Escrito por Maria
Orlanda Pinassi e Frederico Daia Firmiano
Enquanto política
pública, a Reforma Agrária no Brasil teve caráter essencialmente antipopular.
Nos anos de chumbo, funcionou como contrarreforma para combater a aquisição
espontânea das terras virgens da Amazônia pelos espoliados de outras regiões do
país (1). De 1990 para cá, a Reforma Agrária, sob controle do Estado, passou a
ser orientada pelo Banco Mundial e acaba cumprindo a mesma função social.
Através da intervenção do governo federal, foi implantado um programa conhecido
como “Novo Mundo Rural”, que estimulava a compra de terras para fins de Reforma
Agrária, sob o argumento de que, desse modo, se agilizaria a desapropriação de
áreas sob conflito e se contemplaria, com alguns investimentos, a formação de
um novo conceito de “agricultura familiar”. O objetivo do programa era
aproximar-se daqueles pequenos produtores familiares de regiões que
apresentavam condições favoráveis para sua integração em um mercado já dominado
pelo capital transnacional, fundamentalmente, como elo das cadeias produtivas
do agronegócio, seja produzindo matéria-prima para as agroindústrias, seja
produzindo alimentos para o mercado interno. Mas a intenção real por detrás
disso tudo era transformá-los em trabalhadores flexíveis.
A reforma agrária
dos governos petistas
Lula da Silva e
Dilma Rousseff, por seu turno, conduziram, sob o neodesenvolvimentismo,
um ciclo de expansão do capital apoiado pelo padrão exportador de
especialização produtiva (2), que elevou a monocultura do agronegócio à máxima
potência – ao lado da mineração e de outras formas de “produção destrutiva”,
que movimentam o setor energético e da construção civil, responsáveis pela
formação da infraestrutura necessária para o desenvolvimento destes ramos da
economia. Através dos vultosos recursos públicos destinados ao capital privado
- oriundos, principalmente, do Fundo de Amparo ao Trabalhador e repassados pelo
BNDES -, o Estado passou a compô-lo organicamente, convertendo as empresas
privadas desses setores em verdadeirosplayers globais.
Ao mesmo tempo,
intensificou os investimentos na nova “agricultura familiar”, através do
Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar-PRONAF,
especialmente entre aqueles considerados mais “dinâmicos” e com capacidade de
se integrar ao mercado. Incluem-se aí alguns assentamentos rurais, sobretudo
nas regiões Sul e Sudeste, que, juntas, não somam 20% do total de assentamentos
do país, dando forma e colorido ao “novo mundo rural” que Fernando Henrique
Cardoso apenas desenhou.
Os governos petistas
não apenas reduziram sobremaneira os investimentos na criação de novos
assentamentos - cujo orçamento, em 2010, apresentou um passivo de R$ 800
milhões para obtenção de terras (IPEA, 2012) -, como não fizeram qualquer
esforço para reverter o quadro de abandono da maior parte destas áreas, sem
infraestrutura básica mínima. Conforme os dados do Sistema de Informações de
Projetos de Reforma Agrária-SIPRA e do Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária-INCRA, elaborados pelo IPEA, dos 8.759 assentamentos rurais
formados entre 1900 e 2011, 52,6% estão em fase inicial de execução. Se somados
aos 29,5% dos assentamentos em fase de execução, temos 85,7% dos assentamentos
geridos pelo INCRA sem infraestrutura produtiva e social, ou seja, mais de
7.500 assentamentos em situação de precariedade (IPEA, 2012, p. 268), que
obriga os assentados a se submeterem a distintas formas de proletarização.
Além disso, no
último ano, voltou à cena o Programa de Emancipação dos
assentamentos que, em 2000, foi elaborado como política do governo de Fernando
Henrique Cardoso e financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento-BID.
Esta medida, prevista pelo Estatuto da Terra (1964), visava dar “autonomia” aos
assentados rurais da Reforma Agrária, por meio da concessão do domínio da terra
para as áreas já consolidadas, criadas há mais de 10 anos. Apesar de realizar
algumas experiências, o programa não teve fôlego. Agora, segundo relatos de
assentados em todo o país, os assentamentos com mais de 10 anos estão recebendo
boletos bancários para pagarem pela terra e pelas benfeitorias feitas pelo
Estado para se “emanciparem”, compulsoriamente. Ao lado dos já consolidados e
“emancipados”, os demais assentamentos, antes mesmo de possuírem as condições
estruturais mínimas necessárias para competir com os demais “agricultores
familiares”, adentrarão, em condições obviamente inferiorizadas, a
acirradíssima disputa por espaços no mercado agropecuário, hoje
ultramonopolizado pelo capital transnacional.
