quarta-feira, 31 de março de 2010

Libertos mais de 80 em carvoarias

Feitos de restos de madeiras e lona, alguns alojamentos ficavam em lamaçais. Trabalhadores dormiam em pedaços de espuma suja e mantinham atividade todos os dias, sem descanso. Infrações ambientais também foram registradas.
A reportagem é de Bianca Pyl e publicado pela Agência Repórter Brasil, 30-03-2010.
O funcionamento de 14 carvoarias na zona rural de Jussara (GO), no local conhecido como Vale do Araguaia, dependia de 81 trabalhadores submetidos a condições análogas à escravidão. O quadro de irregularidades foi encontrado pela Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Goiás (SRTE/GO), em parceria com o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Polícia Federal (PF), entre os dias 22 de fevereiro e 10 de março deste ano.


Trabalhadores dormiam em casebres totalmente improvisados em meio a lamaçal (Foto:SRTE/GO)

A maior parte dos empregados foi aliciada em Minas Gerais. "Algumas funções, como a de carbonizador, requerem trabalho especializado e Minas Gerais possui muitas pessoas com conhecimento nessa área", explica Roberto Mendes, coordenador da fiscalização rural daSRTE/GO. As vítimas desmatavam a vegetação, retiravam a lenha e produziam carvão.
As 14 carvoarias estavam localizadas nas seguintes propriedades: Fazenda Água Limpa do Araguaia, de propriedade de Antônio Joaquim Duarte; Fazenda Pompéia, que pertence aJairo Benedito Perillo; Fazenda Nossa Senhora Aparecida, de Labib Adas; Fazenda Chaparral, de Renato Rodrigues da Costa; e Fazenda Santa Rosa do Araguaia, da empresa Oesteval Agropastoril Ltda. As carvoarias funcionavam há cerca de quatro anos. Nesse período, os mesmos trabalhadores mudavam de uma fazenda para outra.
Os alojamentos eram feitos de restos de madeiras e lonas em chão de terra batida ou areia, alguns deles localizados próximos a lamaçais (veja foto acima). Os trabalhadores dormiam em camas improvisadas com tocos de madeira e utilizavam pedaços de espumas velhas e sujas como colchões (foto ao lado). Não havia roupas de cama e nem armários individuais para guardar pertences.
Para tomar banho, os trabalhadores utilizavam copos para jogar água no corpo. Não havia sequer cozinhas. Os alimentos eram preparados dentro dos alojamentos, em fogões improvisados, com risco de incêndios. Não havia instalações sanitárias ou elétricas. Os empregadores não forneciam água potável. Algumas esposas e filhos de carvoeiros também moravam nas mesmas condições.
Os trabalhadores não tinham acesso a nenhum tipo de Equipamento de Proteção Individual (EPI). "A maioria dos carvoeiros trabalhava apenas de bermudas e chinelos, mesmo estando expostos ao calor intenso, à fumaça e à fuligem produzidas pela produção e remoção do carvão", detalha Roberto. Nenhum dos operadores de motosserras e de tratores possuía capacitação.
As vítimas estavam submetidas a uma jornada exaustiva de trabalho, sem descanso semanal renumerado. Trabalhavam de segunda a segunda, inclusive aos domingos. "Além desse quadro de condições desumanas e falta de segurança, os empregados não tinham direito a 13º salário, férias, depósito do Fundo de Garantia pelo Tempo de Serviço (FGTS). Com isso, perdiam a contagem do tempo de serviço para aposentadoria", explica Roberto. A maior parte dos trabalhadores também não tinha suas Carteiras de Trabalho e da Previdência Social (CTPS) assinadas.
Além das infrações à legislação trabalhista, também foram detectadas infrações ambientais. Os fiscais verificaram que duas carvoarias funcionavam sem autorização e que nenhuma das mais de dez motosserras tinha licença do órgão ambiental responsável. Houve registro de queimadas irregulares após a derrubada do Cerrado. Durante a operação, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) informou a Agência Ambiental de Goiás sobre as irregularidades e solicitou a presença de representantes no local, mas até o fim da fiscalização ninguém do órgão estadual compareceu.

Empregados não recebiam nenhum tipo de Equipamento de Proteção Individual (Foto: SRTE/GO)

No total, os trabalhadores resgatados receberam mais de R$ 200 mil referentes às verbas rescisórias. Além disso, receberão três parcelas de Seguro-Desemprego do Trabalhador Resgatado, no valor de um salário mínimo cada. Todas as carvoarias foram interditadas. Assim como todas as atividades de desmatamento e de retirada de lenha.
"Os proprietários das fazendas receberam várias autuações e poderão, ao final dos processos administrativos onde lhes serão garantidos o contraditório e a ampla defesa, ter seus nomes incluídos na lista de empregadores que submetem trabalhadores à condição análoga à de escravo, conhecida como ´lista suja´. Isso sem falar em possíveis implicações criminais, uma vez que o fato é tipificado como crime pelo Artigo 149, do Código Penal Brasileiro", adiciona o auditor fiscal do trabalho Roberto Mendes.
De acordo com ele, a produção artesanal de carvão vegetal constitui uma atividade de grande risco à saúde e integridade física do trabalhador. "A atividade requer uma série de medidas preventivas por parte dos empreendedores, os quais devem sempre procurar assistência técnica de profissionais da área de segurança e saúde no trabalho".
Em outra ação realizada em janeiro deste ano, a SRTE/GO interditou várias carvoarias em cinco fazendas no município de Aporé (GO): Fazenda Ranchinho (de Flávio Pascoa Teles de Menezes); Fazenda N. S. D´ Abadia (de Benedicta Terezinha Pedrinho Baptista); Fazenda Furnas São Domingos (de Manoel Domingos de Lima); Fazenda Orissanga (de Antônio Melhado Sobrinho); e Fazenda Serra Verde (de Rosana Elisa Regatiere Magalhães).

segunda-feira, 29 de março de 2010

Carter: exagerar o poder do MST é um preconceito de classe

Em dezembro de 2009, Miguel Carter concluiu o trabalho de organizar o livro ‘Combatendo a Desigualdade Social – O MST e a Reforma Agrária no Brasil.’. É um lançamento da Editora UNESP, que reúne colaborações de especialistas sobre a questão agrária e o papel do MST pela luta pela Reforma Agrária no Brasil.
Esta semana, ele conversou com Paulo Henrique Amorim, por telefone.

PHA – Professor Miguel, o senhor é professor de onde?
MC
Eu sou professor da American University, em Washington D.C.

PHA – Há quanto tempo o senhor estuda o problema agrário no Brasil e o MST?
MC
- Quase duas décadas já. Comecei com as primeiras pesquisas no ano de 91.

PHA – Eu gostaria de tocar agora em alguns pontos específicos da sua introdução “Desigualdade Social Democracia no Brasil”. O senhor descreve, por exemplo, a manifestação de 2 de maio de 2005, em que, por 16 dias, 12 mil membros do MST cruzaram o cerrado para chegar a Brasília. O senhor diz que, provavelmente, esse é um dos maiores eventos de larga escala do tipo marcha na história contemporânea. Que comparações o senhor faria ?
MC –
Não achei outra marcha na história contemporânea mundial que fosse desse tamanho. A gente tem exemplo de outras mobilizações importantes, em outros momentos, mas não se comparam na duração e no numero de pessoas a essa marcha de 12 mil pessoas. Houve depois, como eu relatei no rodapé, uma mobilização ainda maior na Índia, também de camponeses sem terra. Mas a de 2005 era a maior marcha.

PHA – O senhor compara esse evento, que foi no dia 2 de maio de 2005, com outro do dia 4 de junho de 2005 – apenas 18 dias após a marcha do MST – com uma solenidade extremamente importante aqui em São Paulo que contou com Governador Geraldo Alckmin, sua esposa, Dona Lu Alckmin, e nada mais nada menos do que um possível candidato do PSDB a Presidência da República, José Serra, que naquela altura era prefeito de São Paulo. Também esteve presente Antônio Carlos Magalhães, então influente senador da Bahia. Trata-se da inauguração da Daslu. Por que o senhor resolver confrontar um assunto com o outro ?
MC
Porque eu achei que começar o livro com simples estatísticas de desigualdades sociais seria um começo muito frio. Eu acho que um assunto como esse precisa de uma introdução que também suscite emoções de fato e (chame a atenção para) a complexidade do fenômeno da desigualdade no Brasil. A coincidência de essa marcha ter acontecido quase ao mesmo tempo em que se inaugurava a maior loja de artigos de luxo do planeta refletia uma imagem, um contraste muito forte dessa realidade gravíssima da desigualdade social no Brasil. E mostra nos detalhes como as coisas aconteciam, como os políticos se posicionavam de um lado e de outro, como é que a grande imprensa retratava os fenômenos de um lado e de outro.

PHA – O senhor sabe muito bem que a grande imprensa brasileira – que no nosso site nós chamamos esse pessoal de PiG (Partido da Imprensa Golpista) - a propósito da grande marcha do MST, a imprensa ficou muito preocupada como foi financiada a marcha. O senhor sabe que agora está em curso uma Comissão Parlamentar de Inquérito Mista, que reúne o Senado e a Câmara, para discutir, entre outras coisas, a fonte de financiamento do MST. Como o senhor trata essa questão ? De onde vem o dinheiro do MST ?
MC _
Tem um capítulo 9 de minha autoria feito em conjunto com o Horácio Marques de Carvalho que tem um segmento que trata de mostrar o amplo leque de apoio que o MST tem, inclusive e apoio financeiro.

