Marilena Chauí
1. Surpresas
Alguém que, nos
anos 1950 e 1960, conhecesse as terríveis condições de vida e de trabalho das
classes populares brasileiras e, naquela época, tivesse viajado por uns tempos
pela Europa, seria duplamente surpreendido. Primeira surpresa: veria operários
dirigindo pequenos carros (na França, o famoso “dois cavalos” da Renault; na
Inglaterra, o “biriba” da Morris; na Itália, o Cinquecento da Fiat), passando
as férias com a família (em geral em alguma praia), fazendo compras em lojas de
departamento populares (na França, o Prixunic; na Inglaterra, o Woolworths e a
C&A), enviando os filhos a creches públicas e, quando maiores, à escola
pública de primeiro e segundo graus, às escolas técnicas e mesmo às
universidades. Também veria que os trabalhadores tinham direito, assim como
suas famílias, a hospitais públicos e medicamentos gratuitos e, evidentemente,
possuíam casa própria. Era a Europa do período fordista do capitalismo
industrial, portanto da linha de montagem e fabricação em série de produtos
cujo custo barateado permitia o consumo de massa. Mas era, sobretudo, a Europa
da economia keynesiana, quando as lutas anteriores dos trabalhadores
organizados haviam levado à eleição de governantes de centro ou de esquerda e
ao surgimento do Estado do Bem-Estar Social, no qual uma parte considerável do
fundo público era destinada, sob a forma de salário indireto, aos direitos
sociais, reivindicados e, agora, conquistados pelas lutas dos trabalhadores.
Segunda surpresa: a diferença profunda entre, por exemplo, a situação dos
trabalhadores suecos – desde os salários e direitos sociais até os direitos
culturais – e a dos espanhóis, portugueses e gregos, ainda submetidos a
ditaduras fascistas e forçados a emigrar para o restante da Europa em busca de
melhores condições de vida e de trabalho.
Entretanto, não
passaria pela cabeça de ninguém dizer que os trabalhadores europeus haviam
ascendido à classe média. Curiosamente, é o que se diz hoje dos trabalhadores
brasileiros, após dez anos de políticas contrárias ao neoliberalismo.
2. A catástrofe
neoliberal
Diante da classe
trabalhadora que descrevemos acima, não foi por acaso, em meados dos anos 1970,
quando o déficit fiscal do Estado e a estagflação abriram uma crise no
capitalismo, que os ideólogos conservadores ofereceram uma suposta explicação
para ela: a crise, disseram eles, foi causada pelo poder excessivo dos
sindicatos e dos movimentos operários, que pressionaram por aumentos salariais
e exigiram o aumento dos encargos sociais do Estado. Teriam, dessa maneira, destruído
os níveis de lucro requeridos pelas empresas, desencadeado processos
inflacionários incontroláveis e provocado o aumento colossal da dívida pública.
Feito o
diagnóstico, também ofereceram o remédio: um Estado forte para quebrar o poder
dos sindicatos e movimentos populares, controlar o dinheiro público e cortar
drasticamente os encargos sociais e os investimentos na economia, tendo como
meta principal a estabilidade monetária por meio da contenção dos gastos
sociais e do aumento da taxa de desemprego para formar um exército industrial
de reserva que acabasse com o poderio das organizações trabalhadoras.
Tratava-se, portanto, de um Estado que realizasse uma reforma fiscal para
incentivar os investimentos privados, reduzindo os impostos sobre o capital e as
fortunas e aumentando os impostos sobre a renda individual e, assim, sobre o
trabalho, o consumo e o comércio. Finalmente, um Estado que se afastasse da
regulação da economia, privatizando as empresas públicas e deixando que o
próprio mercado operasse a desregulação, ou, traduzindo em miúdos, a abolição
dos investimentos estatais na produção e do controle estatal sobre o fluxo
financeiro, a drástica legislação antigreve e o vasto programa de privatização.
