Não estamos diante da “falência da política. Ao contrário, trata-se da
persistência da política! Diante de tudo que os partidos de esquerda fazem para
fornecer munições ao velho discurso antidemocrático e moralista da elite, esses
movimentos mostram que a política está viva, apesar dos Felicianos, dos Aldos,
da tecnocracia neodesenvolvimentista e da corrupção”, avalia o cientista
político.
Confira a entrevista.
Na tentativa de
compreender as razões que levaram milhares de cidadãos brasileiros às ruas, o
sociólogo Giuseppe Cocco, que estuda o
conceito de multidão abordado pelo italiano Antônio
Negri, elenca algumas possibilidades. Na avaliação dele, o ciclo de “revoluções 2.0”, com base na
internet, “começa a ter uma duração consistente (de mais de 3 anos) e entrou no
imaginário, na linguagem de gerações de jovens que não formam mais suas
opiniões na imprensa, mas diretamente nas redes sociais”. Outro aspecto
importante é o fato de jovens brasileiros só terem conhecido “o Brasil de Lula”. E dispara: “No
Brasil, o PT e seu governo (e sua
coalizão) pensavam estar blindados pelos recentes sucessos eleitorais (a
eleição de Haddad, a reeleição quase
plebiscitária do Paes, no
Rio), por estar num ciclo econômico positivo e por ter achado que o sagrado
graal do ‘novo modelo’ econômico seria, na realidade, reeditar o velho
nacional-desenvolvimentismo, rebatizado de neodesenvolvimentismo”.
De acordo com Cocco, havia e há no Brasil “um
sem número de movimentos de protesto e resistência, em particular por causa dos
efeitos dos megaeventos, e hoje esses movimentos se juntaram, confluindo com a
multidão da nova composição do trabalho metropolitano”.
Na entrevista a
seguir, concedida à IHU On-Line por
e-mail, ele assinala que os protestos ganharam força a partir do Movimento Passe Livre porque
“a questão dos transportes e, mais em geral, do serviços é estratégica para o
trabalho metropolitano”.
E esclarece: “Os
operários fordistas lutavam por salários e horários. Os trabalhadores
imateriais têm como fábrica a metrópole e lutam pela qualidade de vida da qual
dependerá a inserção deles em um trabalho que não é mais um emprego, mas uma
‘empregabilidade’. Os operários fordistas lutavam para reduzir a parte do
horário que ia embutida como lucro nos carros que produziam; os trabalhadores
imateriais nas metrópoles desviam os slogans publicitários de uma montadora (‘Vem Pra Rua’) para ressignificar
os agenciamentos produtivos que se desenham na circulação”.
Giuseppe Cocco é graduado
em Ciência Política pela Université de Paris VIII e pela Università degli Studi
di Padova. É mestre em Ciência, Tecnologia e Sociedade pelo Conservatoire
National des Arts et Métiers e em História Social pela Université de Paris I
(Panthéon-Sorbonne). É doutor em História Social pela Université de Paris I
(Panthéon-Sorbonne). Atualmente é professor titular da Universidade Federal do
Rio de Janeiro – UFRJ e editor das revistas Global
Brasil, Lugar Comum e Multitudes. Coordena a coleção A Política no Império (Civilização
Brasileira).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Manifestações sociais massivas
descontentes com a política e a economia iniciaram no Oriente, na Espanha, em
Wall Street. E agora chegam ao Brasil. Por quê? O que estas manifestações
sociais representam?
Giuseppe Cocco – Podemos logo começar dizendo que o que
caracteriza essas manifestações é que elas não representam exatamente nada ao
passo que, por um tempo mais ou menos longo, elas expressam e constituem tudo.