PHA – O capítulo se chama “Luta na terra, o MST e os assentamentos” - é esse ?
MC –
Exatamente. Há uma parte onde eu considero sete recursos internos que o MST desenvolveu para fortalecer sua atuação, nesse processo de fazer a luta na terra, de fortalecer as suas comunidades, seus assentamentos. E aí tem alguns detalhes, alguns números interessantes. Porque eu apresento dados do volume de recursos que são repassados para entidades parceiras por parte do Governo Federal. Eu sublinho no rodapé dessa mesma página o fato de que as principais entidades ruralistas do Brasil têm recebido 25 vezes mais subsídios do Governo Federal (do que o MST). E o curioso de tudo isso é que só fiscalizado como pobre recebe recurso público. Mas, sobre os ricos, que recebem um volume de recursos 25 vezes maior que o dos pobres, (sobre isso) ninguém faz nenhuma pergunta, ninguém fiscaliza nada. Parece que ninguém tem interesse nisso. E aí o Governo Federal subsidia advogados, secretárias, férias, todo tipo de atividade dos ruralistas. Então chama a atenção que propriedade agrária no Brasil, ainda que modernizada e renovada, continua ter laços fortes com o poder e recebe grande fatia de recursos públicos. Isso são dados do próprio Ministério da Agricultura, mencionados também nesse capítulo. Ainda no Governo Lula, a agricultura empresarial recebeu sete vezes mais recursos públicos do que a agricultura familiar. Sendo que a agricultura familiar emprega 80% ou mais dos trabalhadores rurais.

PHA – Qual é a responsabilidade da agricultura familiar na produção de alimentos na economia brasileira ?
MC
Na página 69 há muitos dados a esse respeito.

PHA- Aqui: a mandioca, 92% saem da agricultura familiar. Carne de frango e ovos, 88%. Banana, 85%.. Feijão, 78%. Batata, 77%. Leite, 71%. E café, 70%. É o que diz o senhor na página 69 sobre o papel da agricultura familiar. Agora, o senhor falava de financiamentos públicos. Confederação Nacional da Agricultura, presidida pela senadora Kátia Abreu, que talvez seja candidata a vice-presidente de José Serra, a Confederação Nacional da Agricultura recebe do Governo Federal mais dinheiro do que o MST ?
MC
Muito mais. Essas entidades ruralistas em conjunto, a CNA, a SRB, aquela entidade das grandes cooperativas, em conjunto elas recebem 25 vezes do valor que recebem as entidades parceiras do MST. Esses dados, pelo menos no período 1995 e 2005, fizeram parte do relatório da primeira CPI do MST. O relatório foi preparado pelo deputado João Alfredo, do Ceará.

PHA – O senhor acredita que o MST conseguirá realizar uma reforma agrária efetiva ? A sua introdução mostra que a reforma agrária no Brasil é a mais atrasada de todos os países que fazem ou fizeram reforma agrária. Que o Brasil é o lanterninha da reforma agrária. Eu pergunto: por que o MST não consegue empreender um ritmo mais eficaz ?
MC
Em primeiro lugar, a reforma agrária é feita pelo Estado. O que os movimentos sociais como o MST e os setenta e tantos outros que existem em todo o Brasil fazem é pressionar o Estado para que o Estado cumpra o determinado na Constituição. É a cláusula que favorece a reforma agrária. O MST não é responsável por fazer. É responsável por pressionar o Governo. Acontece que nesse país de tamanha desigualdade, a história da desigualdade está fundamentalmente ligada à questão agrária. Claro que, no século 20, o Brasil, se modernizou, virou muito mais complexo, surgiu todo um setor industrial, um setor financeiro, um comercial. E a (economia) agrária já não é mais aquela, com tanta presença no Brasil. Mas, ainda sim, ficou muito forte pelo fato de o desenvolvimento capitalista moderno no campo, nas últimas décadas, ligar a propriedade agrária ao setor financeiro do país. É o que prova, por exemplo, de um banqueiro (condenado há dez anos por subornar um agente federal – PHA) como o Dantas acabar tendo enormes fazendas no estado do Pará e em outras regiões do Brasil. Houve então uma imbricação muito forte entre a elite agrária e a elite financeira. E agora nessa última década ela se acentuou num terceiro ponto em termos de poder econômico que são os transacionais, o agronegócio. Cargill, a Syngenta… Antes, o que sustentava a elite agrária era uma forte aliança patrimonialista com o Estado. Agora, essa aliança se sustenta em com setor transacional e o setor financeiro.

PHA – Um dos sustos que o MST provoca na sociedade brasileira, sobretudo a partir da imprensa, que eu chamo de PiG, é que o MST pode ser uma organização revolucionária – revolucionária no sentido da Revolução Russa de 1917 ou da Revolução Cubana de 1959. Até empregam aqui no Brasil, como economista Xico Graziano, que hoje é secretário de José Serra, que num artigo que o senhor fala em “terrorismo agrário”. E ali Graziano compara o MST ao Primeiro Comando da Capital. O Primeiro Comando da Capital, o PCC, que, como se sabe ocupou por dois dias a cidade de São Paulo, numa rebelião histórica. Eu pergunto: o MST é uma instituição revolucionária ?
MC
No sentido de fazer uma revolução russa, cubana, isso uma grande fantasia. E uma fantasia às vezes alardeada com maldade, porque eu duvido que uma pessoa como o Xico Graziano, que já andou bastante pelo campo no Brasil, não saiba melhor. Ele sabe melhor. Mas eu acho que (o papel do) MST é (promover) uma redistribuição da propriedade. E não só isso, (distribuição) de recursos públicos, que sempre privilegiou os setores mais ricos e poderosos do país. Há, às vezes, malícia mesmo de certos jornalistas, do Xico Graziano, Zander Navarro, dizendo que o MST está fazendo uma tomada do Palácio da Alvorada. Eles nunca pisaram em um acampamento antes. Então, tem muito intelectual que critica sem saber nada. O importante desse (“Combatendo a desigualdade social”) é que todos os autores têm longos anos de experiência (na questão agrária). A grande maioria tem 20, 30 anos de experiência e todos eles têm vivência em acampamento e assentamentos. Então conhecem a realidade por perto e na pele. O Zander Navarro, por exemplo, se alguma vez acompanhou de perto o MST, foi há mais de 15 anos. Tem que ter acompanhamento porque o MST é de fato um movimento.

PHA – Ou seja, na sua opinião há uma hipertrofia do que seja o MST ? Há um exagero exatamente para criar uma situação política ?
MC
Exatamente. Eu acho que há interesse por detrás desse exagero. O exagero às vezes é inocente por gente que não sabe do assunto. Mas às vezes é malicioso e procura com isso criar um clima de opinião para reprimir, criminalizar o MST ou cortar qualquer verba que possa ir para o setor mais pobre da sociedade brasileira. Há muito preconceito de classe por trás (desse exagero).

(*)Em nenhuma democracia séria do mundo, jornais conservadores, de baixa qualidade técnica e até sensacionalistas, e uma única rede de televisão têm a importância que têm no Brasil. Eles se transformaram num partido político – o PiG, Partido da Imprensa Golpista

domingo, 28 de março de 2010

A privatização da água nega o direito humano de ter acesso a ela. Entrevista especial com Riccardo Petrella

Na entrevista a seguir, concedida, por e-mail, Riccardo Petrella italiano radicado na Bélgica, analisa o problema da água no mundo. Antes de refletir sobre a “crise da água”, ele enfatiza que “a rarefação da água, da qual atualmente todo o mundo não pára de falar, não é uma rarefação da quantidade de água em si”, isso porque a quantidade de água doce que temos hoje é a mesma de 200 milhões de anos atrás“. A rarefação é antes uma rarefação da qualidade de água para usos humanos em condições técnicas, econômicas e sócio/políticas ‘abordáveis’ e aceitáveis”, disse.
Além da questão da qualidade da água, Petrella refletiu sobre problemas como a privatização da água, saneamento básico e Copenhague. “O direito à água para todos se confirma não ser uma prioridade principal das classes dirigentes mundiais. Sua prioridade é saber quem vai ganhar, no decurso dos próximos 15 anos, a batalha para a conquista e a supremacia do mercado de um bilhão de novos carros ‘verdes’, bem como aquela das novas moradias ‘verdes’”, afirmou.
Riccardo Petrella nasceu na Itália, mas hoje vive na Bélgica. É economista e cientista político, e já esteve diversas vezes no Brasil, inclusive, a convite do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, duas vezes na Unisinos.
Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como avalia, de maneira mais geral, a qualidade da água no mundo?
Riccardo PetrellaNo que se refere à água doce acessível e utilizável para usos humanos, a qualidade da água continua a se deteriorar. Isso ocorre mesmo depois dos dirigentes do mundo inteiro tomarem consciência, pelo fim dos anos 1960 e começo dos anos 1970, da amplitude e da gravidade dos problemas da água. Na verdade, a rarefação da água, da qual atualmente todo o mundo não pára de falar, não é uma rarefação da quantidade de água em si (a quantidade da água doce sobre a terra não muda. Ela é a mesma que aquela de 200 milhões de anos atrás, como ela será a mesma daqui a 100 milhões de anos ou mais). A rarefação é antes uma rarefação da qualidade de água para usos humanos em condições técnicas, econômicas e sócio/políticas ‘abordáveis’ e aceitáveis.
As razões do agravamento do estado qualitativo da água são múltiplas e variadas. As principais são as retiradas ou extrações excessivas e os fenômenos de contaminação e de poluição. É preciso considerar, além disso, a má gestão dos solos e das bacias hidrográficas, notadamente transnacionais.