A reestruturação
do INCRA: fragmentação na pauta e desfiguração do assentado
A Reforma Agrária,
institucional e empreendedorista, funciona como o mais profundo golpe que se
poderia dar sobre a Reforma Agrária popular, um golpe muito mais poderoso do
que aquele encetado pela ditadura. Veja-se, por exemplo, a reestruturação atual
pela qual passa o INCRA, ou “Novo INCRA”, como vem sendo chamada a
“modernização administrativa” do setor, que irá descentralizar as atividades
relativas à reforma agrária deslocando-as para outros órgãos federais e
prefeituras. Os investimentos na melhoria de vias de acesso ao mercado pelos
assentados para o escoamento da produção passará a ser de responsabilidade dos
municípios, que deverão receber recursos do governo federal por meio do
PAC-Equipamentos. A construção de casas nos lotes se dará por meio do programa
Minha Casa, Minha Vida, a cargo do Ministério das Cidades, assim como o
fornecimento de luz, que virá por meio do programa Luz Para Todos, do
Ministério das Minas e Energia; e o fornecimento de água para as famílias do
semiárido, que deverá ser de responsabilidade do Ministério da Integração
Nacional. De modo geral, essa reestruturação política do órgão federal
implicará diretamente sobre as formas de organização de luta dos movimentos
sociais do campo, uma vez que fragmenta sua pauta de reivindicações e sua luta
sindical.
As medidas dão o
tiro de misericórdia que faltava à luta pela Reforma Agrária, um passo decisivo
na desfiguração total do “assentado” que lutou pela terra para fugir da
condição proletária e, agora, se vê às voltas de um novo processo de
proletarização, lançando seus instrumentos de organização de luta a um desafio
igualmente novo, sob o risco de se tornarem anacrônicos.
Diante do quadro,
fazem coro os atuais detratores da Reforma Agrária, enquanto móvel de luta
popular. Figuram aí desde os históricos representantes da direita ruralista do
país até os apologetas do neodesenvolvimentismo, muitos dos quais, não
surpreendentemente, têm suas origens ideológicas no marxismo evolucionista.
Todos acabam se equivalendo no encerramento institucional e mercadológico da
reforma agrária. Condenam-se, por isso, as ocupações por violarem a propriedade
produtiva, assim como se julga anacrônica e desnecessária a luta pela terra do
MST, um movimento que teria cumprido seu ciclo histórico, devendo então
recolher-se à função de gerente/empreendedor dos negócios relativos aos
assentamentos existentes.
MST,
conquistas e contradições internas
Em três décadas de
atuação intensa, o MST acumula conquistas memoráveis, cujas positividades
legadas às novas gerações de lutadores sociais do Brasil e do mundo são
inúmeras e inquestionáveis. Dentre elas, destacam-se, primeiramente, a
determinação de uma militância que ousou organizar-se, ainda nos anos finais da
ditadura militar, para combater o latifúndio improdutivo, enfrentar a violência
desmedida que os latifundiários, pelo país afora, herdaram do persistente
passado colonial e ainda as consequências sociais nefastas da chama “Revolução
Verde”. Ancorado na ideologia, a um só tempo, desenvolvimentista e socialista,
o MST, juntamente com CPT, PT e CUT, se dispunha a realizar as “tarefas em
atraso”. Em três décadas de existência, rompeu o isolamento moral e real que a
ordem impôs às suas difíceis causas e ganhou expressividade nacional. A duras
penas, fez-se representar em cada um dos 23 estados brasileiros e no Distrito
Federal, procurando reorganizar, em novas bases, a vida de milhares de famílias
de trabalhadores rurais e urbanos, primeiro na disputa árdua pela terra, depois
no processo de sua ocupação produtiva e reprodutiva. Num cenário político e
econômico particularmente turbulento, o MST consolidou-se no maior e mais
combativo movimento social do país e, merecidamente, as ações que realizou
despertaram, para além do ódio da burguesia latifundiária, o reconhecimento das
mais respeitáveis organizações sociais internacionais.
Outro resultado,
menos óbvio, mas tão ou mais importante do que a conquista da terra, está nos
inúmeros instrumentos de formação educacional e política (3) que o MST criou a
fim de possibilitar que toda sua base, sem exceção, sem discriminação racial,
geracional, de gênero, saísse da ignorância e recobrasse a dignidade roubada
pelo mundo do capital.
Mas, nesse mesmo
período, o MST vem renovando, em escala ampliada, a estrutura de impenitentes
contradições internas, pois, como vimos, sua dinâmica reflete, para o bem e
para o mal, uma complexidade na qual ancora expectativas e objetivos sociais
contraditórios. A própria processualidade interna do MST vem sofrendo mudanças
significativas, em função de suas relações com o Estado e com o capital, de sua
difusa objetividade desenvolvimentista. A pressão que vem sofrendo para
“apresentar resultados práticos” afasta o movimento do vislumbre socialista e o
conduz para a reprodução de um pragmatismo que tende a se tornar hierárquico e
estrutural. O mais grave é gerar, no seu interior, a semente da luta de
classes, já que assentados e acampados, assim como assentados prósperos e
precários, não possuem as mesmas expectativas, nem a mesma pauta de atuação
cotidiana.
