quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

“Muitas ameaças de morte vieram junto com Belo Monte, por eu ser contra a usina”, diz Dom Erwin

Assim como a missionária norte-americana Dorothy Stang, assassinada há cinco anos por contrariar os interesses de grileiros da Amazônia, o bispo da Prelazia do Xingu e presidente do Conselho Indigenista Missionário, Dom Erwin Krauler, assume os riscos de sua opção por defender os direitos humanos da população pobre da região.
Ameaçado de morte por ter denunciado crimes, como o abuso sexual de menores por homens ricos de Altamira (PA), Dom Erwin, como é conhecido, vem sendo criticado por se opor ao projeto do governo federal de construir a hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu (PA), obra que irá deslocar famílias ribeirinhas e povos indígenas, modificando a biodiversidade local.
Confira entrevista com o missionário, em que ele fala sobre a impunidade de crimes, como o que matou Dorothy e sua visão sobre a construção de usinas, que vêm sendo impostas ao povo amazônico por empresas e governantes.

Amazonia.org.br- Na última sexta-feira, completaram-se cinco anos da morte de Dorothy Stang. Como o senhor vê essa data?
Dom Erwin Krauler
-
O dia é simbólico. Pela morte, ela anunciou com muita ênfase o que fez em vida, o trabalho em favor dos menos favorecidos e em favor de uma Amazônia, que cada vez mais está sendo devastada. Mas, ela não era a única, nós temos aqui vários casos desse tipo. Mas, outros talvez não sejam tão conhecidos. Quando Dorothy morreu, no mesmo dia, a notícia correu pelo mundo.

Amazonia.org.br- Dorothy já vinha sofrendo ameaças antes de sua morte?
Erwin
-
De fato, ela recebeu ameaças, mas ninguém acreditou. Nem ela, nem eu. Ela sempre se hospedou aqui em casa quando vinha a Altamira (PA), desde que chegou aqui. Eu não acreditei que aconteceria isso por ela ser uma senhora já idosa, ela tinha 73 anos. E outra coisa que pensávamos era: ela é norte-americana, então vão respeitar. Mas, nós nos enganamos. Poucos dias antes de morrer, Dorothy falou bem claro que sabia que estava ameaçada, mas ela entendeu que o lugar dela estava ao lado dessas pessoas constantemente humilhadas. Então, ela não poderia fugir.

Amazonia.org.br- O senhor também está ameaçado?
Erwin-
Sim. Eu estou, desde junho de 2006, sob proteção policial 24 horas.

Amazonia.org.br- Quais as causas para que queiram sua morte?
Erwin-
É uma mistura de coisas. No meu caso, quando soube da morte [da Dorothy], exigi da segurança pública, da Secretaria de Segurança do Estado, a apuração dos fatos, o inquérito, e com isso você não faz amigos. Junto com essa hidrelétrica de Belo Monte [no rio Xingu] também veio muita ameaça porque estou contra desde o início. Os que estão interessados [na obra] começaram a escrever em jornais que, enquanto eu estivesse resistindo, a coisa não iria adiante, e eu deveria ser eliminado. O jornal de maior tiragem do Norte, o Liberal, por exemplo. Teve o artigo de um articulista em que ele “desceu a ripa” contra mim e não aconteceu nada. Com essa nossa lei da imprensa, cada um pode escrever o que bem entende e prejudicar os outros. Depois, isso ainda vira notícia. Também teve panfleto e manifestações públicas de diversas pessoas dizendo que eu deveria ser eliminado.

Amazonia.org.br- O senhor foi convidado pelo presidente do Ibama a conversar sobre a usina de Belo Monte. Como foi esse debate?
Erwin
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Eu fui lá, mas eu também, em nenhum ponto alterei minha posição. Coloquei, reclamei mais uma vez que as audiências públicas [sobre a hidrelétrica] foram insuficientes e o povo não teve condição de falar e se expressar. Mas, é claro que um encontro desse, depois do fato consumado [concessão de licença prévia à usina], a gente pergunta qual será ainda a utilidade pública.
Eles sempre falam em diálogo, mas diálogo na medida em que você aceita tudo. Para mim, as 40 condicionantes [para concessão da licença] que estão colocando, todas elas pecam pela raiz. Eu estou convicto de que essa hidrelétrica como foi planejada não será um bem para a própria nação. Nós temos todos os estudos, nós temos o pessoal de universidade que advertiu. Não estamos simplesmente jogando contra ou politizando a história. Nós temos todas as razões e eu inclusive coloquei todas numa carta aberta ao Lula. Eu estive com ele duas vezes.

Amazonia.org.br- E como foram as conversas com o presidente?
Erwin
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Na primeira vez (19 de março), eu pedi que ele recebesse representantes da sociedade civil organizada de Altamira. Ele aceitou e, então, esse encontro aconteceu em 22 de julho. Nós fomos para Brasília e falamos com o setor energético do governo e com o presidente. Depois, ele me segurou no braço e disse: “nós não vamos empurrar esse projeto goela abaixo de quem quer que seja”. Ele também disse: “o debate tem que continuar”, e já estava até marcada outra audiência com o presidente no mês de outubro. Mas, o encontro não aconteceu porque ele teve que viajar para a Venezuela.