IHU On-Line – Qual é sua opinião sobre a privatização da água, considerando que ela deveria ser um bem público universal?
Riccardo Petrella Eu sou contrário à privatização da água por duas razões principais: primeiro, porque ela se traduz pela mercantilização da água e, por conseguinte, pela mercantilização da vida. Assim, todo mundo reconhece que a água é sinônimo de vida, ou seja, “fonte” de vida. Ora, privatizar os serviços de água significa tratar a água como mercadoria, mesmo que determinados poderes públicos tentem dizer que se trata de uma mercadoria diferente das outras. A segunda razão que mostra que sou contrário é porque a privatização também implica na privatização do poder político, das decisões em matéria de salvaguarda da água, de seus usos e do direito à água. A água é um bem essencial e insubstituível à vida, e não se pode, por isso, confiar o poder de decisão a seu respeito a indivíduos privados.
É escandaloso pensar que a água possa ser fonte de lucro, e que os objetivos de rentabilidade financeira ditem as escolhas e as prioridades da gestão dela. Além disso, sendo a gestão da água necessariamente organizada sobre bases de monopólio natural, é inimaginável que o acesso à água possa gerar lucros.
No quadro da privatização, o acesso à água é subordinado ao poder de compra dos indivíduos e das organizações. Os seres humanos deixam de ser cidadãos para se tornarem consumidores e clientes de água. Ora, o acesso à água é e deve ser considerado e concretizado enquanto direito humano, a saber, um direito universal, indivisível e imprescritível. A sociedade, e as autoridades públicas em particular traem sua função e abandonam suas responsabilidades procedendo à privatização da água.
Opor-se à privatização não significa ignorar a existência dos custos que comporta pôr a água à disposição para os usos humanos vitais e a questão de sua cobertura e financiamento. Os custos, que são importantes, devem ser assumidos pela coletividade através dos processos fiscais gerais e específicos. O financiamento dos investimentos referentes a todo serviço público relativo à satisfação de um direito humano é de responsabilidade comum dos membros da comunidade, do nível local aos níveis nacional e internacional. Confiar tal financiamento ao consumidor para o pagamento de um preço é esvaziar de sentido o direito humano à vida e mudar a própria natureza da água.
No que se refere à água mineral engarrafada, convém denunciar a mistificação mundial operada no decurso dos últimos 30 anos. Por definição, a água mineral natural não é uma água potável, pois ela não pode ser tratada, mas deve ser engarrafada tal como ela sai da fonte, sob pena de perder suas características. Somente se pode reduzir ou acrescentar anidrido carbônico. Uma água potável é a que sofreu um tratamento que corresponde aos critérios (nacionais ou internacionais) de potabilidade. Por esta razão, as águas minerais naturais engarrafadas podem ser objeto unicamente de um uso temporário, descontínuo e específico, por sua relação a certas características em sais minerais que atribuem a essas águas propriedades para-terapêuticas.
Ora, uma vasta campanha publicitária conduzida nestas últimas décadas conseguiu fazer a opinião pública crer que a água mineral natural é melhor que a água da torneira, que é preciso beber água mineral para garantir melhor saúde, que as águas minerais engarrafadas são mais puras do que a água potável etc. Isso é estritamente falso. O sucesso das águas minerais naturais é devido principalmente à publicidade e a uma estratégia voluntarista de marketing da parte das companhias multinacionais das bebidas gasosas doces, que chegou a transformar as águas minerais num gigantesco mercado mundial muito sumarento.
Há também outra razão, de natureza socioeconômica, ligada ao fato que nossas sociedades se tornaram sistemas de altíssima mobilidade das pessoas. As garrafas de água mineral em plástico, em múltiplos formatos, têm sido uma resposta muito eficaz aos “imperativos” de um modo de vida muito móvel.

IHU On-Line – Quais são os maiores desafios no mundo atual em relação à questão do saneamento básico?
Riccardo Petrella O principal desafio é, evidentemente, a saúde. Ainda hoje, uma das principais causas da mortalidade infantil no mundo é a ausência de água doce ou o recurso inevitável a uma água de má qualidade bioquímica, bem como a ausência de serviços higiênicos e sanitários adequados. É vergonhoso que 2,6 bilhões de seres humanos ainda não saibam o que é uma toalete ou um sanitário público. É inaceitável que, em 2010, haja 4900 crianças com menos de seis anos que morrem a cada dia no mundo por causa de doenças devidas especificamente à ausência de água e de serviços higiênicos.
O que é inaceitável, em particular, é que a mortalidade citada não é devida ao fato das crianças e mulheres habitarem em regiões onde a água esteja faltando. Isso também existe, mas a causa principal é representada pelo fato dessas pessoas serem pobres. O empobrecimento atual de amplas fatias das populações da África, da Ásia e da América Latina está na origem das desigualdades no acesso à água e, por conseguinte, à saúde e à vida.
É importante destacar que uma responsabilidade direta desse estado de coisas cabe também às classes dirigentes dos países dessas regiões, pois elas não utilizam nem os recursos financeiros limitados de que dispõem, nem os recursos naturais dos quais seus países são frequentemente muito ricos. Assim, os investimentos nas infraestruturas e serviços referentes ao tratamento das águas usadas e sua reciclagem são, de longe, inferiores àqueles destinados a manter ou reforçar seus poderes e seus privilégios no contexto de uma subordinação da economia do país aos interesses dos fortes poderes das empresas multinacionais e dos Estados ex ou neocolonizadores.

IHU On-Line – Em sua opinião, quem deveria cuidar da gestão do setor hídrico?
Riccardo PetrellaPermita-me, aqui, acrescentar algumas observações a propósito de um tema interessante, emblemático das ambiguidades e mistificações existentes em matéria de água, alimentadas pelos grupos sociais dominantes. Refiro-me ao conceito de PPP (Partilha Pública Privada) que, segundo esses grupos, devia representar o modelo ideal para conjugar harmoniosamente os objetivos, de um lado, do acesso à água para todos e o tratamento da água enquanto bem comum, e, de outro lado, de uma gestão eficaz e eficiente dos serviços de água no interesse dos prestadores e dos “consumidores”. Observe que o Banco Mundial assume o conceito de PPP desde 1993 e utiliza a obrigação de sua aplicação como condição da outorga de sua parte de empréstimos para o financiamento no domínio da água aos países do Sul.
A experiência demonstrou que o PPP se tornou, sobretudo, um instrumento de subordinação do desenvolvimento dos serviços de água aos imperativos de rentabilidade financeira das empresas multinacionais privadas estrangeiras – francesas e britânicas, notadamente – às quais a gestão da água tem sido confiada, após sua inserção no mercado em obediência ao princípio de liberalização dos serviços públicos imposta pelo Banco Mundial. De fato, o PPP se traduziu pela Privatização do Poder Político, verdadeiro apossamento do controle dos recursos naturais do país pelos grandes grupos industriais, comerciais e financeiros mundiais (chineses e indianos incluídos). Os numerosos casos recentes de abandono do PPP parecem indicar o fim da mistificação.

IHU On-Line – Como o senhor interpreta o fato de Copenhague não ter debatido a questão da água?
Riccardo Petrella A recusa de incluir a problemática da água nas negociações sobre o desenvolvimento e o meio ambiente iniciadas no Rio de Janeiro, em 1992 e, em particular, no quadro da United Nations Framework Convention on Climatic Change (UNFCCC) iniciada no Rio de Janeiro e aprovada em 1994, data deste período. Depois, não se conseguiu mais convencer os Estados fortes da ONU (EUA, China, França, UK, Alemanha, Canadá, Brasil, Egito, Japão, Rússia etc) de considerarem a água como parte integrante das negociações sobre o clima. Portanto, todos os trabalhos do Grupo intergovernamental de Estudo sobre o Clima (GIEC) puseram sistematicamente em evidência os elos fundamentais entre a mudança climática e a água, simultaneamente no que se refere às causas e efeitos da mudança climática.
A razão principal dessa recusa, a meu ver, é dupla. Primeiro, o direito à água para todos se confirma não ser uma prioridade principal das classes dirigentes mundiais. Sua prioridade é saber quem vai ganhar no decurso dos próximos 15 anos a batalha para a conquista e a supremacia do mercado de um bilhão de novos carros ‘verdes’, bem como aquela das novas moradias ‘verdes’ (de energia passiva e ativa).
Foi assim que, em Copenhague, ignorou-se totalmente a questão da necessária transformação profunda das enormes favelas onde estão “recolhidos” e “se depositam” centenas de milhões de seres humanos considerados como “rejeitos” e “matérias-primas produtivas” de preço vil.
Segundo, as classes dirigentes estão conscientes que, se introduzissem a água nas negociações sobre o clima, deveriam se engajar para operar transformações radicais da economia dominante e de seus modos de vida.

IHU On-Line – O senhor acredita que a água em penúria poderá vir a ser uma das principais causas de guerra no século 21?
Riccardo Petrella Se os grupos sociais dominantes continuarem a aplicar os princípios políticos e a manter as escolhas econômicas fundamentais atuais, as “guerras” da água se tornarão frequentes e cada vez mais “mortíferas”. Não poderia ser de outra maneira na base da aplicação dos princípios de soberania nacional absoluta sobre os recursos hídricos e da segurança nacional no aprovisionamento de água, garantia da segurança alimentar, energética e econômica em geral do país.
Os cenários das guerras da água serão inevitáveis se as políticas de mitigação e de adaptação à mudança climática forem dominadas pelas estratégias de sobrevivência do “cada um por si”. Enfim, as guerras da água terão lugar se os grupos sociais dominantes continuarem a impor, no domínio da água e da vida, o paradigma econômico hoje dominante, mercadológico, produtivista e financeiramente utilitarista. Inversamente, as guerras da água não são nem inelutáveis nem inevitáveis se outra concepção da água e da vida se afirmar no decurso dos próximos 20 anos no sulco do paradigma de uma sociedade justa, durável e eficaz em escala mundial. Em suma, as guerras da água só terão lugar se nossas classes dirigentes o quiserem.

