Em seu mais recente livro Dicionário Crítico do Feminismo (São Paulo: UNESP, 2010), Helena Hirata busca dissecar termos relacionados ao mundo das mulheres e, assim, mostrar os significados de questões como opressão, dominação masculina, aborto e contracepção, assédio sexual, prostituição, maternidade e movimentos feministas. “A relação entre homens e mulheres oculta uma questão importante que é a hierarquia social. Se considera que os homens são superiores às mulheres e, portanto, daí decorre toda uma série de diferenças entre eles. É essa hierarquia que tem que ser questionada”, explica a autora durante a entrevista que concedeu à IHU On-Line por telefone.
Hirata também analisou questões como o pensamento crítico feminista, as diferenças entre as mulheres de diferentes profissões e a divisão sexual do trabalho. Quando analisa a participação das mulheres no grupo conhecido como Geração Y, formada por jovens bem informados, questionadores e com sede de subir na carreira, ela diz que “certamente existem mulheres dentro deste grupo, mas aparentemente todos os estudos sobre hackers e sobre os que têm uma atividade muito intensa em termos de uso da Internet considera que esta área é majoritariamente ocupada por homens”.
Helena Hirata é professora na Universidade Estadual de Campinas, onde pesquisa Sociologia do Trabalho e do Gênero.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Seu mais recente livro chama-se Dicionário Crítico do Feminismo...
Helena Hirata – Na realidade, nós queríamos que muitas pessoas que não são especialistas na questão de gênero, do feminismo, da diferença entre os homens e as mulheres, da questão da opressão, da dominação masculina etc. pudessem ter acesso de maneira simples, clara, a toda uma série de definições sobre termos do mundo das mulheres. Nesse sentido, há um verbete no livro sobre aborto e contracepção, assédio sexual, prostituição, maternidade, movimentos feministas. Então, há uma série de verbetes que apresento, em cinco páginas, com quatro ou cinco bibliografias básicas. Cada verbete é dividido em quatro partes: uma é a definição do termo – que vai desde termos relacionados ao feminismo até termos de sociologia e economia do trabalho –, depois apresento uma história desse termo, ainda o debate e controvérsias relacionadas ao tema, e o quarto aspecto é a atualidade social e científica deste assunto.
A questão do feminismo que esse livro toca mostra que é muito importante que todas as questões relacionadas às diferenças de sexo são políticas. São temas que têm conteúdo político, porque tudo o que é pessoal é político. E a relação entre homens e mulheres oculta uma questão importante que é a hierarquia social. Se considera que os homens são superiores às mulheres e, portanto, daí decorre toda uma série de diferenças entre eles. É essa hierarquia que tem que ser questionada e, assim, o Dicionário Crítico do Feminismo é um instrumento para apreciar o conteúdo e os limites dessa hierarquia para que possamos pensar numa nova divisão do trabalho.
IHU On-Line – Como você vê hoje o pensamento crítico feminista?
Helena Hirata – Eu acho que há muitos feminismos, existem muitos movimentos feministas. O feminismo é um movimento plural, pois há pessoas ali dentro que são contra o aborto, há feministas que acreditam que a prostituição pode ser regulamentada, além de pessoas que são contra o véu islâmico. Na França, hoje, o movimento feminista mais dominante é o que chamamos de feminismo socialista que se preocupa com uma igualdade maior de salários, de condições de trabalho etc. No Brasil, o que tenho visto, por exemplo, também são reivindicações mais universalistas do que diferencialistas que considera que homens e mulheres agem de forma diferente e, portanto, merecem espaços distintos. As universalistas, por sua vez, acham que deve haver uma tônica maior na questão da igualdade.
IHU On-Line – No mundo do trabalho, a forma de enxergar a mulher cuja área em que atua é o chão de fábrica e a que trabalha na área administrativa é diferente?