O primeiro elemento é este: elas têm uma dinâmica intempestiva, fogem a
qualquer modelo de organização política (não apenas os velhos partidos ou os
sindicatos, mas também o terceiro setor, as ONGs) e afirmam uma democracia
radical articulada entre as redes e as ruas: autoconvocação e debates nas redes
sociais, participação massiva às manifestações de rua, capacidade e
determinação de enfrentar a repressão e até capacidade de construção e
autogestão de espaços urbanos como foram a Praça
Tahrir, as acampadas espanholas e as tentativas do Occupy Wall Street e, enfim,
a Praça Taksim em Istambul, na
Turquia. Para cada uma dessas ondas e dessas que chamamos de “primaveras”
houve um estopim específico, mas todas dispõem de uma mesma base social (por
mais diferenciadas que sejam as trajetórias socioeconômicas dos diferentes
países) e dos mesmos processos de subjetivação. No caso do Brasil, todo mundo
sabe que o estopim foram os protestos contra o aumento do preço das passagens
nos transportes públicos. Como foi o caso de outras marchas, a manifestação em
São Paulo foi violentamente reprimida pela Polícia Militar. Só que dessa vez a
faísca não se apagou numa “marcha da liberdade” e incendiou São Paulo e todo o
país. Mas saber que o estopim foi esse não nos permite avançar na análise.
Por que agora? É
difícil responder e talvez a característica própria desse tipo de movimento é
que ninguém sabe propor razões “objetivas” indiscutíveis. Contudo, podemos
avançar três explicações: a primeira explicação
tem a forma de um segundo “estopim” e é a quase coincidência do episódio da
repressão da marcha pelo passe livre em São Paulo com a renovação das
primaveras árabes e do 15M espanhol
nas lutas duríssimas da multidão turca na Praça
Taksim, emIstambul (não por acaso, na
segunda manifestação carioca, que já reunia 10 mil pessoas, um dos gritos era:
“acabou a mordomia, o Rio vai virar uma Turquia”); uma segunda explicação está no
fato que esse ciclo de “revoluções 2.0” começa a ter uma duração consistente
(de mais de 3 anos) e entrou no imaginário, na linguagem de gerações de jovens
que não formam mais suas opiniões na imprensa, mas diretamente nas redes
sociais; a terceira explicação é mais
consistente e a mais importante e diz respeito ao que são essas “novas
gerações” no Brasil de hoje, ou seja, essas gerações de jovens que só
conheceram o Brasil de Lula.
O que é incrível e até irônico é que o próprio PT não tenha previsto isso e
ainda hoje seja incapaz de enxergar esse dado importantíssimo.
IHU On-Line – Quais
as aproximações e diferenças entre as manifestações brasileiras e as que vêm
ocorrendo em outros países?
Giuseppe Cocco – As aproximações são mais importantes do que
as diferenças, que apenas enfatizam a qualidade específica de cada evento.
Num primeiro nível, há em comum
a articulação entre as redes e as ruas como processo de autoconvocação das
marchas e manifestações que ninguém consegue representar, sequer as organizações
que se encontraram no cerne da primeira chamada: a tentativa de “empoderar” os
rapazes do Movimento pelo Passe Livre em
São Paulo (“oficializados” pela presença no Roda
Viva e a negociação com prefeitura e estado) mostrou que eles não
controlam nem dirigem um movimento que se autorreproduz de maneira rizomática
(as manifestações aconteciam ao mesmo tempo sem respeitar qualquer tipo de
“trégua”).
Num segundo nível, há em comum o
esgotamento da representação política. No Brasil, esse fenômeno foi totalmente
subavaliado pela “esquerda” e, sobretudo, pelo PT porque
não o entenderam (e não o entendem).
Inicialmente
pensaram que fosse um problema das autocracias do Norte da África (Tunísia e Egito);
depois que fosse a incapacidade dos socialistas espanhóis (PSOE) de responder de maneira
soberana às injunções das agências internacionais de notação ou do Banco Central Europeu. Depois
pensaram que o 15M espanhol
não consegue encontrar uma nova dinâmica eleitoral ao passo que o partido de Beppe Grillo mostrou na
Itália um fenômeno eleitoral totalmente novo e desgovernado.
Em seguida,
pensaram que o Egito e
a Tunísia foram normalizados
eleitoralmente pelo islamismo conservador e aí aparece o levante turco contra o
governo islâmico moderado.