Pinochet, no Chile, Thatcher, na Grã-Bretanha, e Reagan, nos Estados unidos,
tornaram-se a ponta de lança política desse programa.
Com o encolhimento
do espaço público dos direitos e a ampliação do espaço privado dos interesses
de mercado, nascia o neoliberalismo, cujos traços principais podem ser assim resumidos:
1. A desativação
do modelo industrial de tipo fordista, baseado no planejamento, na
funcionalidade e no longo prazo do trabalho industrial, com a centralização e
verticalização das plantas industriais, grandes linhas de montagens
concentradas num único espaço, formação de grandes estoques orientados pelas
ideias de qualidade e durabilidade dos produtos, e numa política salarial
articulada ao Estado (o salário direto articulado ao salário indireto, isto é,
aos benefícios sociais assegurados pelo Estado). Em contrapartida, no
neoliberalismo, a produção opera por fragmentação e dispersão de todas as
esferas e etapas do trabalho produtivo, com a compra e venda de serviços no
mundo inteiro, isto é, com a terceirização e precarização do trabalho.
Desarticulam-se as formas consolidadas de negociação salarial e se desfazem os
referenciais que permitiam à classe trabalhadora perceber-se como classe e
lutar como classe social, enfraquecendo-se ao se dispersar nas pequenas
unidades terceirizadas, de prestação de serviços, no trabalho precarizado e na
informalidade, que se espalharam pelo planeta. Desponta uma nova classe
trabalhadora cuja composição e definição ainda estão longe de ser
compreendidas.
2. O desemprego
torna-se estrutural, deixando de ser acidental ou expressão de uma crise
conjuntural, porque a forma contemporânea do capitalismo, ao contrário de sua
forma clássica, não opera por inclusão de toda a sociedade no mercado de
trabalho e de consumo, mas por exclusão, que se realiza não só pela introdução
ilimitada de tecnologias de automação, mas também pela velocidade da
rotatividade da mão de obra, que se torna desqualificada e obsoleta muito
rapidamente em decorrência da velocidade das mudanças tecnológicas. Como
consequência, tem-se a perda de poder dos sindicatos, das organizações e
movimentos populares e o aumento da pobreza absoluta.
3. O deslocamento
do poder de decisão do capital industrial para o capital financeiro, que se
torna o coração e o centro nervoso do capitalismo, ampliando a desvalorização
do trabalho produtivo e privilegiando a mais abstrata e fetichizada das
mercadorias, o dinheiro, porém não como mercadoria equivalente para todas as
mercadorias, mas como moeda ou expressão monetária da relação entre credores e
devedores, provocando, assim, a passagem da economia ao monetarismo. Essa
abstração transforma a economia no movimento fantasmagórico das bolsas de
valores, dos bancos e financeiras – fantasmagórico porque não operam com a
materialidade produtiva e sim com signos, sinais e imagens do movimento
vertiginoso das moedas.
4. No Estado do
Bem-Estar Social, a presença do fundo público sob a forma do salário indireto
(os direitos econômicos e sociais) desatou o laço que prendia o capital à força
de trabalho (ou ao salário direto). Esse laço era o que, tradicionalmente,
forçava a inovação técnica pelo capital a ser uma reação ao aumento real de
salário1 e, ao ser desatado, três consequências se impuseram: a) o impulso à
inovação tecnológica tornou-se praticamente ilimitado, provocando expansão dos
investimentos e agigantamento das forças produtivas cuja liquidez é
impressionante, mas cujo lucro não é suficiente para concretizar todas as
possibilidades tecnológicas, exigindo o financiamento estatal; b) o desemprego
passou a ser estrutural não só pela introdução ilimitada de tecnologias de
automação, mas também pela velocidade da rotatividade da mão de obra, que se
torna desqualificada e obsoleta muito rap idamente em decorrência da velocidade
das mudanças tecnológicas, ampliando a fragmentação da classe trabalhadora e
diminuindo o poder de suas organizações; c) o aumento do setor de serviços
também se torna estrutural, deixando de ser um suplemento à produção, visto
que, agora, sob a designação de tecnociência, a ciência e a tecnologia
tornaram-se forças produtivas, deixando de ser mero suporte do capital para se
converter em agentes de sua acumulação; com isso, mudou o modo de inserção
social do conhecimento científico e técnico, de maneira que cientistas e
técnicos se tornaram agentes econômicos diretos. A força e o poder capitalistas
encontram-se no monopólio dos conhecimentos e da informação.