Helena Hirata – Elas têm uma situação de trabalho e são vistas de maneira diferente. Ainda hoje as que trabalham no chão de fábrica têm sua profissão menos valorizada socialmente do que as profissões de ‘colarinho branco’, que trabalham em escritório, num ambiente de trabalho que é menos controlador. Ainda assim, há mais solidariedade e possibilidade de lutas entre as mulheres que estão organizadas no chão de fábrica, como operárias. Um exemplo disso foi esse segundo Congresso da Mulher metalúrgica que houve em São Bernardo, no sindicato dos metalúrgicos do ABC em março deste ano.
IHU On-Line – O que representa para a sociedade a participação feminina em lideranças de movimentos sociais e trabalhistas?
Helena Hirata – A participação das mulheres na sociedade é algo muito importante para a riqueza do país porque, se elas não efetuassem gratuitamente certas tarefas, isso teria que ser comprado no mercado e teria que se remunerar esse trabalho. O que criaria um problema de despesas tanto familiares quanto sociais e públicas. De uma maneira geral, existem movimentações sociais em que as mulheres estão inseridas, mas, em primeiro lugar, o mais importante é ver como elas são importantes para a criação de toda uma série de riquezas que, se não fossem as mulheres que estivessem fazendo de graça, o país teria um grande problema financeiro.
IHU On-Line – Quais os pontos fortes da reflexão sobre o trabalho do cuidado, desempenhado especificamente pelas mulheres?
Helena Hirata – O mais importante é que são as mulheres, majoritariamente, que fazem este tipo de trabalho. O fato delas fazerem o mesmo tipo de trabalho e cuidado com pessoas idosas, doentes, com deficiência física e com crianças, de maneira gratuita dentro de suas casas, faz com que esse trabalho seja muito desvalorizado e mal pago. Ao mesmo tempo, o fato de que as mulheres começam a trabalhar de maneira remunerada, mesmo mal pagas, nestes tipos de trabalhos, paradoxalmente, visibiliza um trabalho doméstico, até então efetuado de maneira privada e invisível. Isso mostra que esse trabalho não é feito gratuitamente, tem que ser remunerado e mercantilizado. A externalização do trabalho doméstico, que antes era feito por amor ao marido, ao companheiro, pode ser um lugar de valorização deste trabalho. Esse trabalho é muito importante, por que se desenvolveu e se desenvolve enormemente hoje, sobretudo dado a tendência demográfica do envelhecimento e da longevidade cada vez maior das pessoas idosas em todo o mundo, inclusive no Brasil, e isso faz com que esse trabalho seja cada vez mais significativo na sociedade contemporânea.
O outro ponto importante neste trabalho, que é fundo do debate teórico, é que muitas pesquisadoras e especialistas no tema dizem que precisamos superar o enfoque de gênero quando falamos de cuidado. O que falei é que há diferenças entre homens e mulheres, e são as mulheres que fazem este tipo de trabalho, que se sacrificam e ganham pouco, que têm um trabalho invísivel, mas que pode ser visibilizado. Ora, as pesquisadoras e teóricas, que trabalham sobre a ética, a política e a moral deste tipo de trabalho, irão dizer que, na realidade, não é a questão de gênero que é principal na problemática do care, mas que mostra que todas as pessoas irão ser dependentes em algum momento do ciclo de vida delas, e, portanto, isto deve ser uma preocupação universal. Segundo elas, todos devem fazer este tipo de trabalho, porque concerne a todos. Hoje, nós adultos, somos independentes, autônomos e nos orgulhamos disso, mas não seremos sempre assim. Já fomos dependentes quando pequenos, seremos em momentos de doença, e seremos dependentes, forçadamente, a partir de um certo momento da vida, pela idade mais avançada. Acho que essa é uma das questões mais importantes, desenvolvidas pela problemática deste tipo de trabalho, é a questão universal, que ultrapassa o gênero, e trata do humano.
IHU On-Line – A Divisão Sexual do Trabalho é um dos seus temas de estudo e também um dos verbetes na obra. Qual é a importância dessa discussão atualmente?