No Brasil, o PT e seu governo (e
sua coalizão) pensavam estar blindados pelos recentes sucessos eleitorais (a
eleição de Haddad, a reeleição quase
plebiscitária do Paes, no
Rio), por estar num ciclo econômico positivo e por ter achado que o sagrado
graal do “novo modelo” econômico seria, na realidade, reeditar o velho
nacional-desenvolvimentismo, rebatizado de neodesenvolvimentismo. O que a
esquerda como um todo, e o PT no
Brasil não entenderam, é que a crise da representação é geral (mesmo que ela
tenha sintomas e manifestações diferenciadas), e que os levantes da multidão no
Egito, na Tunísia, na Espanha, na Turquia e agora no Brasil são a expressão,
entre outras coisas, de uma recusa radical dessa maneira autorreferencial de
pensar por parte dos governos e dos partidos políticos.
Num terceiro nível há a
principal proximidade entre todos esses movimentos: a base social dessa
produção de subjetividade é o novo tipo de trabalho que caracteriza o
capitalismo cognitivo. As redes que protestam e se constituem nas ruas de Madri, Lisboa, Roma, Atenas, Istambul, Nova York e agora de todas
as cidades brasileiras são formadas pelo trabalho imaterial: estudantes,
universitários, jovens precários, imigrantes, pobres, índios, ou seja a
composição heterogênea do trabalho metropolitano. Não por acaso, por um lado,
uma de suas formas principais de luta foi a “acampada” ou o “occupy” e, por
outro, os levantes turco e brasileiro tiveram como estopim a defesa das formas
de vida da multidão do trabalho metropolitano: a defesa do parque contra a
especulação imobiliária (a construção de um shopping) em Istambul, e a luta contra o aumento do custo dos transportes,
no caso do Brasil.
Diante dessas
aproximações, as diferenças são bem menores, embora elas existam (e sejam até
óbvias). Podemos apreender essas diferenças do ponto de vista das condições
objetivas da cada país e do ponto de vista de como cada um desses movimentos
foi transformando (ou não) a fase destituinte em momento constituinte. Assim, o 15M espanhol se
apresenta como a experiência que mais conseguiu durar apesar de não ter
revertido as políticas econômicas. As revoluções árabes foram normalizadas
pelas vitórias eleitorais conservadoras, mas os levantes se tornam endêmicos.
Na Turquia e ainda mais no
Brasil, não sabemos – literalmente – o que vai acontecer. É no plano das
condições objetivas que encontramos a maior diferença: na Espanha e, em geral, no
mediterrâneo as revoluções são marcadas pelos processos de “desclassificação”
das classe médias. No Brasil é
exatamente o contrário: tudo isso acontece no âmbito e no momento da emergência
da “nova classe média”. Só que essa nova composição de classe é, na realidade,
a nova composição do trabalho metropolitano, lutando pelos parques ou pelos
transportes públicos: ascendendo socialmente, os pobres brasileiros se tornam o
que as classes médias europeias se tornam, descendo: a nova composição técnica
do trabalho imaterial das metrópoles.
IHU On-Line – Além
do aumento do preço das passagens, quais são os outros motivos que desencadearam
as manifestações?
Giuseppe Cocco – Podemos elencar duas respostas. A primeira é a seguinte: se
pensarmos bem, essa pergunta encontra sua resposta numa sua simples
reformulação: “por que nas cidades e metrópoles brasileiras não há mais lutas e
mais levantes pelo sem número de motivos que a justificariam?"
No Brasil,
não faltam razões! Uma vez que “pegou” é só escolher, a lista é infinita.
Vou trazer apenas
um exemplo, contando uma anedota: um dia fui assistir a um Fórum da UPP Social (que
hoje não existe mais) em duas favelinhas da Zona
Norte, bem precárias. Toda a parafernália dos governos estadual e
municipal estava mobilizada, com seus carros de função, para dar sentido à
pacificação. Os poucos moradores que falaram colocaram dois problemas
essenciais: primeiro, disseram, vivemos no meio do esgoto; segundo, os
policiais agem de maneira violenta e arbitrária.
As dezenas de
secretários e outros servidores presentes não conseguiram dizer nada sobre como
seria resolvido esse problema básico do saneamento. Saindo da favelinha, passei
por uma centena de adolescentes que ficava sem fazer nada na entrada e, no
caminho de volta ao Centro do Rio, a 5 minutos de carro, passei na frente de
uma obra gigantesca, faraônica: o Maracanã!