5. A
transnacionalização da economia reduz a importância da figura do Estado
nacional como enclave territorial para o capital e dispensa as formas clássicas
do imperialismo – colonialismo político-militar, geopolítica de áreas de
influência etc. –, de sorte que o centro econômico, jurídico e político
planetário encontra-se no Fundo Monetário Internacional (FMI) e no Banco
Mundial, que operam com um único dogma: estabilidade monetária e corte do
déficit público.
6. A distinção
entre países de Primeiro e terceiro Mundo tende a ser acrescida com a
existência, em cada país, de uma divisão entre bolsões de riqueza absoluta e de
miséria absoluta, isto é, a polarização de classes surge como polarização entre
a opulência absoluta e a indigência absoluta.
3. A mudança a
caminho
Em política, há
ações e acontecimentos com força para se tornar simbólicos. é assim que podemos
contrapor dois momentos simbólicos que marcaram a política brasileira entre
1990 e 2002: o primeiro nos leva de volta ao “bolo de noiva”, que inaugurou a
era Collor; o segundo, à pergunta singela feita pelo recém-eleito presidente da
república aos âncoras do Jornal nacional da Rede Globo, na noite de 28 de outubro
de 2002.
No final da
campanha presidencial de 1989 e na fase de transição entre novembro de 1989 e
janeiro de 1990, um fato novo marcou a política brasileira: em primeiro plano,
tanto nos discursos como nos debates e na prática, veio a economista Zélia
Cardoso de Melo com sua equipe técnica. As decisões fundamentais partiam desse
grupo, que se reunia em Brasília num edifício apelidado “bolo de noiva” e de lá
vieram medidas econômicas que definiram o governo de Fernando Collor, no qual o
discurso político foi suplantado pelo técnico-econômico. Neste, surgia,
imperial, uma nova figura: o mercado, cuja fantasmagoria só entraria em pleno
funcionamento no período de 1994 a 2002, quando a população brasileira passou a
ouvir curiosas expressões, tais como “os mercados estão nervosos”, “os mercados
estão agitados”, “os mercados se acalmaram”, “os mercados não aprovaram”, como
se “os mercados” fossem alguém!
Na noite de 28 de
outubro de 2002, no final do Jornal nacional da Rede Globo de televisão, quando
os âncoras falavam sobre as cotações das bolsas de valores, do dólar e do real,
e sobre a agitação e calmaria dos “mercados”, o presidente da República eleito,
Luiz Inácio Lula da Silva, que estava sendo entrevistado, perguntou com um
sorriso levemente irônico: “Vocês não têm outros assuntos? Cadê a fome, o
desemprego, a miséria, a desigualdade social?”. Essa indagação singela, unida
ao pronunciamento feito algumas horas antes, anunciando a criação da Secretaria
de Emergência Social, cuja prioridade era o combate à fome, demarcou
simbolicamente o novo campo da política no Brasil: os direitos civis,
econômicos e sociais são prioritários e comandam as ações técnico-econômicas,
pois a democracia é a única forma política em cujo núcleo está a ideia de
direitos, tanto de sua criação pela sociedade, como de sua garantia e
conservação pelo Estado.
O “bolo de noiva”
simbolizou a entrada do país no modelo neoliberal. O pronunciamento e a
pergunta do novo presidente da república simbolizaram a decisão de sair desse
modelo.