Helena Hirata – Até hoje, se falou muito no trabalho profissional dos homens e mulheres e na igualdade de salários que seria necessária, já que os sálarios masculinos e femininos são muito díspares em todo o mundo, embora sejam mais igualitários em um país europeu como a Suécia, e muito desigualitário em um país asiático como o Japão. Para além dessas discussões sobre desigualdade de salários e na profissão, a questão da divisão sexual do trabalho remete a ideia de que há uma divisão entre os sexos, tanto no terreno do trabalho quanto no do saber e do poder, e que tudo isso é indissociável. Não podemos pensar na situação das mulheres no campo, puramente, do trabalho, sem pensar na situação das mulheres no campo do trabalho doméstico, do saber, do poder e na divisão das capacidades de decisão e responsabilidade nos governos, parlamentos e diferentes campos das instituições. Quando digo que há pouca perspectiva de gênero nesses diferentes âmbitos de poder, não é pelo fato de que, se tem uma mulher em cada governo, isso irá mudar frontalmente as coisas, isso é demonstrado pela Gloria Macapagal Arroyo, nas Filipinas, pela Cristina Kirchner, na Argentina ou Michelle Bachelet, no Chile. Houve e há mulheres presidentes, que são uma minoria, mas não é porque são mulheres que tudo muda de repente, as políticas não mudam de uma hora para outra. É necessário que haja divisão sexual do trabalho. O grupo social dos homens e das mulheres deve ser modificado, porque um indivíduo não vai mudar, frontalmente, essas coisas.
No verbete Divisão Sexual do Trabalho e Relações Sociais de Gênero, a Danièle Snotier tem uma tese importante. Ela diz que o trabalho e a divisão sexual deste é o que está em jogo nas relações sociais entre os homens e mulheres. Eles lutam pela repartição desse trabalho profissional e doméstico, e, enquanto não houver uma mudança na divisão sexual do trabalho, a desigualdade, dominação, opressão e exploração das mulheres pelos homens vai continuar.
IHU On-Line – Em se tratando de divisão sexual do trabalho, há uma vulnerabilidade provocada socialmente pelo casamento?
Helena Hirata – Muitas teóricas do feminismo irão dizer que o casamento é uma maneira de criticalizar essa situação de desigualdade e poder. Dizem que os homens casando, de certa forma, se apropriam, não só das mulheres, mas do corpo delas e de sua disposição. Assim, portanto, elas vão se tornar, com o casamento, uma espécie de prostitutas, já que elas são dependentes economicamente, e são sustentadas pelo marido em troca de diversos favores, inclusive sexuais. Há toda uma análise que é feita por antropólogas e por sociólogas. Há uma série de autores que, de certa forma, analisam casamento e prostituição como sendo duas faces de um mesmo tipo de poder e opressão dos homens sobre as mulheres. Acho que essa discussão é totalmente atual, e a questão da vulnerabilidade se coloca inclusive em sociedades em que as mulheres deixam de trabalhar, ou não podem trabalhar, por que devem se dedicar aos filhos, a casa etc. Elas se tornam vulneráveis na medida em que dependem totalmente das rendas do marido, e, portanto, são vulneráveis em situação de ruptura, quando se divorciam, por exemplo, e em situações em que elas continuam sobre o julgo do marido, porque dependem completamente deles para tudo que desejem realizar como projeto. Acho que os estudos sobre precarização social e do trabalho, com muito raras exceções, não veem os indicadores, essas variáveis de vulnerabilidade.
IHU On-Line – A figura da mulher executiva tem crescido nessas últimas duas décadas. Qual a sua visão sobre isso?
Helena Hirata – Hoje existe toda uma análise de escolas e pensamentos feministas que denomina essa tendência de polarização de emprego feminino. Há dois pólos, um mais valorizado e reconhecido, com salários relativamente altos e muitas responsabilidades. Da população feminina, 10% tem esses “bons empregos” e 90% cumpre funções relacionadas com o que elas fazem em casa, como as empregadas domésticas, enfermeiras, auxiliares de enfermagem, professoras etc. Esses dois grandes pólos fazem com que haja uma categoria de mulheres que tenha um tipo de comportamento de atividades contínuas, longas horas de trabalho, viagens e consequentemente pouca possibilidade de cumprir plenamente os papéis sociais atribuídos à mulher. Então, essa figura da executiva está criando uma consequência que é a necessidade cada vez mais de outras mulheres de camadas populares que não têm as mesmas necessidades de estarem presentes na vida das famílias. A carreira profissional de uma depende da carreira de outras, porque uma complementa o trabalho feminino da outra. Há, portanto, um potencial político e social muito grande por parte dessas domésticas, babás entre outras que fazem a carreira dessas mulheres executivas funcionar.