A pergunta de cima
encontra uma resposta bem igual a que colocava Keynes em
1919: “nem sempre as pessoas aceitam morrer em silêncio”. Havia no Rio de Janeiro e no Brasil (e continua havendo)
um sem número de movimentos de protesto e resistência, em particular por causa
dos efeitos dos megaeventos, e hoje esses movimentos se juntaram, confluindo
com a multidão da nova composição do trabalho metropolitano. No Rio, os manifestantes sempre se
juntam para dirigir invectivas pesadas ao governador Sergio Cabral e ao prefeito Eduardo Paes.
Chegamos assim à
segunda resposta: o movimento foi mesmo pelos 0,20
centavos! Só que esse “pouco” é na realidade “muito”. Por quê? Porque a
questão dos transportes e, mais em geral, dos serviços é estratégica para o
trabalho metropolitano. Os operários fordistas lutavam por salários e horários.
Os trabalhadores imateriais têm como fábrica a metrópole e lutam pela qualidade
de vida da qual dependerá a inserção deles em um trabalho que não é mais um
emprego, mas uma “empregabilidade”.
Os operários
fordistas lutavam para reduzir a parte do horário que ia embutida como lucro
nos carros que produziam; os trabalhadores imateriais nas metrópoles desviam os
slogans publicitários de uma montadora (“Vem
Pra Rua”) para ressignificar os agenciamentos produtivos que se desenham
na circulação. Os operários fordistas lutavam contra o trabalho. Os
trabalhadores imateriais lutam no terreno da produção de subjetividade. É na
circulação que a subjetividade se produz e produz valor e renda.
IHU On-Line – Os
manifestantes deixam claro que são apartidários, não querem violência e não têm
lideranças. Como interpreta esse discurso? Como pensar um novo modelo político
a partir dessas características?
Giuseppe Cocco – Com certeza, uma das dimensões
constitutivas da Revolução 2.0 é
a crise da representação e essa é uma questão central. Precisamos lembrar que a
antecipação da revolução 2.0 como
crítica radical da representação é sul-americana. O “Que se vayan todos” argentino antecipou
em 10 anos o “No nos representan” espanhol.
Só que as dimensões dessa crise são processadas pelo discurso oficial – ou
seja, partidário – de maneira invertida. E essa inversão não é por acaso.
Aliás, os últimos desdobramentos do movimento (as agressões contra os partidos
de esquerda nas manifestações do dia 20 de junho) nos mostram muito bem como
funciona essa inversão.
Os partidos
(sobretudo aqueles que estão no governo) dizem que esses movimentos são
limitados porque recusam os partidos, não são “orgânicos”, porque têm uma
“ideologia” que os recusa e, portanto, são potencialmente antidemocráticos.
Obviamente, isso é correto. Só que, a afirmação correta esconde duas belas
falsificações.
A primeira também é óbvia: os
“grupos” que rezam por uma crítica fundamentalista da representação têm pouca
consistência social e nenhuma capacidade de determinar, sequer influenciar,
movimentos desse tamanho.
A segunda falsificação é uma
consequência dessa primeira: os partidos atribuem a crise da representação a um
processo e a uma crítica que viria de fora, quando na realidade os maiores e
únicos responsáveis dessa crise são eles!
E a
responsabilidade está na indiferenciação da clivagem direita/esquerda, ou seja,
no fato de os governos mudarem e continuarem fazendo as mesmas coisas,
inclusive com a reciclagem das mesmas figuras políticas. Assim, o PSOEespanhol atribuiu ao 15M sua derrota eleitoral,
quando na realidade o 15M é
apenas a consequência do fato que os socialistas espanhóis faziam a mesma
política econômica da direita. É exatamente o que acabou acontecendo no Brasil
de Lula e, sobretudo, de Dilma. O movimento que
nasceu com a luta contra o aumento recusa as dimensões autoritárias e
arrogantes das coalizões e desses consensos que reúnem direita e esquerda na
reprodução dos interesses de sempre.
É o Haddad que devia representar
o novo e se apresenta junto ao Alckmin para
juntos dizerem a mesma coisa: que a redução da tarifa terá um custo (sic!). É a
coalizão conservadora que governa o estado e a prefeitura do Rio, e onde o PT planeja e executa remoções de
pobres, desrespeitando a própria LOM.