IHU On-Line – Como vai o trabalho do Contrato Mundial da Água? Quais são os principais avanços e objetivos a serem obtidos?
Riccardo PetrellaOs trabalhos que conduziram à criação, em 1997, do Comitê Internacional para o Contrato Mundial da Água remontam aos anos de 1994-95 em torno da reação do “Manifesto da Água. Por um Contrato Mundial”. Uma das principais contribuições do Contrato Mundial da Água foi não somente o de ter contribuído, com outros grupos, associações e movimentos, à sensibilização e mobilização culturais sobre as questões da água, mas principalmente de ter feito sair a problemática da água do domínio da política ambiental para inscrevê-la principalmente no domínio da política da vida, do modelo de sociedade.
Tal tem sido o papel específico, inovador sob diversos aspectos, das diferentes Associações para o Contrato Mundial da Água (ACME) que se constituíram na Bélgica, na Itália, na França, em Quebec, na Suíça, no Marrocos, entre outros países. O movimento nascido com o Contrato Mundial da Água contribuiu para fazer tomar consciência dos estreitos elos entre o direito humano à água e o regime econômico de propriedade e de gestão da água e, notadamente, o elo entre a pobreza/empobrecimento e o não acesso à água. Diante do Manifesto da Água, a tese sobre o não acesso à água e a desigualdade no acesso eram “explicados” pela injustiça da natureza e pelo fator demográfico. Foi somente em 2006 que, pela primeira vez, uma agência das Nações Unidas reconheceu que a principal causa do não acesso e das desigualdades no acesso à água são a pobreza e a desigualdade no poder.
Creio, também, que o Contrato Mundial da Água participou ativamente da luta contra a privatização e a mercantilização, evitando, em certos países, que elas se afirmem, e, contribuindo, em outros, para que a pressão em favor da re-publicização da água produza resultados concretos. É de assinalar, enfim, seu papel desempenhado no desenvolvimento de “faculdades da água” na Itália, na França, no Brasil, na Argentina etc., e, mais recentemente, no nascimento de novas formas de diálogo inter-religioso e de grandes tradições morais em favor de uma mobilização conjunta pelo direito da água para todos e da água como bem comum e patrimônio da humanidade e de todas as espécies vivas.

OIT: 614,2 milhões de pessoas trabalham mais de 48 horas semanais

Brasília - Em todo o mundo, 614,2 milhões de pessoas trabalham mais de 48 horas semanais, jornada acima das 40 horas por semana adotadas em grande parte dos países. De acordo com dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o contingente representa 22% da força de trabalho mundial.
O gênero e a idade aparecem entre as questões relevantes para determinar a duração do trabalho. Segundo a OIT, os homens tendem a executar jornadas mais longas, porque as mulheres precisam se dedicar ainda à família e à casa. Em relação à faixa etária, os jovens e as pessoas em idade de se aposentar trabalham menos horas.
Entre os países onde os trabalhadores cumprem a maior carga horária estão o Peru (50.9%), a República da Coreia (49.5%), a Tailândia (46.7%) e o Paquistão (44.4%). O Brasil está em 13º lugar, com 19.1%.
A OIT afirma inda que tentativas de redução da jornada em alguns países têm enfrentado obstáculos porque os empregadores usam as horas extras como forma de aumentar a produtividade dos empregados, que, por sua vez, necessitam trabalhar mais horas para poder garantir melhores salários.
Para a entidade, os acordos sobre jornada de trabalho devem favorecer a saúde e a segurança no trabalho, a compatibilidade com a vida familiar, além de promover a igualdade de gênero.
Roberta Lopes - Repórter da Agência Brasil

sexta-feira, 26 de março de 2010

A esquerda no século XXI. Artigo de Slavoj Zizek

"Uma nova classe global está assim surgindo, "com, digamos, um passaporte indiano, um castelo na Escócia, um 'pied-à-terre' em Manhattan e uma ilha caribenha privada", escreve Slavoj Zizek. Segundo ele, "São Paulo, no Brasil de Lula, que hospeda 250 heliportos na área do centro da sua cidade" é um exemplo dos "cidadãos globais" que vivem em áreas isoladas.
"Para se isolar do perigo de se misturar com as pessoas comuns, - escreve Zizek -, o rico de São Paulo prefere usar os helicópteros, pois então, olhando o horizonte da cidade, sente-se verdadeiramente como se se encontrasse em uma megalópole futurista do gênero descrito em filmes como "Blade Runner" ou "O quinto elemento", com pessoas comuns que se aglomeram em ruas perigosas embaixo, enquanto o rico passeia em um nível mais alto, no ar".
Publicamos aqui um trecho do novo livro do filósofo esloveno Slavoj Zizek, "Dalla tragedia alla farsa. Ideologia della crisi e superamento del capitalismo" [Da tragédia à farsa. Ideologia da crise e superação do capitalismo], publicado na Itália pela editora Ponte alle Grazie. O texto foi publicado no jornal La Repubblica, 25-03-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.

Doze anos antes do 11 de setembro, no dia 09 de novembro de 1989, caiu o Muro de Berlim. Esse evento parece ter anunciado o início dos "felizes anos 90", a utopia de Francis Fukuyama do "fim da história", a fé de que a democracia liberal venceria em linha de princípio, que o advento de uma comunidade liberal global estaria esperando logo depois da esquina, e que o obstáculo a esse feliz fim hollywoodiano seria meramente empírico e contingente (bolsões locais de resistência, cujos líderes ainda não teriam compreendido que o seu tempo havia acabado). O 11 de setembro, ao invés, simbolizou o fim do período clintoniano e iniciou uma era em que novos muros parecem surgir em todos os lugares: entre Israel e a Cisjordânia, ao longo da fronteira mexicana, mas também dentro dos próprios Estados-nação.
Em um artigo da Newsweek, Emily Flynn Vencat e Ginanne Brownell se referem a como hoje "o fenômeno do 'members-only' [apenas para membros] está se expandindo em um inteiro estilo de vida, incluindo tudo, desde as coalizões bancárias privadas até as clínicas de saúde apenas para convidados (...), aqueles que tem dinheiro estão crescentemente fechando toda a sua vida atrás de portas fechadas. Em vez de participar de grandes eventos midiáticos, eles organizam shows, desfiles de moda e exibições de arte em suas próprias casas. Vão fazer compras fora de horário e controlam rigorosamente a classe e a renda dos seus vizinhos (e potenciais amigos)".
Uma nova classe global está assim surgindo, "com, digamos, um passaporte indiano, um castelo na Escócia, um 'pied-à-terre' em Manhattan e uma ilha caribenha privada". O paradoxo é que os membros dessa classe global "jantam privadamente, fazem compras privadamente, veem arte privadamente, tudo é privado, privado, privado". Estão criando um ambiente vital próprio para resolver seu dilema hermenêutico angustiante. Como afirma Todd Millay: as famílias ricas não podem simplesmente "convidar pessoas e esperar que elas entendam o que é ter 300 milhões de dólares".
Então, quais são os seus contatos com o mundo externo? São de dois tipos: negócios e beneficência (proteção ao meio ambiente, luta contra as doenças, mecenatismo etc.). Esses cidadãos globais vivem a sua vida acima de tudo na natureza incontaminada – fazendo trekking na Patagônia ou nadando nas águas transparentes das suas ilhas privadas. Não podemos deixar de notar que uma das características de fundo da atitude desses ultrarricos que vivem nas suas torres de marfim é o medo: medo da vida social externa em si. A maior prioridade dos "ultrahigh-net-worth individuals" é, portanto, minimizar os riscos de segurança – doenças, exposição às ameaças de crimes violentos e assim por diante.
Na China contemporânea, o novo rico construiu para si comunidades isoladas modeladas à imagem idealizada das "típicas" cidades ocidentais. Perto de Xangai, por exemplo, existe uma réplica "real" de uma pequena cidadezinha inglesa, incluindo uma rua principal com um pub, uma igreja anglicana, um supermercado Sainsbury etc.: toda a área está isolada daquilo que a circunda por uma cúpula invisível, mas não menos real.
Não existe mais uma hierarquia entre grupos sociais que vivem na mesma nação, aqueles que residem nesta cidade vivem em um universo no qual, dentro do seu imaginário ideológico, o mundo ao redor de "classe inferior" simplesmente não existe. Esses "cidadãos globais" que vivem em áreas isoladas não representam talvez o verdadeiro polo oposto daqueles que vivem nas favelas e das outras "manchas brancas" da esfera pública? Com efeito, eles representam as duas faces da mesma moeda, os dois extremos da nova divisão de classe.
A cidade que melhor encarna essa divisão é São Paulo, no Brasil de Lula, que hospeda 250 heliportos na área do centro da sua cidade. Para se isolar do perigo de se misturar com as pessoas comuns, o rico de São Paulo prefere usar os helicópteros, pois então, olhando o horizonte da cidade, sente-se verdadeiramente como se se encontrasse em uma megalópole futurista do gênero descrito em filmes como "Blade Runner" ou "O quinto elemento", com pessoas comuns que se aglomeram em ruas perigosas embaixo, enquanto o rico passeia em um nível mais alto, no ar.
Parece assim que a utopia dos anos 90 de Fukuyama deveria morrer duas vezes, a partir do momento em que a queda da utopia política liberal-democrática do 11 de setembro não atingiu a utopia econômica do mercado capitalista global. Se o colapso financeiro de 2008 tem um significado histórico, então, é como sinal do fim da face econômica do sonho de Fukuyama. O que nos reporta à paráfrase marxiana de Hegel: é preciso lembrar que, na sua introdução a uma nova edição do "18 Brumário" nos anos 60, Herbert Marcuse acrescentou um novo enrijecimento: às vezes, a repetição à guisa de farsa pode ser mais terrificante do que a tragédia original.
Em um famoso debate na Universidade de Salamanca em 1936, Miguel de Unamuno lançou uma flechada aos franquistas: "Venceréis, pero no convenceréis" (Vencereis, mas não convencereis). Estaria aqui tudo o que a esquerda pode dizer hoje ao capitalismo global triunfante? A esquerda está predestinada a continuar desempenhando o papel daqueles que, ao contrário, convencem mas no entanto continuam perdendo (e são particularmente convincentes ao explicar retroativamente as razões da sua própria falência)?
A nossa tarefa é descobrir como dar um passo adiante. A nossa undécima tese deveria ser: nas nossas sociedades, a esquerda crítica só conseguiu até agora desonrar aqueles que estão no poder, enquanto o ponto real é castrá-los...
Mas como podemos conseguir isso? É necessário aprender com os fracassos da política da esquerda no século XX. A tarefa não é praticar a castração no ápice de um confronto direto, mas sim minar aqueles que estão no poder com um trabalho ideológico-crítico paciente, de modo que, mesmo que ainda estejam no poder, deem-se conta de repente que os poderosos encontram-se novamente falando com vozes inaturalmente finas.
Nos anos 60, Lacan chamou o jornal da sua escola, que foi publicado de maneira irregular por um breve período, de Scilicet. A mensagem não era o significado hoje predominante da palavra ("isto é", "ou seja", "quer dizer"), mas literalmente "é permitido saber". (Saber o quê? O que a Escola Freudiana de Paris pensa sobre o inconsciente...). Hoje, a nossa mensagem deveria ser a mesma: é permitido saber e comprometer-se plenamente no comunismo, agir novamente em plena fidelidade à ideia comunista. A permissividade liberal é da ordem do "videlicet" – é permitido ver –, mas o fascínio pela obscenidade que nos foi permitido observar nos impede de saber o que é que vemos.
Moral da história: o tempo da chantagem moralista liberal-democrática acabou. Não devemos mais continuar justificando-nos. Enquanto seria melhor para eles começar a fazer isso logo.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Boletim Notícias da Terra e da Água ed 05 (CPT Assessoria de Comunicação)