IHU On-Line – As empresas multinacionais contribuíram para um melhoramento das condições de trabalho especialmente das mulheres?
Helena Hirata – Fiz muitas pesquisas sobre multinacionais francesas e japonesas, tanto nesses países como no Brasil, e posso dizer que realmente há uma melhora das condições de trabalho das mulheres de países ditos em vias de desenvolvimento quando são empregadas pelas firmas multinacionais. Em termos de salário, por exemplo, uma mulher que trabalha numa multinacional vai ganhar mais do que ganhava numa firma de capital nacional. Isso porque as multinacionais têm mais possibilidades de movimentações financeiras e podem dar melhores condições de trabalho. Nos anos 1980, quando estive numa multinacional francesa na área da metalúrgica, de sobremesa, eles davam maçã numa época que essa fruta não era comum no Brasil. Então, eu acho que desse ponto de vista dos benefícios sociais, as próprias operárias reconhecem como boas condições. Só que essas condições melhores não podem ser consideradas em si, mas no conjunto dos movimentos das empresas nas sociedades.
IHU On-Line – Há, hoje, a chamada Geração Y, conhecida também como a geração da Internet, considerados jovens bem informados, questionadores e com sede de subir na carreira. Como você vê a participação da mulher nesse grupo?
Helena Hirata – Acho que certamente existem mulheres dentro deste grupo, mas aparentemente todos os estudos sobre hackers e sobre os que têm uma atividade muito intensa em termos de uso da Internet considera que esta área é majoritariamente ocupada por homens. Nesse sentido, está a questão da relação das mulheres com a técnica. Há estudos da diferença entre a relação dos homens e mulheres com a técnica e parece que há o que algumas autoras chamam de construção social da incompetência técnica das mulheres. Não se pede às mulheres para consertar um carro, por exemplo. Claro que, cada vez mais, há uma tendência à igualização das relações de homens e mulheres com a técnica. Mas hoje, por mais que as mulheres tentem entrar na área da informática, o setor é ainda majoritariamente ocupado por homens no plano profissional.
Hirata também analisou questões como o pensamento crítico feminista, as diferenças entre as mulheres de diferentes profissões e a divisão sexual do trabalho. Quando analisa a participação das mulheres no grupo conhecido como Geração Y, formada por jovens bem informados, questionadores e com sede de subir na carreira, ela diz que “certamente existem mulheres dentro deste grupo, mas aparentemente todos os estudos sobre hackers e sobre os que têm uma atividade muito intensa em termos de uso da Internet considera que esta área é majoritariamente ocupada por homens”.
Helena Hirata é professora na Universidade Estadual de Campinas, onde pesquisa Sociologia do Trabalho e do Gênero.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Seu mais recente livro chama-se Dicionário Crítico do Feminismo...
Helena Hirata – Na realidade, nós queríamos que muitas pessoas que não são especialistas na questão de gênero, do feminismo, da diferença entre os homens e as mulheres, da questão da opressão, da dominação masculina etc. pudessem ter acesso de maneira simples, clara, a toda uma série de definições sobre termos do mundo das mulheres. Nesse sentido, há um verbete no livro sobre aborto e contracepção, assédio sexual, prostituição, maternidade, movimentos feministas. Então, há uma série de verbetes que apresento, em cinco páginas, com quatro ou cinco bibliografias básicas. Cada verbete é dividido em quatro partes: uma é a definição do termo – que vai desde termos relacionados ao feminismo até termos de sociologia e economia do trabalho –, depois apresento uma história desse termo, ainda o debate e controvérsias relacionadas ao tema, e o quarto aspecto é a atualidade social e científica deste assunto.