São as alianças espúrias com os ruralistas de um ministro de esquerda. É a
condução autoritária das megaobras e dos megaeventos. É a entrega da Comissão de Direitos Humanos da Câmara a
um fundamentalista que, exatamente no dia seguinte da grande manifestação da segunda-feira,
fez votar o projeto de Lei que define a homossexualidade como uma doença.
A esquerda e a incapacidade
A extrema esquerda
ou a esquerda radical erram quando pensam que estão “salvas” dessa situação. Os
partidos de esquerda são incapazes de entender que esse movimento se forma na
recusa – confusa, flutuante, ambígua e até perigosa – do partido, da
organização separada, da bandeira. Isso porque a recusa é geral, não faz
distinções e funciona como rejeição de qualquer plataforma ideológica preparada
e determinada por lógicas de aparelhos separados: nisso há uma percepção de que
um dos problemas da política é a construção de aparelhos que tendem – antes de
tudo – a reproduzir a si mesmos.
A agressão de um
grupo organizado ao bloco de bandeiras do PSTU,
do PSOL e do PCB na marcha da quinta
feira, 20 de junho, quebrou as ilusões de que a crise seria somente do PT e assustou todo o mundo.
Contudo, nesse episódio lamentável encontramos, mais uma vez, o funcionamento
perverso da lógica da representação. Os grupos agressores eram claramente
organizados e tinham esses objetivos tão claramente quanto o processo de
organização indica as manipulações mais podres. Todas as análises e denúncias
que imediatamente foram produzidas identificaram esses grupos (que claramente
agiam a mando de algum desenho de provocar essa situação) com a manifestação em
geral.
Sem partidos
Na realidade, o
apoio genérico dos jovens à palavra de ordem “sem
partidos!” não tem nenhuma significação linear e ainda menos “fascista”.
Paradoxalmente, a recusa dos partidos, inclusive dos “radicais” e de suas
bandeiras, é a recusa – claro, confusa e contraditória – da homologação de
direita e esquerda e uma demanda para uma “verdadeira esquerda”. Essa demanda
não é idealista e não pode ser travada com linguagens e símbolos obsoletos (as
bandeiras vermelhas, por exemplo). Para reerguer as bandeiras vermelhas, é
preciso deixá-las em casa por um bom momento! A bandeira vermelha precisa
abandonar sua dimensão ideal e transcendente (ou seja, vazia) e voltar a ser
interna (imanente) às linguagens das lutas como eles são. Nesse terreno é
possível e necessário construir outra representação e, sobretudo, reforçar a
democracia.
IHU On-Line – O
senhor publicou recentemente no Twitter que “as lutas da multidão em São Paulo
e no Rio são o melhor resultado dos governos Lula. Tão bom que ninguém no PT
foi capaz de antecipar”. Pode nos explicar essa ideia? Trata-se da falência da
política?
Giuseppe Cocco – Começando do final: não estamos diante da
“falência da política. Ao contrário, trata-se da persistência da política!
Diante de tudo que os partidos de esquerda fazem para fornecer munições ao
velho discurso antidemocrático e moralista da elite, esses movimentos mostram
que a política está viva, apesar dos Felicianos,
dos Aldos, da tecnocracia
neodesenvolvimentista e da corrupção! Ser contra o moralismo da direita não
significa achar “graça” nos comportamentos imorais da esquerda no poder. Trata-se
apenas de não cair nas armadilhas da direita, mas num esforço de conjunção
ética dos fins e dos meios.
Esse movimento,
qualquer seja seu desfecho, é o movimento da multidão do trabalho
metropolitano, o mais puro produto dos 10 anos de governo do PT. Vamos aprofundar e esclarecer
essa afirmação em dois momentos. Num primeiro momento, essa afirmação é uma
valoração positiva dos governos Lula e Dilma. Uma avaliação positiva não
porque tenham sido de “esquerda” ou socialistas, mas porque eles se deixaram atravessar
– sem querer – por ume série de linhas de mudança: políticas de acesso, cotas
de cor, políticas sociais, criação de empregos, valorização do salário mínimo,
expansão do crédito.