Acampamentos denunciam situação de atingidos por barragens em todo Brasil
Para lembrar o Dia Internacional de luta contra as barragens, comemorado em 14 de março, vários acampamentos foram levantados por todo o Brasil nesta semana. O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) denuncia o descaso do governo com a população atingida pela construção de hidrelétricas. As ações ocorrem nos estados da Amazônia, Bahia, Minas Gerais, Santa Catarina e Tocantins, contemplando todas as regiões brasileiras. Na Região Norte, os manifestantes querem o fim do projeto de Belo Monte, que desabrigará 30 mil pessoas em Altamira (PA) e afetará centenas de povos indígenas e ribeirinhos que vivem no entorno do Rio Xingu. Já na Região Sul, os manifestantes cobram do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) o reassentamento de famílias desabrigadas. Eles também se posicionam contra a construção das barragens de Itapiranga, Garibaldi e Paiquerê e querem a recuperação das comunidades e municípios atingidos pelas sete barragens do Rio Uruguai. A suspensão imediata da transposição do Rio São Francisco também é reivindicada por todos os manifestantes.(Fonte: Brasil de Fato)

No sul, INCRA cadastra atingidos por barragens que ainda não foram reassentados
O Movimento dos Atingidos Por Barragens (MAB) montou, dia 16/03, dois acampamentos em Santa Catarina, como parte da jornada nacional do 14 de março, dia internacional de luta contra as barragens. Os acampamentos acontecem nos municípios de Capão Alto e em Águas do Chapecó, na comunidade do Saltinho. Um dos principais pontos de reivindicações dos atingidos da bacia do Rio Uruguai é a questão da luta pela terra já que cerca de 7 em cada 10 atingidos não recebem nenhum tipo de direito das empresas construtoras das barragens, quando são expulsos de suas terras. Por isso, o Instituto Nacional de Colonização da Reforma Agrária (INCRA) dos estados do RS e SC fez cadastro de todas as famílias que estão nos acampamentos e ainda não foram reassentadas. (Fonte: MAB)

Atingidos por barragens ocupam sede da CHESF em Sobradinho
Na manhã do dia 17, cerca de 800 representantes de comunidades atingidas por barragens ocuparam o escritório da Companhia Hidroelétrica do São Francisco - CHESF, em Sobradinho (BA). Eles reivindicaram a paralisação imediata dos projetos de construção das barragens de Riacho Seco e Pedra Branca, que ameaçam cerca de 20 mil pessoas, e a suspensão do projeto de Transposição do Rio São Francisco. Além disso, exigem da CHESF o pagamento das dívidas com os atingidos pelas barragens de Sobradinho e Itaparica, construídas nas décadas de 1970 e 1980. Após a manifestação, este órgão assumiu o compromisso de receber uma comissão do MAB em audiência no dia 24/3, em Recife, sede da companhia.(Fonte: MAB)

109 famílias posseiras são despejadas em Barra do Corda
Na manhã do dia 08/03/10, foram despejadas 109 famílias posseiras da comunidade Campo São Francisco no município de Barra do Corda – MA, em cumprimento à Ação de Manutenção de Posse a favor de Francisco Pacheco e família. Na ação foram usados tratores para destruir as casas e roças dos trabalhadores, que perderam toda a produção deste ano. O juiz da 2ª Vara da Comarca de Barra do Corda, Dr. João Francisco Gonçalves de Melo, desconsiderou a vistoria realizada pelo ITERMA (Instituto de Terras do Maranhão) que detectou que a área 700 ha. é terra devoluta e que em relação à mesma foi realizado um processo de arrecadação sumária e enviada para o Cartório daquela Comarca para os devidos registros. (Fonte: CPT – Grajaú)

Articulação no Semi-Árido Brasileiro realiza encontro nacional
Este mês, a Articulação no Semi-árido Brasileiro (ASA), completa dez anos, e de 22 a 26 acontece o ENCONASA (Encontro Nacional da ASA), em Juazeiro, Bahia. A ASA traz para o cenário nordestino a idéia de que é possível “conviver com o clima semi-árido”. Uma articulação de aproximadamente setecentas entidades, se propôs pôr em prática uma série de tecnologias apropriadas à região, acompanhadas por um trabalho educacional e que desenvolvem a lógica de convivência com a região e não de combate à seca. A ASA tem dois programas básicos que vão à raiz do problema fundamental dessas pessoas, isto é, a fome e a sede. O programa P1MC (Projeto um milhão de cisternas) e P1+2 (Projeto uma terra e duas águas) tem por foco as tecnologias para captação de água da chuva, de forma a garantir segurança alimentar e hídrica para essas populações. (Fonte: CPT Bahia)

Entidades do sul da Bahia se solidarizam com a luta dos Tupinambás
Diversas entidades da sociedade civil organizada da região sul da Bahia visitaram no dia16, a comunidade da Serra do Padeiro do Povo Tupinambá de Olivença, no município de Buerarema. A visita acontece dois dias depois da visita de lideranças dos trabalhadores rurais sem terra, no dia 14. As duas visitas tiveram como objetivo prestar solidariedade e apoio à luta do povo Tupinambá pela demarcação do seu território e, sobretudo apoio e solidariedade aos familiares e à comunidade do cacique Rosivaldo Ferreira (Babau), preso de maneira irregular no último dia 10, quando teve a porta de sua casa arrombada por volta das 2hrs da manhã. (Fonte: CPT Bahia)

Camponeses tem audiência com Ouvidor Agrário Nacional em Maceió
Na manhã do dia 17, 60 agricultores, com o apoio da Comissão Pastoral da Terra em Alagoas foram até a Vara Agrária para uma audiência especial com o Ouvidor Agrário Nacional, Gercino Filho. O encontro serviu para relatar todas as irregularidades na Fazenda Boa Esperança em Major Izidoro, cujo proprietário é o Deputado Federal, Benedito de Lira (PP/AL), e as intimidações que as 28 famílias estão enfrentando. A propriedade deve ao Banco do Nordeste, é improdutiva e ainda tem crime ambiental. Após muito desgaste e negociação, em uma nova audiência no dia 19 foi acertado que os agricultores voltassem para a Fazenda Boa Esperança, mas no dia 10 de abril serão transferidas para a Fazenda São Félix, também localizada no município de Major Izidoro. (Fonte: CPT AL)

Camponeses ocupam terras de Usina falida em Alagoas
Em uma ação conjunta entre a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Movimento de Libertação dos Sem Terra (MLST) de Alagoas Neste fim de semana, 13 e 14 de março cerca de 100 famílias camponesas ocuparam as terras da antiga Usina Bititinga, localizada no município de Messias, que está falida desde 1994. O imóvel rural foi penhorado na Caixa Econômica, possui muitas dívidas e durante vários anos encontra-se em estado de abandono, coberto por pasto e cana de açúcar. A ocupação não tem data para terminar e os agricultores já começaram a trabalhar na terra, plantando milho e feijão. (Fonte: CPT AL)

XXII Assembléia Nacional da CPT é realizada em Goiás
Entre os dias 18 e 19 de março se reuniram em Hidrolândia representantes de todos os 21 regionais para realizar a XXII Assembléia Nacional da CPT cujo lema foi “Os governantes dominam as nações e os grandes as tiranizam”. Com o tema “A CPT frente ao Estado”, cada regional apresentou sua realidade diante das diversas instâncias do Estado, seguida de uma reflexão sobre o Estado e sua relação com a Sociedade Civil.. Durante as apresentações foram relatadas situações gritantes em todas as regiões de como os trabalhadores do campo são tratados. Constatou-se que a maior parte das autoridades municipais e estaduais e federais, do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, são subservientes aos interesses do grande capital, apoiando a expansão do agronegócio, das hidrelétricas, da mineração e as transposições de águas. O Governo Federal, através do PAC, promove e financia mega projetos em favor de grandes empresas, que sacrificam muitas comunidades e violentam o meio ambiente.