A questão do feminismo que esse livro toca mostra que é muito importante que todas as questões relacionadas às diferenças de sexo são políticas. São temas que têm conteúdo político, porque tudo o que é pessoal é político. E a relação entre homens e mulheres oculta uma questão importante que é a hierarquia social. Se considera que os homens são superiores às mulheres e, portanto, daí decorre toda uma série de diferenças entre eles. É essa hierarquia que tem que ser questionada e, assim, o Dicionário Crítico do Feminismo é um instrumento para apreciar o conteúdo e os limites dessa hierarquia para que possamos pensar numa nova divisão do trabalho.
IHU On-Line – Como você vê hoje o pensamento crítico feminista?
Helena Hirata – Eu acho que há muitos feminismos, existem muitos movimentos feministas. O feminismo é um movimento plural, pois há pessoas ali dentro que são contra o aborto, há feministas que acreditam que a prostituição pode ser regulamentada, além de pessoas que são contra o véu islâmico. Na França, hoje, o movimento feminista mais dominante é o que chamamos de feminismo socialista que se preocupa com uma igualdade maior de salários, de condições de trabalho etc. No Brasil, o que tenho visto, por exemplo, também são reivindicações mais universalistas do que diferencialistas que considera que homens e mulheres agem de forma diferente e, portanto, merecem espaços distintos. As universalistas, por sua vez, acham que deve haver uma tônica maior na questão da igualdade.
IHU On-Line – No mundo do trabalho, a forma de enxergar a mulher cuja área em que atua é o chão de fábrica e a que trabalha na área administrativa é diferente?
Helena Hirata – Elas têm uma situação de trabalho e são vistas de maneira diferente. Ainda hoje as que trabalham no chão de fábrica têm sua profissão menos valorizada socialmente do que as profissões de ‘colarinho branco’, que trabalham em escritório, num ambiente de trabalho que é menos controlador. Ainda assim, há mais solidariedade e possibilidade de lutas entre as mulheres que estão organizadas no chão de fábrica, como operárias. Um exemplo disso foi esse segundo Congresso da Mulher metalúrgica que houve em São Bernardo, no sindicato dos metalúrgicos do ABC em março deste ano.
IHU On-Line – O que representa para a sociedade a participação feminina em lideranças de movimentos sociais e trabalhistas?
Helena Hirata – A participação das mulheres na sociedade é algo muito importante para a riqueza do país porque, se elas não efetuassem gratuitamente certas tarefas, isso teria que ser comprado no mercado e teria que se remunerar esse trabalho. O que criaria um problema de despesas tanto familiares quanto sociais e públicas. De uma maneira geral, existem movimentações sociais em que as mulheres estão inseridas, mas, em primeiro lugar, o mais importante é ver como elas são importantes para a criação de toda uma série de riquezas que, se não fossem as mulheres que estivessem fazendo de graça, o país teria um grande problema financeiro.
IHU On-Line – Quais os pontos fortes da reflexão sobre o trabalho do cuidado, desempenhado especificamente pelas mulheres?
Helena Hirata – O mais importante é que são as mulheres, majoritariamente, que fazem este tipo de trabalho. O fato delas fazerem o mesmo tipo de trabalho e cuidado com pessoas idosas, doentes, com deficiência física e com crianças, de maneira gratuita dentro de suas casas, faz com que esse trabalho seja muito desvalorizado e mal pago. Ao mesmo tempo, o fato de que as mulheres começam a trabalhar de maneira remunerada, mesmo mal pagas, nestes tipos de trabalhos, paradoxalmente, visibiliza um trabalho doméstico, até então efetuado de maneira privada e invisível. Isso mostra que esse trabalho não é feito gratuitamente, tem que ser remunerado e mercantilizado. A externalização do trabalho doméstico, que antes era feito por amor ao marido, ao companheiro, pode ser um lugar de valorização deste trabalho. Esse trabalho é muito importante, por que se desenvolveu e se desenvolve enormemente hoje, sobretudo dado a tendência demográfica do envelhecimento e da longevidade cada vez maior das pessoas idosas em todo o mundo, inclusive no Brasil, e isso faz com que esse trabalho seja cada vez mais significativo na sociedade contemporânea.