Entre esses dois
momentos, intercalam-se os governos de Fernando Henrique Cardoso, que tornaram
esse modelo hegemônico ao realizar a chamada reforma e modernização do Estado,
isto é, a adoção do neoliberalismo como princípio definidor da ação estatal
(privatização dos direitos sociais, convertidos em serviços vendidos e
comprados no mercado, privatização das empresas públicas, direcionamento do
fundo público para o capital financeiro etc.). Para legitimar essa decisão
política, foram mobilizadas as duas grandes ideologias contemporâneas: a da
competência e a da racionalidade do mercado.
A ideologia da
competência afirma que aqueles que possuem determinados conhecimentos têm o
direito natural de mandar e comandar os que supostamente são ignorantes, de tal
maneira que a divisão social das classes aparece como divisão entre dirigentes
competentes e executantes que apenas cumprem ordens. Essa ideologia, dando
enorme destaque à figura do “técnico competente”, tem a peculiaridade de
esquecer a essência mesma da democracia, qual seja, a ideia de que os cidadãos
têm direito a todas as informações que lhes permitam tomar decisões políticas
porque são todos politicamente competentes para opinar e deliberar, e que
somente após a tomada de decisão política há de se recorrer aos técnicos, cuja
função não é deliberar nem decidir, mas implementar da melhor maneira as
decisões políticas tomadas pelos cidadãos e por seus representantes.
Por sua vez, a
ideologia neoliberal afirma que o espaço público deve ser encolhido ao mínimo enquanto
o espaço privado dos interesses de mercado deve ser alargado, pois considera o
mercado portador de racionalidade para o funcionamento da sociedade. Ela se
consolidou no Brasil com o discurso da modernização, no qual modernidade
significava apenas três coisas: enxugar o Estado (entenda-se: redução dos
gastos públicos com os direitos sociais), importar tecnologias de ponta e gerir
os interesses da finança nacional e internacional.
Essa ideologia
propagou-se pela vida cotidiana brasileira, bastando observar o que acontecia
nos noticiários dos meios de comunicação. As cotações das bolsas de valores do
mundo inteiro, assim como as das moedas, o comportamento do FMI, do Banco
Mundial e dos bancos privados passaram para as primeiras páginas dos jornais, para
o momento “nobre” dos noticiários de rádio e televisão, alguns canais chegando
mesmo a manter na tela faixas com a variação das cotações das bolsas de valores
e das moedas minuto por minuto. A subida ou descida do valor do dólar, do euro
e do real, o “risco Brasil”, as falas dos dirigentes do FMI, do Banco Central
norte-americano, dos economistas ingleses, franceses e alemães passaram a
ocupar o lugar de honra e, nos noticiários matinais, a exibição cotidiana da
abertura do pregão da bolsa de valores em Wall Street assumiu a aparência de
uma oração ou de uma missa, rivalizando com o que, no mesmo horário, se passava
nas rádios e canais de televisão propriamente religiosos.
Ora, o
neoliberalismo não é, de maneira nenhuma, a crença na racionalidade do mercado
e o enxugamento do Estado, e sim a decisão de cortar o fundo público no polo de
financiamento dos bens e serviços públicos (isto é, dos direitos sociais) e
maximizar o uso da riqueza pública nos investimentos exigidos pelo capital. A
compreensão dessa verdade veio expressar-se na decisão dos eleitores de fazer
valer a reivindicação por uma nova forma de gestão do fundo público, na qual a
bússola é a defesa dos direitos sociais.
4. Uma nova classe
trabalhadora brasileira
Estudos, pesquisas
e análises mostram que houve uma mudança profunda na composição da sociedade
brasileira, graças aos programas governamentais de transferência da renda,
inclusão social e erradicação da pobreza, à política econômica de garantia do
emprego e elevação do salário mínimo, à recuperação de parte dos direitos
sociais das classes populares (sobretudo alimentação, saúde, educação e
moradia), à articulação entre esses programas e o princípio do desenvolvimento
sustentável e aos primeiros passos de uma reforma agrária que permita às
populações do campo não recorrer à migração forçada em direção aos centros
urbanos.