A esquerda radical
julgava essas políticas exatamente como agora – ironicamente nesse caso até o PT – julgam a questão das
“bandeiras”: idealmente. “Lula está
implementando outro modelo, outra sociedade, socialista?” se perguntava e
criticava. Ora, ninguém implementa modelo alternativo, mesmo quando se está no
governo. Apenas pode ter a sensibilidade de apreender as dinâmicas reais que,
na sociedade, poderão amplificar-se e produzir algo novo.
Os governos Lula e Dilma associaram o governo
da interdependência na globalização com a produção, tímida e real, de uma nova
geração de direitos e de inclusão produtiva. Estatisticamente, isso se traduziu
na mobilidade ascendente dos níveis de rendimento de mais de 50 milhões de
brasileiros e pela entrada de novas gerações nas escolas técnicas e
universidades. Lula não
quis saber de bandeiras e até declarou que ele “nunca tinha sido socialista”.
Ficou dentro da sociedade indo atrás das linguagens, dos símbolos e das
políticas que entendia.
Na virada da
década de 2010, esse processo se consolidou em dois fenômenos maiores: o
primeiro é eleitoral e tem o nome de “lulismo”, ou seja, a capacidade que Lula tem de ganhar e,
sobretudo, fazer ganhar eleições majoritárias: começando pela presidente Dilma e chegando ao
prefeito Haddad; o segundo é o regime
discursivo da emergência de uma “nova classe média”, com base nos trabalhos do
economista Marcelo Neri. Com a crise do
capitalismo global (2007-2008) e a chegada de Dilma ao
poder, o discurso da “nova classe média” foi além das preocupações do marketing
eleitoral, para tornar-se a base social de uma virada que vê, no papel do
Estado junto das grandes empresas, o alfa e o ômega de um novo modelo
desenvolvimentista (neodesenvolvimentista).
Economia
Sociologicamente,
o objetivo do neodesenvolvimentismo é transformar os pobres em “classe média”,
e para isso é preciso economicamente de um Brasil
Maior, capaz de se reindustrializar. O governo Dilma chegou a baixar os
juros e multiplicou os subsídios às indústrias produtoras de bens de consumo
duráveis, em particular de carros, e à construção civil. O que o movimento
afirmou e certificou foi a dimensão ilusória desse suposto modelo (isso não
significa que o modelo não será implementado; significa apenas que ele perdeu a
patina de consenso que o legitimava e deverá apresentar-se como cada vez mais
autoritário). No plano macroeconômico, a inflexão tecnocrática não deu muito
certo, pois a tentativa de mexer nos juros resultou na volta da inflação dos
preços (que está na base da revolta). A inflação dos juros e aquelas dos preços
se reapresentaram como as duas faces de um impasse renovado que só uma
mobilização produtiva (da qual não há sinal) pode resolver .
Nova classe média não existe
No plano
sociológico, a “nova classe média” não existe, porque o que se constitui é uma
nova composição social cujas características técnicas são de trabalhar
diretamente nas redes de circulação e serviços da metrópole. A figura econômica
(a “média” da faixa de renda) esconde o conteúdo sociológico de uma inclusão produtiva
que não passa mais pela prévia implementação na relação salarial. Esse trabalho
dos incluídos enquanto excluídos é um trabalho de tipo diferente: ele é
precarizado (do ponto de vista da relação de emprego); imaterial (do ponto de
vista que depende da recomposição subjetiva e comunicativa do trabalho manual e
intelectual) e terciário (do ponto de vista da cadeia produtiva, aquela dos
serviços).
A qualidade da
inserção produtiva desse trabalho depende diretamente dos direitos prévios aos
quais têm acesso e que, ao mesmo tempo, ele produz, como, por exemplo, poder
circular pela metrópole. É exatamente essa composição técnica e social do
trabalho metropolitano o que constitui a outra face da “nova classe média”
oriunda do período Lula. Ao
mesmo tempo em que ela foi a base eleitoral das sucessivas derrotas do
neoliberalismo, ela é também hoje, na sua recomposição política, a oposição ao
neodesenvolvimentismo. Para ela, a questão da mobilidade urbana tem a mesma
dimensão que tinha o salário para os operários ao mesmo tempo em que o segmento
estratégico é aquele dos serviços.