Amazonia.org.br- Por que o senhor é contra a usina de Belo Monte?
Erwin-
Digo que esse projeto vai ser um tiro no escuro. Nós vamos mover uma ação judicial [contra a licença prévia] logo depois do carnaval, com várias entidades. O presidente do Ibama achou que com as condicionantes o problema estaria praticamente resolvido, mas não. Eu estou em Altamira, eles estão em Brasília. Os tecnocratas e políticos de plantão não vão sentir. Quem vai sentir a desgraça é o povo daqui, são os povos indígenas, ribeirinhos, toda a cidade. Altamira tem 100 mil habitantes, 1/3 da cidade vai para o fundo com a obra. Isso, segundo os próprios estudos deles. Aí eles prometem resolver o problema, fazendo casas, mas até hoje eles não sabem responder onde. Os próprios representantes do governo, se a gente pergunta para eles onde vão assentar essas 30 mil pessoas, eles não dão resposta.

Amazonia.org.br- A gente vê hoje o Ministério Público (MP) muito atuante na defesa do meio ambiente e das causas sociais. Porém, os pedidos feitos pelo MP à Justiça, contra as usinas do Rio Madeira, foram na maioria das vezes negados pelo Judiciário…
Erwin-
Sim, eu sei disso. Essa é a tática do fato consumado e do rolo compressor. Numa democracia, não deveria estar acontecendo isso, mas está. Tem muito autoritarismo por trás disso. Nós temos argumentos e esses simplesmente são desconsiderados, e o rolo compressor passa por cima. É um autoritarismo que não permite contestação. Nós estamos realmente ruindo as colunas da própria democracia.

Amazonia.org.br- Por esse motivo, os mandantes do assassinato de Dorothy, cinco anos depois da morte, ainda não foram julgados?
Erwin
- Esses cinco anos foram cheios de tramitações e, até diria, de tramas judiciais. Prenderam, soltaram, foi um vai e vem, diria até vergonhoso. Agora, mais um acusado de ser mandante foi preso de novo [Bida]. E nós já sabemos como a coisa continua. Foi preciso cinco anos para isso. No meu modo de ver, eu nunca fui inquirido como deveria ser. Também tem muita gente ligada direta e indiretamente à morte da irmã que eu tenho impressão de que não foi ouvida, nem intimada a depor. Agora, tem quatro presos. Um deles é acusado de ser mandante, mas não acredito que vamos ver grandes novidades nesse processo todo. De repente, tem um novo habeas corpus, algum advogado esperto vai descobrir uma brecha da legislação.

Amazonia.org.br- Em sua opinião, é isso o que gera a impunidade?
Erwin-
Sim. A impunidade é o maior flagelo que estamos percebendo aqui. No caso da Dorothy, todo mundo sabe, mas tem tanta gente que foi morta e simplesmente não acontece nada. Ele mata hoje e amanhã está palitando os dentes numa esquina da rua. Todo mundo sabe que foi ele. Em 2006, por exemplo, a gente denunciou o abuso sexual de menores, meninas. Não tem nenhum preso. Nenhum. E era um bando, uma quadrilha da alta sociedade de Altamira. Começou o processo, mas já se passaram quatro anos…

Amazonia.org.br- O senhor acredita que a solução para o problema é a mudança das leis penais?
Erwin-
Não é preciso mudança da lei, é preciso aplicar a lei. O Código Penal brasileiro tem que ser revisto, é claro, mas a legislação brasileira é excelente. Falta vontade política, e às vezes judicial, de aplicar as leis. Leis não faltam.

Amazonia.org.br- Os projetos de incentivo à reforma agrária aliada ao desenvolvimento sustentável, iniciados por Dorothy, tiveram continuidade?
Erwin
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Sim, de certa maneira. Mas, deveria ter muito mais garantia por parte do governo, mais acompanhamento. Porque se você coloca esse povo numa vicinal da Transamazônica, mas não se tem uma estrutura mínima para esse povo poder viver, em termos de escola, saúde, transporte e segurança, se não tem isso, o povo se desespera, desanima. É sempre a mesma coisa na questão da reforma agrária. A gente pensa que é distribuir terra. Não é. É criar uma infraestrutura que faça com que esse povo possa viver e sobreviver em determinada área. Isso significa também o povo ter acesso a créditos mais condizentes com a sua situação. Mas, se nada disso funciona, se você, com uma dor de dente, tem que andar 150 km para achar um dentista…

Amazonia.org.br- Diante desse cenário, como o senhor avalia as políticas do governo federal voltadas ao desenvolvimento sustentável e à redução do desmatamento na Amazônia?
Erwin-
A gente diz que diminuiu o desmatamento, as queimadas. O problema é que já se queimou tanto, que tinha que diminuir forçosamente porque não tem mais lugar. Eu conheço aqui desde 1965. O que aconteceu é algo que não se compreende. Se você fala em queimada aqui perto de Altamira, vai queimar o que? A mata não existe mais. Tem que ir longe para você ver mata virgem. Se você vê mata aqui, já é mata secundária. E tem enormes regiões que não têm mais nenhuma árvore, é tudo pasto.


Fabíola Munhoz, do Amazonia.org.br

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