O outro ponto importante neste trabalho, que é fundo do debate teórico, é que muitas pesquisadoras e especialistas no tema dizem que precisamos superar o enfoque de gênero quando falamos de cuidado. O que falei é que há diferenças entre homens e mulheres, e são as mulheres que fazem este tipo de trabalho, que se sacrificam e ganham pouco, que têm um trabalho invísivel, mas que pode ser visibilizado. Ora, as pesquisadoras e teóricas, que trabalham sobre a ética, a política e a moral deste tipo de trabalho, irão dizer que, na realidade, não é a questão de gênero que é principal na problemática do care, mas que mostra que todas as pessoas irão ser dependentes em algum momento do ciclo de vida delas, e, portanto, isto deve ser uma preocupação universal. Segundo elas, todos devem fazer este tipo de trabalho, porque concerne a todos. Hoje, nós adultos, somos independentes, autônomos e nos orgulhamos disso, mas não seremos sempre assim. Já fomos dependentes quando pequenos, seremos em momentos de doença, e seremos dependentes, forçadamente, a partir de um certo momento da vida, pela idade mais avançada. Acho que essa é uma das questões mais importantes, desenvolvidas pela problemática deste tipo de trabalho, é a questão universal, que ultrapassa o gênero, e trata do humano.
IHU On-Line – A Divisão Sexual do Trabalho é um dos seus temas de estudo e também um dos verbetes na obra. Qual é a importância dessa discussão atualmente?
Helena Hirata – Até hoje, se falou muito no trabalho profissional dos homens e mulheres e na igualdade de salários que seria necessária, já que os sálarios masculinos e femininos são muito díspares em todo o mundo, embora sejam mais igualitários em um país europeu como a Suécia, e muito desigualitário em um país asiático como o Japão. Para além dessas discussões sobre desigualdade de salários e na profissão, a questão da divisão sexual do trabalho remete a ideia de que há uma divisão entre os sexos, tanto no terreno do trabalho quanto no do saber e do poder, e que tudo isso é indissociável. Não podemos pensar na situação das mulheres no campo, puramente, do trabalho, sem pensar na situação das mulheres no campo do trabalho doméstico, do saber, do poder e na divisão das capacidades de decisão e responsabilidade nos governos, parlamentos e diferentes campos das instituições. Quando digo que há pouca perspectiva de gênero nesses diferentes âmbitos de poder, não é pelo fato de que, se tem uma mulher em cada governo, isso irá mudar frontalmente as coisas, isso é demonstrado pela Gloria Macapagal Arroyo, nas Filipinas, pela Cristina Kirchner, na Argentina ou Michelle Bachelet, no Chile. Houve e há mulheres presidentes, que são uma minoria, mas não é porque são mulheres que tudo muda de repente, as políticas não mudam de uma hora para outra. É necessário que haja divisão sexual do trabalho. O grupo social dos homens e das mulheres deve ser modificado, porque um indivíduo não vai mudar, frontalmente, essas coisas.
No verbete Divisão Sexual do Trabalho e Relações Sociais de Gênero, a Danièle Snotier tem uma tese importante. Ela diz que o trabalho e a divisão sexual deste é o que está em jogo nas relações sociais entre os homens e mulheres. Eles lutam pela repartição desse trabalho profissional e doméstico, e, enquanto não houver uma mudança na divisão sexual do trabalho, a desigualdade, dominação, opressão e exploração das mulheres pelos homens vai continuar.
IHU On-Line – Em se tratando de divisão sexual do trabalho, há uma vulnerabilidade provocada socialmente pelo casamento?