As cidades e
metrópoles brasileiras – e não a reindustrialização – constituem o maior
gargalo, ao mesmo tempo social, político e econômico. A ideologia e a coalizão
de interesses que estão com a presidente Dilma não
mostraram, até agora, a menor capacidade de enxergar esse dado. Mais do que
isso, essa nova composição do trabalho imaterial e metropolitano produz, a
partir de formas de vida, outras formas de vida. Por isso, o movimento do passe
livre, como aquele de Istambulque
defendia um parque, foi juntando todos os focos de resistência que existem nas
metrópoles, até se espalhar – como está fazendo nesse momento, dramaticamente e
assustadoramente – pelas periferias onde nunca teve manifestação de massa
nenhuma.
O que esse
“levante” da multidão do trabalho imaterial nos mostra é que o “legado” destes
últimos dez anos de governo está em disputa, e que o mais interessante é ficar
por dentro dessas alternativas, em vez de querer colocar uma ou outra bandeira.
A política e os movimentos estão dentro e contra. Por exemplo, pensemos a questão dos megaeventos, das
copas e olimpíadas. Muitos dos focos de resistência nas metrópoles são
movimentos que criticam os gastos com obras, estádios, favelas que resistem
contra as remoções etc. Ao mesmo tempo, a possibilidade de o movimento ter
acontecido sem uma repressão brutal, por enquanto, se deve também à Confederation Cup. Mais uma vez,
o conflito é dentro e contra.
IHU On-Line – O que
é possível vislumbrar para o cenário político a partir das manifestações?
Giuseppe Cocco – Creio que o evento é tão potente e
imprevisto que ninguém saberá responder a essa pergunta. Sobretudo neste
momento: a cada dia e talvez a cada hora mudam alguns dados fundamentais. O que
podemos dizer é que o cenário eleitoral de 2014 até 2018 estava desenhado e as
variáveis vislumbradas eram aquelas macroeconômicas. O movimento se convidou
para essa discussão. Só que não há ninguém que possa sentar nessa eventual mesa
dizendo que o representa.
A terra tremeu e
continua tremendo, só que a fumaça levantada não nos deixa ainda ver quais
prédios cairão e quais ficarão em pé. Nesse cenário, podemos fazer duas
conjeturas.
Numa primeira, a presidente Dilma pode abrir pela
esquerda, por exemplo, com uma reforma ministerial que colocaria pessoas
qualificadas e altamente progressistas em ministérios-chave como a Justiça,
Cidade e Transportes, MinC e Educação, convocando a sociedade a se constituir –
em todos os níveis possíveis – em assembleias participativas para discutir as
urgências metropolitanas.
Na segunda (que me parece ser
aquela anunciada pelo pronunciamento do dia 21 de junho), ela se limita a
reconhecer a existência de outra composição social no movimento e a construção
de um grande pacto sobre os serviços públicos, mas não anuncia nada de novo a
não ser algumas bandeiras de longo prazo (a destinação de 100% dos royalties do
petróleo para a educação) e enfatiza a questão da ordem: repressão dos “violentos”
e respeito pelos megaeventos (ou
seja, mais repressão). E isso depois dos fatos bem sombrios da quinta-feira
(aparição desses grupos pagos para agredir os partidos e, no Rio, repressão generalizada da
manifestação perseguindo a centenas de milhares de participantes durante toda a
dispersão).
O cenário que vislumbro é pessimista: parece-me que
boa parte dos militantes de esquerda está caindo na armadilha das “bandeiras”,
e que isso acabará por realmente entregar o movimento à direita e, por cima,
haverá repressão, eventualmente também das opiniões. Nesse cenário muito
provável, para salvar a si mesmos e evitar uma renovação geral, as burocracias
e outros fisiologismos encastelados nos diferentes governos e coalizões, estão
destruindo as possibilidades de uma grande renovação da esquerda e levando todo
o mundo de roldão no buraco que será o resultado eleitoral
de 2014. Mas quero muito estar errado. Se for verdade que estou errado, serão
as lutas da multidão que o dirão e o cenário que elas têm de enfrentar é muito,
muito complexo.