Reunião do Conselho Nacional da CPT
Nos três dias anteriores, de 15 a 17, ocorreu a reunião do Conselho Nacional, composto pela coordenação nacional e coordenadores regionais, a fim de fazer os últimos encaminhamentos em relação ao 3º Congresso Nacional da CPT e concluir o processo de avaliação interna, iniciado em 2009.

terça-feira, 23 de março de 2010

Francisco de Oliveira: Classe trabalhadora perde força com a centralização de capitais

De acordo com o sociólogo Francisco de Oliveira, a reorganização do capitalismo brasileiro gera centralização de capitais e beneficia apenas grandes grupos econômicos: “A justificativa é de que é preciso tornar as empresas competitivas internacionalmente”, mas a centralização de capitais “significa sempre um menor poder da classe trabalhadora. Portanto, isso desbalanceia novamente para o lado do capital o equilíbrio de forças na sociedade”. A opinião é do sociólogo Francisco de Oliveira e foi expressa na entrevista que segue, concedida, por telefone, à IHU On-Line.
Segundo ele, a centralização do capital, processo que está se originando com a reorganização do capital brasileiro, é uma tendência mundial e reflete diretamente na atuação do movimento de trabalhadores e na política. Tal processo, assegura, “aumenta muito o poder de grupos de vários setores de mineração, petroquímica, construção civil, telefonia. Esse processo está se constituindo em torno de grupos como Andrade Gutierrez, Odebrecht, Camargo Corrêa”. Ele menciona ainda que estas são organizações de difíceis fiscalização e controle, “por isso atacam impunemente o meio ambiente, e nem o governo tem força para conter-lhes os exageros”.
Experiente em analisar o cenário social brasileiro, Francisco de Oliveira ressalta que está se configurando, a partir da reorganização do capitalismo brasileiro, algo jamais visto. “O Brasil está se encaminhando para um modelo muito estranho, crítico, para o qual a experiência internacional é fraca”. E reitera: “Estamos formando uma sociedade muito desigual, com um vazio no meio (...), estão se formando setores muito ricos e um largo setor muito pobre, que está tendo acesso a consumo, Casas Bahia, telefone celular. O modelo é inédito, mas não sabemos no que vai dar”.
Francisco de Oliveira formou-se em Ciências Sociais na Faculdade de Filosofia da Universidade do Recife, atual Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. É professor aposentado do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo – USP.

IHU On-Line - O capitalismo brasileiro está sendo reorganizado? Que aspectos demonstram isso?
Francisco de Oliveira Está passando por uma forte reorganização. Ele está passando por um processo que Marx chamava de centralização dos capitais, um conceito que quer dizer que o mesmo grupo econômico controla o maior número de capitais. Isso se reflete, na prática, nesse processo de fusões entre empresas. Essa é uma característica dos capitalismos muito desenvolvidos, e o Brasil está entrando nesse modelo.

IHU On-Line – Qual é o papel das estatais e dos fundos de pensão nesse processo?
Francisco de Oliveira
Muito forte. O BNDES, que é um banco estatal, está presente em todas essas fusões e centralizações de capitais. Os fundos de pensão são os principais promotores dos tentáculos desses processos. Veja que para fundir a Perdigão com a Sadia, o BNDES entrou para garantir a fusão. A fusão da AmBev já tinha ocorrido antes, de modo que não foi no governo Lula. Todos os novos processos de reforço do capital têm sido fortemente patrocinados por fundos públicos, incluindo ai os fundos de pensão.

IHU On-Line – Como avalia a postura do BNDES nessa iniciativa? Quais as implicações desses financiamentos para a economia e para a sociedade brasileira?
Francisco de OliveiraA justificativa é que é preciso tornar as empresas competitivas nternacionalmente. A economia brasileira cresceu muito do ponto de vista da projeção internacional e as empresas brasileiras são realmente nanicas. Para se meter em briga de cachorro grande não adianta ser luluzinha, tem de ser buldogue.
Em geral, a centralização de capitais, que ocorre em economias muito desenvolvidas, significa sempre um menor poder da classe trabalhadora. Portanto, isso desbalanceia novamente para o lado do capital o equilíbrio de forças na sociedade. Não o vejo com bons olhos, principalmente pela minha orientação socialista, mas esse é um processo que ocorre em todo o sistema capitalista.
Essa é uma tendência mundial. Todas as empresas internacionais que estão no país são produto de fortíssima centralização de capitais em seus respectivos países. Então, estamos seguindo uma tendência, com a diferença de que o Brasil e o governo brasileiro resolveram apostar nisso como sendo um elemento positivo para a presença das empresas brasileiras no comércio internacional.

IHU On-Line – O senhor propõe que o governo radicalize suas políticas de investimentos, criando cinco Embraers por ano, em diversos setores, como uma maneira de defender a maior participação do Estado na economia. De que forma está percebendo a atuação do Estado na condução da política econômica?
Francisco de Oliveira Para o sistema capitalista, o Estado está correto. O paradoxo é que, ou o Estado se arma de uma musculatura poderosa ou não se mete, porque a briga em jogo não é para nanicos. O Brasil quer desempenhar um papel importante no cenário internacional: quer apoiar o Irã, Cuba, desestimular agressões. Sem musculatura, isso não se faz. Quer dizer, se grita e fica por isso mesmo. Sem poder de retaliação não dá em nada. Lamentavelmente, para nós socialistas, pelo menos para mim, é uma tendência mundial, e o Brasil está fazendo a lição de casa.

IHU On-Line – Quais os prós e contras do Estado enquanto financiador do capital privado? Esse processo beneficia quem?
Francisco de Oliveira Beneficia os grupos que são proprietários das empresas e círculos de empresas em torno delas. Depois da fusão da Sadia com a Perdigão, o que sobrou? Quem vai se meter a besta no ramo de carnes e frangos? Então, esse processo beneficia diretamente essas empresas. Aumenta o poder delas na competição interna e, possivelmente, externa, se bem que na competição externa ainda falta muito. É o benefício direto, e isso significou, sempre, no sistema capitalista, uma queda do poder real da força de trabalho, isto é, a classe trabalhadora passa a se enfrentar com coalizões de interesses do capital, que são amplíssimas e têm a capacidade de retalhar em qualquer setor. Veja os grupos que estão metidos em petroquímicas, em telefonia, em construção pesada.
O movimento de trabalhadores, cuja bandeira era a dos tempos de Marx, ou seja, trabalhadores unidos, está fragilizado. No sistema capitalista, a união que se opera é a das empresas, e não dos trabalhadores. Isso socialmente não é bom, nem politicamente. Os reflexos políticos logo aparecerão. Na disputa presidencial de 1989, tinha pelo menos quatro candidatos que eram respeitáveis, provaram que não tinham forças nas urnas, mas havia um velho Ulisses Guimarães, Mario Covas, Fernando Collor, o Lula e até o Paulo Maluff. Agora, quem são os candidatos? São dois. Isso mostra que essa concentração e centralização de poder econômico acaba se refletindo na política.

IHU On-Line – E como atuam os movimentos sociais diante dessa reorganização?
Francisco de Oliveira Eles se enfraquecem. Havia movimentos sociais para atuar em processos específicos de trabalho. Esses movimentos rapidamente se enfraquecem porque passam a enfrentar-se com um dversário cujas proporções estão fora do alcance das organizações dos trabalhadores. O movimento social em geral perde com essa centralização de capitais. O ganho político é nulo, e o social é negativo.

IHU On-Line – A centralização de capitais vai na contramão da crise ecológica? Que papel o PAC desempenha nesse novo processo?
Francisco de Oliveira Provavelmente, porque aumenta muito o poder de grupos e capitais de vários setores de mineração, petroquímica, construção civil, telefonia. Esse processo está se constituindo em torno de grupos como Andrade Gutierrez, Odebrecht, Camargo Corrêa. São grupos poderosíssimos com capacidade de desempregar em vários setores se houver resistência de trabalhadores. Além do mais, são organizações de difíceis fiscalização e controle, por isso atacam impunemente o meio ambiente, e nem o governo tem força para conter-lhes os exageros. Todos perdem, menos os grupos que fazem essas operações de centralização dos capitais. Mesmo o governo perde porque passa a enfrentar-se com empresas que são gigantescas. Nós já temos o Banco do Brasil e a Petrobras, que são estatais, mas nem o Estado pode se meter com elas. Elas são tão gigantescas, mexem com tantos interesses, que ninguém pode se meter a fiscalizá-las. Acrescentam-se mais aí todas essas que estão em processo de fusões. Esse processo é promissor do ponto de vista do capital e é sombrio do ponto de vista dos capitais.
O PAC só será reforçado, e a escala das empresas aumentará. A maior centralização de capitais e a formação de grandes grupos econômicos muitos fortes reforçam a presença dessas empresas no PAC e vão dar ao programa maiores condições de realizações. O Lula está se revelando um mestre no jogo de cartas.

IHU On-Line – O setor financeiro privado também tem esse poder na centralização de capitais?
Francisco de Oliveira A atuação do setor financeiro privado é secundária. Esse setor vai aproveitar porque se trata de um movimento que vai ampliar a escala das empresas. Mas o setor financeiro privado não tem cursos para bancar essa centralização. Quem termina bancando é o setor público: o Estado, através de seus bancos, o Banco do Brasil e o BNDES, e através de incentivos fiscais, de isenção fiscal. A hegemonia é do setor financeiro estatal. É uma política deliberada, e o BNDES é o grande agente dessa centralização.

IHU On-Line – Em que consistiria uma reforma do sistema financeiro estatal na atual conjuntura?
Francisco de Oliveira É muito difícil dizer em poucas palavras o que consistiria uma reforma do sistema financeiro estatal. Seria desnecessário desmontar simultaneamente os monopólios públicos e privados, porque, se desmontar só os monopólios públicos, ficam os privados reforçados. Se desmontam o Banco do Brasil, se fortalecem Itaú/Unibanco, Santander/Real, Bradesco. Então, uma reforma do sistema financeiro teria que ser mais ampla para incluir o sistema privado quanto o público. Mas em que precisamente é difícil dizer.

IHU On-Line - O senhor disse recentemente em uma entrevista ao Brasil de Fato que dizer que estatização é programa de esquerda é não ter entendido nada do capitalismo contemporâneo. O que caracterizaria um programa de esquerda hoje?
Francisco de Oliveira Um programa de esquerda hoje é o de sempre. A divisa da esquerda na famosa Revolução Francesa: o ponto da esquerda é a igualdade. Essa continua sendo a pedra angular de qualquer política de esquerda. Concretamente, no Brasil, significa reduzir e até eliminar onde for possível a desigualdade, que é, sobretudo, de base econômica. Nós estamos indo por caminhos no sentido de anular a desigualdade étnica, racial. É uma iniciativa louvável, mas não resolve o problema porque a desigualdade é fundamentalmente de natureza econômica. E é isso que precisamos atacar. Não há programas suficientemente no Brasil para isso. O Bolsa Família é o único programa que existe de redução das desigualdades e é pálido frente ao dinheiro que o governo gasta pagando o serviço da dívida interna. Então, o programa continua sendo o que a Revolução Francesa anunciou: atacar por todos os lados o tema da igualdade.