Uma amostra desse
processo pode ser comprovada nos números que seguem. Por exemplo, durante a
década de 1990, as ocupações de terra aumentaram progressivamente, saltando da
casa de 50 ocupações, em 1990, para 856 no final da década, com destaque para
os anos de 1997, 1998 e 1999 – triênio pós os massacres de Corumbiara, em 1995,
e Carajás, em 1996, e após a realização da marcha do MST realizada em 1997, que
reuniu mais de 1 milhão de trabalhadores e trabalhadoras.
Entre 2003 e 2004,
foram realizadas 540 e 662 ocupações de terras, respectivamente, mas, desde
então, este número só fez cair, ao ponto de, em 2010, terem sido realizadas
apenas 184 ocupações de terras. O número de famílias que participou das
ocupações tem desempenho similar. Ou seja, de uma participação crescente que,
em 1999, alcança o número de 113.909 famílias em ocupações de terras, no ano de
2010, registram-se tão somente 16.936 famílias em ações similares.
Esgotamento do
papel emancipatório e condições para sua retomada
Diante do quadro,
arriscamos afirmar que este movimento se aproximou da fundação de uma
sociabilidade alternativa, de transição, e da formação de um novo sujeito mais
consciente do seu papel protagonista na história do país. Aproximou-se, mas não
conferiu o resultado revolucionário deste direcionamento.
Observamos que, no
plano político-institucional, com o agravante das afinidades ideológicas que
preserva com o PT e a CUT, o MST esgotou definitivamente o seu papel
emancipatório. Mas isso não quer dizer que não possa reassumi-lo. Para tanto, é
preciso reconhecer a necessidade de se retomar e mesmo recriar formas mais
ofensivas de luta, algo que já ocorre, de modo pontual, por iniciativa da sua
militância mais combativa. Referimo-nos à luta das mulheres, especialmente, às
ações articuladas e executadas por elas, em todo o Brasil, a partir do oito de
março de 2006. Referimo-nos às lutas de ocupação que não têm
necessariamente caráter reivindicativo, mas o objetivo de enfrentar e denunciar
o aspecto essencialmente destrutivo do capital representado por transnacionais
gigantescas, como a Vale, Aracruz, Monsanto, Stora Enzo, Cutrale etc.
Infelizmente, tais ações vêm sendo muito criticadas e constrangidas por um
pragmatismo legalista no interior do próprio movimento.
Da mesma forma, é
necessário que o MST retome o princípio da autonomia política, desvinculando
o que seriam os seus próprios objetivos dos objetivos neodesenvolvimentistas do
petismo ou de qualquer outra forma política de reprodução do capital. Tal passo
é fundamental ainda para que o MST, enquanto movimento de organização de
massas, consiga enfrentar a realidade precária de sua base social flexível,
proletarizada e precarizada, em muitos sentidos, porque não consegue
reproduzir-se como camponês, ainda que parcialmente livre, em seus lotes. Isso
não pode ser considerado um auto-fracasso, de natureza política, mas o
resultado de uma grande ofensiva econômica do capital neoliberal no campo, que
submete todas as demais formas de produção e de relação social à sua própria
lógica.
Nestas condições,
o movimento só tem uma alternativa se tiver a efetiva pretensão de se manter no
campo da emancipação socialista, uma alternativa societária radical: retomar
para si a luta pela terra contra (e não com) o capital, potencializar a
consciência de classe dos seus próprios proletários, jamais negar, como se
fosse um simples desvio de percurso, as evidências dessa condição explosiva de
sua base social.
Maria Orlanda
Pinassi é professora da
FCL/UNESP de Araraquara; Frederico Daia Firmiano é professor
da Fundação de Ensino Superior de Passos/Universidade do Estado de Minas
Gerais-FESP/UEMG. Este texto contou com a contribuição de Silvia
Beatriz Adoue.
(1) Ver a respeito
Octávio Ianni. Colonização e contra-reforma agrária na Amazônia. Petrópolis;
Editora Vozes, 1979.
(2) Jaime Osorio.
América Latina: o novo padrão exportador de especialização produtiva – estudo
de cinco economias da região. In.: Carla Ferreira; Jaime Osorio; Mathias Luce
(Orgs.). Padrão de reprodução do capital: contribuições da teoria
marxista da dependência. São Paulo. – Boitempo, 2012.
(3) Cerca de 350
mil integrantes do MST já frequentaram cursos de alfabetização, ensino
fundamental, médio, superior e cursos técnicos. Por ano, há aproximadamente 28
mil educandos e 2 mil professores envolvidos em processos de educação.
Destacamos o papel das escolas itinerantes, de formação técnica – com destaque
para aquelas de ensino agroecológico – , das parcerias com universidades
públicas (são 5 mil educandos nestas instituições) e para a Escola Nacional
Florestan Fernandes que, desde 2005, vem recebendo militantes do próprio MST e
de outros movimentos sociais do Brasil, da América Latina, da África, do mundo
inteiro.
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