. O estado com maior apreensão de trabalho escravo atualmente é Santa Catarina. Não existe escravidão em pequenas propriedades familiares, quando encontramos esta prática, é em latifúndios e empresas do agrobusiness. É esta a discussão que deve ser feita. Rediscutir o trabalho escravo é dizer que não sabemos quando alguém está preso, quando existem capatazes e jagunços, quando o trabalhador está com os documentos retidos ou não sabe o quanto ganhou por um dia de trabalho.
IHU On-Line - Analisando as propostas colocadas em jogo em relação às eleições deste ano, quando a reforma agrária, no Brasil, será realizada?
Marcos Pedlowski – A Reforma Agrária não será realizável enquanto não se entender que o que está em jogo é o apoio que as administrações federais dão ao agronegócio. O agronegócio representa uma possibilidade de articulação com o mercado globalizado, o que, do meu ponto de vista, é uma aposta equivocada se considerarmos que os preços das principais commodities estão em depressão histórica. Porém, existe a insistência no financiamento do agronegócio. Este ano, por exemplo, a agricultura está recebendo um aporte financeiro do governo federal de 12 bilhões de reais para colocar em safra. Deste dinheiro, 10 bilhões estão indo para o agronegócio.
No entanto, a dívida acumulada do agronegócio em 2008, é de 75 bilhões de reais, sendo que destes, 27 bilhões são dívidas da década de 1990. Essa é uma aposta que nos mantêm financiando o latifúndio, dependentes de uma agricultura globalizada em que temos uma depressão contínua dos valores reais dos produtos. E ainda há algo pior. Neste momento, com a crise na Europa e a ameaça de crise hipotecária na China, o Brasil pode ter um colapso em sua balança comercial por causa da aposta no agrobusiness.
Por outro lado, quando lembramos, objetivamente, o que já havia sido feito pelo FHC e pelo Lula em termos de agronegócio, percebemos que não houve reforma agrária. O que tem acontecido, principalmente na Amazônia, é o Programa de Regularização de Posses de caráter muito precário e que não mexe no centro do problema, que é o Coeficiente de Gini. Este coeficiente aumentou durante o governo Lula, isto significa que não houve nenhuma reforma. Isso é interessante. O agronegócio é feito por um número pequeno de proprietários.
Sabemos que proprietários com mais de mil hectares no Brasil, que são 1% dos proprietários, controlam 43% das terras no país. Não há, nesse horizonte, nenhuma proposta que reaja pela reforma agrária. Mas, na minha visão, quando analisamos especialmente os resultados surpreendentes que aparecem no censo agropecuário em 2008, e que causam certa estupefação, vemos que o grosso da produção, não apenas de alimentos, mas de commotidies, é da agricultura familiar. Isto nos mostra que a opção correta para o Brasil seria fazer uma corajosa reforma agrária e modernizar o campo brasileiro do ponto de vista das relações sociais e produtivas. Essa modernidade de agrotóxicos, desmatamentos, escravidão é falsa.
IHU On-Line - E como a Revisão dos índices de produtividade pode colaborar com o início da reforma agrária efetiva no Brasil?
Marcos Pedlowski – Certamente, essa é outra falácia. O latifúndio, toda vez que faz uma aposta ruim, vai correndo pro estado pedir renegociação e mais dinheiro. Ao mesmo tempo, quando vemos que nenhum esforço objetivo tem sido feito nas regiões brasileiras, não temos uma mudança de produtividade. Dizem que hoje somos 75% mais produtivos, mas 75% mais produtivos em relação a quê? Certas culturas têm sua produção estabilizada quando a área aumenta muito, como no caso da Amazônia. Ou seja, o que tivemos de aumento na produção está ancorado no aumento da área em produção, não existe um aumento de produtividade. Por isso que o latifúndio é contra a ausência de produtividade, porque sabe que, se esses índices estiverem defasados, deve investir muito mais, melhorar a capacidade dos trabalhadores e aperfeiçoar os investimentos públicos.