IHU On-Line – Com a crescente centralização do capital, o senhor ainda tem esperança?
Francisco de Oliveira (Risos). Como eu sou daltônico, não vejo verde; só vejo vermelho.
IHU On-Line – Que Brasil está se configurando a partir dessa reorganização do capitalismo brasileiro?
Francisco de Oliveira Está se configurando uma coisa muito estranha. Não é algo que já vimos. Há algum tempo, pensava-se que o Brasil caminhava para uma sociedade do tipo norte-americana, com uma grande classe média. O Brasil está se encaminhando para um modelo muito estranho, crítico, para o qual a experiência internacional é fraca. Estamos com uma base muito ampla de pobres, que constituem hoje a base social do fenômeno chamado lulismo e, por fim, temos uma classe constituída pelo processo de centralização e concentração de capitais, com empresas formidáveis, que o Brasil nunca conheceu. Estamos formando uma sociedade muito desigual, com um vazio no meio porque o crescimento da classe média que a imprensa anuncia é falso. Isso é crescimento de classe do ponto de vista de estratificação de consumidores, não é classe
média do ponto de vista da sociologia. Estão se formando setores muito ricos e um largo setor muito pobre, que está tendo acesso a consumo, Casas Bahia, telefone celular. O modelo é inédito, mas não sabemos no que vai dar.

IHU On-Line – Liberação de crédito nem sempre significa desenvolvimento social?
Francisco de Oliveira Para o capitalismo, significa, sim. Capitalismo é crédito. Ele pode piorar o âmbito social porque as famílias passam a viver num ciclo vicioso de endividamento. Mas, do ponto de vista econômico, não há do que se queixar.

IHU On-Line – Dependendo do resultado das eleições, podemos ter uma mudança na condução do Estado?
Francisco de Oliveira Não. Haverá, certamente, formas mais personalizadas de condução dos negócios do Estado, alguma ou outra prioridade, que deve ser atribuída à preferência de um dos dois candidatos principais. Mas mudança de rota num sentido forte e mudanças do fundamento da política econômica de moeda, crédito, câmbio, isso não vai haver. Talvez a dona Dilma, como é mulher, coloque um lacinho de fita na cabeça do PIB; e o Serra, como é mais carrancudo e mais feio, coloca uma gravata borboleta, que é o símbolo de mau gosto. Mas, mais do que isso, não vai haver nada.

IHU On-Line – A candidatura de Marina representa hoje o que a candidatura de Lula representou há oito anos, no sentido de ser uma esperança para o país?
Francisco de Oliveira Não. De jeito nenhum. Infelizmente, Marina Silva, que mostrou ser uma senadora muito positiva, uma novidade no senado brasileiro, aderiu ao ecocapitalismo e não tem muita coisa a prometer. Ela convidou para vice-presidente o presidente da Natura, Guilherme Leal. Isso é ecocapitalismo, ou seja, faz de conta que preserva a natureza, faz de conta que é verde. Quer dizer, quando ela sai candidata e escolhe para vice o presidente de uma empresa que explora os recursos da Amazônia, que é tida como exploradora de recursos indígenas, de trabalho infantil, aí a perspectiva é ruim.

Blog da reforma agrária


Estreou nesta quinta-feira, dia18, o blog da rede de comunicadores em apoio à reforma agrária e contra a criminalização dos movimentos sociais. Está foi uma das decisões da reunião de montagem da rede, que ocorreu na semana passada na sede do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo e que teve a presença de cerca de 100 pessoas, entre jornalistas, radialistas, blogueiros, estudantes e radiodifusores comunitários.
*O endereço é http://www.reformaagraria.blog.br/ *

Um dos objetivos editoriais do blog é acompanhar os trabalhos da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), instalada no final do ano passado por imposição da bancada ruralista que visa criminalizar os que lutam por terra no país. A nova página também servirá para divulgar experiências bem sucedidas de reforma agrária, de assentamentos rurais e de agricultura familiar, que a mídia privada omite. Ela terá sessões fixas, como o raio-x do latifúndio, impactos do agronegócio, quem apóia a reforma agrária, entre outras.
O blog pretende ser um ponto de referência para outros sítios, blogs e publicações que tratam deste tema. Ele é aberto à colaboração de todos os que entendem a urgência da reforma agrária e que não aceitam a criminalização da luta pela terra promovida pelos latifundiários do campo e da mídia. Para aderir à rede de comunicadores basta acessar a página e fazer o cadastro. Contribua com textos, fotos, vídeos.
Os responsáveis pelo blog são os signatários do manifesto de criação da rede. Reproduzo o manifesto abaixo:

Está em curso uma ofensiva conservadora no Brasil contra a reforma agrária, e contra qualquer movimento que combata a desigualdade e a concentração de terra e renda. E você não precisa concordar com tudo que o MST faz para compreender o que está em jogo.
Uma campanha orquestrada foi iniciada por setores da chamada “grande imprensa brasileira” – associados a interesses de latifundiários, grileiros - e parcelas do Poder Judiciário. E chegou rapidamente ao Congresso Nacional, onde uma CPMI foi aberta com o objetivo de constranger aqueles que lutam pela reforma agrária.
A imagem de um trator a derrubar laranjais no interior paulista, numa fazenda grilada, roubada da União, correu o país no fim do ano passado, numa ofensiva organizada. Agricultores miseráveis foram presos, humilhados. Seriam os responsáveis pelo "grave atentado". A polícia trabalhou rápido, produzindo um espetáculo que foi parar nas telas da TV e nas páginas dos jornais. O recado parece ser: quem defende reforma agrária é "bandido", é "marginal". Exemplo claro de “criminalização” dos movimentos sociais.
Quem comanda essa campanha tem dois objetivos: impedir que o governo federal estabeleça novos parâmetros para a reforma agrária (depois de três décadas, o governo planeja rever os “índices de produtividade” que ajudam a determinar quando uma fazenda pode ser desapropriada); e “provar” que os que derrubaram pés de laranja são responsáveis pela “violência no campo”.
Trata-se de grave distorção.
Comparando, seria como se, na África do Sul do Apartheid, um manifestante negro atirasse uma pedra contra a vitrine de uma loja onde só brancos podiam entrar. A mídia sul-africana iniciaria então uma campanha para provar que a fonte de toda a violência não era o regime racista, mas o pobre manifestante que atirou a pedra.
No Brasil, é nesse pé que estamos: a violência no campo não é resultado de injustiças históricas que fortaleceram o latifúndio, mas é causada por quem luta para reduzir essas injustiças. Não faz o menor sentido...
A violência no campo tem um nome: latifúndio. Mas isso você dificilmente vai ver na TV. A violência e a impunidade no campo podem ser traduzidas em números: mais de 1500 agricultores foram assassinados nos últimos 25 anos. Detalhe: levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT) mostra que dois terços dos homicídios no campo nem chegam a ser investigados. Mandantes (normalmente grandes fazendeiros) e seus pistoleiros permanecem impunes.
Uma coisa é certa: a reforma agrária interessa ao Brasil. Interessa a todo o povo brasileiro, aos movimentos sociais do campo, aos trabalhadores rurais e ao MST. A reforma agrária interessa também aos que se envergonham com os acampamentos de lona na beira das estradas brasileiras: ali, vive gente expulsa da terra, sem um canto para plantar - nesse país imenso e rico, mas ainda dominado pelo latifúndio.
A reforma agrária interessa, ainda, a quem percebe que a violência urbana se explica – em parte – pelo deslocamento desorganizado de populações que são expulsas da terra e obrigadas a viver em condições medievais, nas periferias das grandes cidades.
Por isso, repetimos: independente de concordarmos ou não com determinadas ações daqueles que vivem anos e anos embaixo da lona preta na beira de estradas, estamos em um momento decisivo e precisamos defender a reforma agrária.
Se você é um democrata, talvez já tenha percebido que os ataques coordenados contra o MST fazem parte de uma ofensiva maior contra qualquer entidade ou cidadão que lutem por democracia e por um Brasil mais justo.
Venha refletir com a gente:
- por que tanto ódio contra quem pede, simplesmente, que a terra seja dividida?
- como reagir a essa campanha infame no Congresso e na mídia?
- como travar a batalha da comunicação, para defender a reforma agrária no Brasil?
É o convite que fazemos a você.

Assinam:
- Alcimir do Carmo.
- Altamiro Borges.
- Ana Fagundes.
- André de Oliveira.
- André Freire.
- Antonio Biondi.
- Antonio Martins.
- Bia Barbosa.
- Breno Altman.
- Conceição Lemes.
- Cristina Charão.
- Cristovão Feil.
- Danilo Cerqueira César.
- Dênis de Moraes.
- Emiliano José.
- Emir Sader.
- Flávio Aguiar.
- Gilberto Maringoni.
- Giuseppe Cocco.
- Hamilton Octavio de Souza.
- Henrique Cortez.
- Igor Fuser.
- Jerry Alexandre de Oliveira.
- Joaquim Palhares.
- João Brant.
- João Franzin.
- Jonas Valente.
- Jorge Pereira Filho.
- José Arbex Jr.
- José Augusto Camargo.
- José Carlos Torves.
- José Reinaldo de Carvalho.
- José Roberto Mello.
- Ladislau Dowbor.
- Laurindo Lalo Leal Filho.
- Leonardo Sakamoto.
- Lilian Parise.
- Lúcia Rodrigues.
- Luiz Carlos Azenha.
- Márcia Nestardo.
- Marcia Quintanilha.
- Maria Luisa Franco Busse.
- Mario Augusto Jacobskind.
- Miriyám Hess.
- Nilza Iraci.
- Otávio Nagoya.
- Paulo Lima.
- Paulo Zocchi.
- Pedro Pomar.
- Rachel Moreno.
- Raul Pont.
- Renata Mielli.
- Renato Rovai.
- Rita Casaro.
- Rita Freire.
- Rodrigo Savazoni.
- Rodrigo Vianna.
- Rose Nogueira.
- Rubens Corvetto.
- Sandra Mariano.
- Sérgio Caldieri.
- Sérgio Gomes.
- Sérgio Murilo de Andrade.
- Soraya Misleh.
- Tatiana Merlino.
- Terezinha Vicente.
- Vânia Alves.
- Venício A. de Lima.
- Verena Glass.
- Vito Giannotti.
- Wagner Nabuco.