Helena Hirata – Muitas teóricas do feminismo irão dizer que o casamento é uma maneira de criticalizar essa situação de desigualdade e poder. Dizem que os homens casando, de certa forma, se apropriam, não só das mulheres, mas do corpo delas e de sua disposição. Assim, portanto, elas vão se tornar, com o casamento, uma espécie de prostitutas, já que elas são dependentes economicamente, e são sustentadas pelo marido em troca de diversos favores, inclusive sexuais. Há toda uma análise que é feita por antropólogas e por sociólogas. Há uma série de autores que, de certa forma, analisam casamento e prostituição como sendo duas faces de um mesmo tipo de poder e opressão dos homens sobre as mulheres. Acho que essa discussão é totalmente atual, e a questão da vulnerabilidade se coloca inclusive em sociedades em que as mulheres deixam de trabalhar, ou não podem trabalhar, por que devem se dedicar aos filhos, a casa etc. Elas se tornam vulneráveis na medida em que dependem totalmente das rendas do marido, e, portanto, são vulneráveis em situação de ruptura, quando se divorciam, por exemplo, e em situações em que elas continuam sobre o julgo do marido, porque dependem completamente deles para tudo que desejem realizar como projeto. Acho que os estudos sobre precarização social e do trabalho, com muito raras exceções, não veem os indicadores, essas variáveis de vulnerabilidade.
IHU On-Line – A figura da mulher executiva tem crescido nessas últimas duas décadas. Qual a sua visão sobre isso?
Helena Hirata – Hoje existe toda uma análise de escolas e pensamentos feministas que denomina essa tendência de polarização de emprego feminino. Há dois pólos, um mais valorizado e reconhecido, com salários relativamente altos e muitas responsabilidades. Da população feminina, 10% tem esses “bons empregos” e 90% cumpre funções relacionadas com o que elas fazem em casa, como as empregadas domésticas, enfermeiras, auxiliares de enfermagem, professoras etc. Esses dois grandes pólos fazem com que haja uma categoria de mulheres que tenha um tipo de comportamento de atividades contínuas, longas horas de trabalho, viagens e consequentemente pouca possibilidade de cumprir plenamente os papéis sociais atribuídos à mulher. Então, essa figura da executiva está criando uma consequência que é a necessidade cada vez mais de outras mulheres de camadas populares que não têm as mesmas necessidades de estarem presentes na vida das famílias. A carreira profissional de uma depende da carreira de outras, porque uma complementa o trabalho feminino da outra. Há, portanto, um potencial político e social muito grande por parte dessas domésticas, babás entre outras que fazem a carreira dessas mulheres executivas funcionar.
IHU On-Line – As empresas multinacionais contribuíram para um melhoramento das condições de trabalho especialmente das mulheres?
Helena Hirata – Fiz muitas pesquisas sobre multinacionais francesas e japonesas, tanto nesses países como no Brasil, e posso dizer que realmente há uma melhora das condições de trabalho das mulheres de países ditos em vias de desenvolvimento quando são empregadas pelas firmas multinacionais. Em termos de salário, por exemplo, uma mulher que trabalha numa multinacional vai ganhar mais do que ganhava numa firma de capital nacional. Isso porque as multinacionais têm mais possibilidades de movimentações financeiras e podem dar melhores condições de trabalho. Nos anos 1980, quando estive numa multinacional francesa na área da metalúrgica, de sobremesa, eles davam maçã numa época que essa fruta não era comum no Brasil. Então, eu acho que desse ponto de vista dos benefícios sociais, as próprias operárias reconhecem como boas condições. Só que essas condições melhores não podem ser consideradas em si, mas no conjunto dos movimentos das empresas nas sociedades.
IHU On-Line – Há, hoje, a chamada Geração Y, conhecida também como a geração da Internet, considerados jovens bem informados, questionadores e com sede de subir na carreira. Como você vê a participação da mulher nesse grupo?
Helena Hirata – Acho que certamente existem mulheres dentro deste grupo, mas aparentemente todos os estudos sobre hackers e sobre os que têm uma atividade muito intensa em termos de uso da Internet considera que esta área é majoritariamente ocupada por homens. Nesse sentido, está a questão da relação das mulheres com a técnica. Há estudos da diferença entre a relação dos homens e mulheres com a técnica e parece que há o que algumas autoras chamam de construção social da incompetência técnica das mulheres. Não se pede às mulheres para consertar um carro, por exemplo. Claro que, cada vez mais, há uma tendência à igualização das relações de homens e mulheres com a técnica. Mas hoje, por mais que as mulheres tentem entrar na área da informática, o setor é ainda majoritariamente ocupado por homens no plano profissional.
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