Na verdade, esse apoio à safra não passa de subsídios disfarçados. Ogoverno Lula reclama dos subsídios da União Europeia, mas, ao permitir essa rolagem eterna da dívida do latifúndio, não faz nada mais do que subsidiar. Acredito que essa questão da revisão dos índices de produtividade é uma necessidade, não apenas do ponto de vista da reforma agrária. Quando fica escancarado que determinados proprietários não estão preocupados com produtividade, e estão fazendo especulação fundiária, torna-se evidente que precisamos de uma mudança muito grande. Assim eles seriam obrigados a fazer um esforço para se adequar a uma realidade em termos de observação da função social da terra.
Por outro lado, se eles continuarem não querendo trabalhar na terra de forma mais produtiva, podemos usar isso para fazer uma reforma agrária. Como é apresentado, parece que só se quer a revisão para fazer a reforma agrária, isso não pode ser o único motivo. Um motivo a mais, e talvez a prioridade, é que termos muita terra improdutiva no país. E, convenhamos, o latifúndio não tem uma competência real para ser produtivo, especialmente se não tiver os subsídios que recebem do estado.
IHU On-Line - O que vem a ser o Neolatifúndio?
Marcos Pedlowski – O neolatifúndio é o que estão chamando de agronegócio. O problema é que ninguém gosta de ser chamado de latifundiário. É mais chique ser chamado de agroboy ou agro qualquer coisa. Eu pelo menos entendo a expressão como latifúndio com cara moderna, mas que continua sendo o latifúndio de sempre. Na literatura mexicana, quando se fala na questão da reforma agrária, usa-se o termo neolatifúndio como um filão para agronegócio. Mas quando se fala em agronegócio, não temos mais aquele latifundiário que forma sua empresa agrícola.
Não é somente a questão local que influencia, temos ligação direta entre as grandes multinacionais de produção de sementes, de agrotóxicos, e essa ligação não para por aí. Temos quem recolhe a safra, - um exemplo são os produtos da Monsanto que vão para a Bunge - depois alguém exporta e vai parar no Carrefour, em Paris, ou no Walmart, em Washington. Se observarmos os cálculos, quem mais ganha com o agronegócio são as grandes cadeias de comercialização, que ficam com o grosso do que é gerado mundialmente. Isso foge do nosso alcance, porque, geralmente, ficamos só observando a relação entre agronegócio, latifúndio e reforma agrária. Esse seria moderno, tecnológico. A defesa desse novo latifúndio, na verdade, é outra forma de falar que não precisamos mais de reforma agrária.
IHU On-Line - A estratégia adotada pelo agronegócio, levando em conta o desmatamento, o trabalho escravo e degradante, uso de agrotóxicos, é autodestrutiva?
Marcos Pedlowski – Não, ela só nos destrói. Na lógica, que é globalizada, aqueles que são responsáveis pelo funcionamento não estão onde os grandes problemas vão se manifestar. O agronegócio não é autodestrutivo, só para a nação e para os países que tentam sair dessa dependência histórica e geopolítica dos países ricos. Um exemplo é Campos dos Goytacazes. Quando se fecham as usinas, os usineiros vão construir hotéis, grandes prédios comerciais e vão vender terreno na rua.
A empresa jurídica vai falir, e a pessoa física vai estar na boa. Temos situações em que a fábrica falida de um usineiro, que estava escravizando pessoas, é transferida para outro lugar. Não vemos estes trabalhadores escravos procurarem seus direitos. Essa mobilidade do agronegócio traz a impunidade. O latifúndio quer falar que trabalho escravo só pode ser punido se julgado, mas existem causas trabalhistas que duram 30 anos. Se pensarmos em projetos de desenvolvimento nacional, isso é destrutivo para o país. O agronegócio se recicla.
Notas:
[1] Coeficiente de Gini é uma medida de desigualdade desenvolvida pelo estatístico italiano Corrado Gini. É comumente utilizada para calcular a desigualdade de distribuição de renda mas pode ser usada para qualquer distribuição. Ele consiste em um número entre 0 e 1, onde 0 corresponde à completa igualdade de renda (onde todos têm a mesma renda) e 1 corresponde à completa desigualdade (onde uma pessoa tem toda a renda, e as demais nada têm). O índice de Gini é o coeficiente expresso em pontos percentuais (é igual ao coeficiente multiplicado por 100).
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