Luiz Werneck Vianna: ''A sociedade brasileira, hoje, é grão-burguesa''

“O que está unificando o país hoje é um projeto expansionista burguês com vocação grão-burguesa”, afirmou o sociólogo Luiz Werneck Vianna, na entrevista que segue, concedida, por telefone, à IHU On-Line. O Estado traduz este movimento, ele é “ator, mas também é objeto”, afirma Vianna. Não se trata de um “Estado patrão”, esclarece, “o que se tem aí é uma associação, uma vinculação entre política e economia, governo e empresas, governos e atores políticos e empresariais, que, juntos, no Estado e no governo, implementam essa política. As elites econômicas, por exemplo, são partícipes disso”. Os fundos de pensão também têm participação direta nesse processo, e esse é um aspecto complicado, “porque eles atestam que esse movimento não se limita às elites econômicas da indústria, do agronegócio e está envolvendo também, no mínimo, a vida sindical. Basta olhar para a composição desse governo, onde todas as classes e frações de classes se encontram representadas”, menciona.

Luiz Werneck Vianna é professor pesquisador do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro - Iuperj. Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo, autor de, entre outros, A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1997); A judicialização da política e das relações sociais no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1999); e Democracia e os três poderes no Brasil (Belo Horizonte: UFMG, 2002).

IHU On-Line - O capitalismo brasileiro está passando por uma reorganização? Quais são as principais características desse processo?

Luiz Werneck ViannaPenso que passa, sim, por uma reestruturação relevante, que já vinha acontecendo, mas que assumiu outro ritmo. Diria que isso traduz uma política no sentido de aprofundar o processo de concentração e de centralização de capitais no país. Estão aí as fusões da Oi, do Unibanco com o Itaú e outras importantes que se referem ao setor industrial. Trata-se de uma passagem para uma dimensão
superior do capitalismo.

O capitalismo no Brasil consiste, hoje, em um empreendimento extraordinariamente bem sucedido, e o governo Lula tem tido muita responsabilidade e iniciativa na realização desse projeto. Diria que, além disso, a sociedade brasileira, hoje, não é apenas uma sociedade burguesa, é uma sociedade grão-burguesa, como atesta a expansão das empresas brasileiras no exterior, não só na América Latina como na África.
O capitalismo brasileiro transcende as suas fronteiras nacionais. A sua política externa, hoje, está a serviço disso. Ela não apenas atua na defesa do território, da identidade nacional, mas diria que, sobretudo, está presente na expansão econômica do país. Isso se manifesta através de diferentes empreendimentos. Do ponto de vista cultural e universitário, essa universidade que acaba de ser criada no Mercosul é mais um indicador dessa presença ampliada da política brasileira em relação ao seu mundo exterior. Essa política traduz o fato capital de que o capitalismo brasileiro tende a se projetar para fora dos seus limites nacionais, assumindo uma vocação internacional. Denomino essa política de grão-burguesa, que está sendo referendada e apoiada por políticas de Estado. Nesse caso, as estatais têm desempenhado um papel muito importante, alavancando essa política de concentração e centralização de capitais e de lançamento do capitalismo brasileiro no mundo.

IHU On-Line - Além das estatais, qual é o papel dos fundos de pensão nesse processo? São eles os “pilares” dessa reestruturação?
Luiz Werneck Vianna Também. Na verdade, dessa pergunta podemos deduzir a resposta. Se pensarmos na questão dos fundos, é complicado, porque eles atestam que esse movimento não se limita às elites econômicas da indústria, do agronegócio e está envolvendo também, no mínimo, a vida sindical. Basta olhar para a composição desse governo, onde todas as classes e frações de classes se encontram representadas. O agronegócio é um personagem-chave desse Estado brasileiro de hoje, assim como o mundo das finanças, dos serviços, da indústria. Os sindicatos também estão presentes, principalmente as centrais sindicais. Para que não fique só nisso, movimentos sociais que dizem respeito às questões raciais e de gênero também se encontram instalados no interior desse Estado. Na verdade, isso reedita, em um plano mais largo, mais fundo, em outras circunstâncias, o que foi o Estado Novo da época Vargas. Escrevi, há um ano, um pequeno ensaio, dedicado a esse assunto, em que tentava demonstrar que o funcionamento dessa máquina estatal compósita e heteróclita só vinha funcionando a contento em razão da presença do seu grande articulador, que é o Presidente da República. Sem ele, será muito difícil preservar a harmonização de contrários que hoje caracteriza o governo.

IHU On-Line - Assiste-se a uma reconfiguração de classes ou frações de classe a partir desse fenômeno? Se sim, que classes surgem?
Luiz Werneck ViannaAinda percebo as velhas classes brasileiras em processo de diferenciação. A representação associativa e sindical delas é muito poderosa, incluindo o MST, mas, infelizmente, suas ações não têm atuado no sentido de uma vitalização do tecido político, muito afetado pela sucessão de escândalos que o tem fragilizado. A intervenção da vida associativa e sindical, ao invés de procurar o espaço da sociedade civil, tem dado preferência a agir no interior do governo.


IHU On-Line
Essa reorganização do capitalismo pode desestabilizar as forças políticas do país?
Luiz Werneck Vianna Desestabilizar, não, mas elas já tiraram muita força da política institucionalizada. Essas grandes corporações têm tido um peso muito forte e independente dos partidos, e elas estão no governo e nas câmaras do Estado. Enfim, a política é a grande derrotada nesse processo.

IHU On-Line - Como avalia o Estado enquanto investidor e financiador de grandes investimentos como as obras do PAC? O Estado deve ou não intervir na economia desta maneira?
Luiz Werneck Vianna O Estado é como a central de inteligência de todo esse processo, na medida em que é ele que orienta o movimento de expansão da ordem burguesa e de concentração e verticalização do capital, de racionalização do sistema produtivo e se empenha em otimizar todas as possibilidades de expansão internas e externas. Mas ele não está atuando acima das partes. Não se trata de um Estado patrão como na construção clássica do bonapartismo de que Marx tratou no 18 Brumário. Na verdade, o que há é uma associação, uma vinculação entre política e economia, governo e empresas, governos e atores políticos e empresariais, que, juntos, no Estado e no governo, implementam essa política.

IHU On-Line - Esse projeto é positivo ou negativo para o país pensando num projeto de nação a longo prazo? Quais as implicações sociais e econômicas da reestruturação do capitalismo?
Luiz Werneck Vianna Esse projeto é um aprofundamento da experiência burguesa brasileira, inclusive, encarando a questão social de frente. Ao mesmo tempo em que tutela os movimentos sociais, mantém a sociedade desorganizada, com políticas de clientela de massa. Por onde a política vai passar? Ela tem passado por esse “parlamento” das grandes corporações, que tem sua sede no interior do próprio governo. então, o ministro da agricultura pode perfeitamente conviver com o ministro do meio ambiente e o do desenvolvimento agrário. Cada um deles é portador de interesses determinados, mas esses conflitos são retidos no interior do governo, e apenas residualmente se manifestam no plano da sociedade. O que está unificando o país hoje é um projeto expansionista burguês com vocação grão-burguesa.
Na questão social, a incorporação social aumenta, as políticas se tornam mais abrangentes, embora sejam lastimavelmente de pouco alcance. A educação é de péssima qualidade, e não há indicadores de mudança próxima.


IHU On-Line - E o que dizer do fortalecimento do sistema financeiro nacional?
Luiz Werneck ViannaConforme se observa, o sistema financeiro está cada vez mais concentrado. O fato de o Banco do Brasil ter passado bem nessa prova de fogo que foi a crise de 2008 veio reforçar esse processo de concentração. Com a forte representação que tem o presidente do Banco Central, na política brasileira de hoje, o sistema financeiro conseguiu de fato, embora isso ainda não tenha expressão legal, a autonomia do Banco Central quanto aos decisores políticos.


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- Que Brasil está se configurando após o segundo governo Lula?
Luiz Werneck ViannaSem dúvida, pelo prisma social é uma geração perdida. A sociedade está mais organizada, educada? Definitivamente não está. Sua economia está mais vibrante, potente? Está, sem dúvida. O Estado brasileiro está forte? Está. Então, temos que fazer esse balanço. Os resultados dependem muito dos valores de quem realiza esse balanço. Eu gostaria de ver uma sociedade mais organizada, instituída, mais potente, com partidos fortes, representativos, com sindicatos autônomos, com movimentos sociais desvinculados do Estado, com um processo de discussão amplo, aberto às raízes da vida social. A minha opção seria essa. Mas o mundo gira do jeito dele.

IHU On-LineDependendo do resultado das eleições deste ano, o atual modelo econômico pode mudar?
Luiz Werneck ViannaDilma e Serra têm perfis muito parecidos. Vejo dificuldades para a preservação desse modelo, mas algo dele vai subsistir.
Tome, por exemplo, a questão da legislação social e trabalhista, onde há projetos que se antagonizam na sociedade. Todos esses conflitos latentes muito poderosos vêm sendo administrados no sentido de serem resolvidos no interior do governo. A questão toda é que quando isso não for possível, quando esses conflitos tomarem as ruas, quando cada lado procurar se impor na sociedade pela sua capacidade de pressão e intervenção, não haverá o Lula para administrá-los. Na mesma direção está a questão da reforma tributária, a questão agrária e todas as outras.