De modo geral,
utilizando a classificação dos institutos de pesquisa de mercado e da
sociologia, costuma-se organizar a sociedade numa pirâmide seccionada em
classes designadas como A, B, C, D e E, tomando como critério a renda, a
propriedade de bens imóveis e móveis, a escolaridade e a ocupação ou profissão.
Por esse critério, chegou-se à conclusão de que, entre 2003 e 2011, as classes
D e E diminuíram consideravelmente, passando de 96,2 milhões de pessoas a 63,5
milhões; já no topo da pirâmide houve crescimento das classes A e B, que
passaram de 13,3 milhões de pessoas a 22,5 milhões. A expansão verdadeiramente
espetacular, contudo, ocorreu na classe C, que passou de 65,8 milhões de
pessoas a 105,4 milhões. Essa expansão tem levado à afirmação de que cresceu a
classe média brasileira, ou melhor, de que teria surgido uma nova classe média
no país.
Sabemos,
entretanto, que há outra maneira de analisar a divisão social das classes,
tomando como critério a forma da propriedade. No modo de produção capitalista,
a classe dominante é proprietária privada dos meios sociais de produção
(capital produtivo e capital financeiro); a classe trabalhadora, excluída
desses meios de produção e neles incluída como força produtiva, é proprietária
da força de trabalho, vendida e comprada sob a forma de salário. Marx falava em
pequena burguesia para indicar uma classe social que não se situava nos dois
polos da divisão social constituinte do modo de produção capitalista. A escolha
dessa designação decorria de dois motivos principais em primeiro lugar, para
afastar-se da noção inglesa de middle class, que indicava exatamente a
burguesia, situada entre a nobreza e a massa trabalhadora; em segundo, para
indicar, por um lado, sua proximidade social e ideológi ca com a burguesia, e
não com os trabalhadores, e, por outro, indicar que, embora não fosse
proprietária privada dos meios sociais de produção, poderia ser proprietária
privada de bens móveis e imóveis. Numa palavra, encontrava-se fora do núcleo
central do capitalismo: não era detentora do capital e dos meios sociais de
produção e não era a força de trabalho que produz capital; situava-se nas
chamadas profissões liberais, na burocracia estatal (ou nos serviços públicos)
e empresarial (ou na administração e gerência), na pequena propriedade
fundiária e no pequeno comércio.
É a sociologia,
sobretudo a de inspiração estadunidense, que introduz a noção de classe média
para designar esse setor socioeconômico, empregando, como dissemos acima, os
critérios de renda, escolaridade, profissão e consumo, a pirâmide das classes
A, B, C, D e E, e a célebre ideia de mobilidade social para descrever a
passagem de um indivíduo de uma classe para outra.
Se abandonarmos a
descrição sociológica, se ficarmos com a constituição das classes sociais no
modo de produção capitalista (ainda que adotemos a expressão “classe média”),
se considerarmos as pesquisas que mencionamos ao iniciar este texto e os
números que elas apresentam relativos à diminuição e ao aumento do contingente
nas três classes sociais, poderemos chegar a algumas conclusões:
1. Os projetos e
programas de transferência de renda e garantia de direitos sociais (educação,
saúde, moradia, alimentação) e econômicos (aumento do salário mínimo, políticas
de garantia do emprego, salário-desemprego, reforma agrária, cooperativas da
economia solidária etc.) indicam que o que cresceu no Brasil foi a classe
trabalhadora, cuja composição é complexa, heterogênea e não se limita aos
operários industriais e agrícolas.
2. O critério dos
serviços como definidor da classe média não se mantém na forma atual do
capitalismo porque a ciência e as técnicas (a chamada tecnociência) se tornaram
forças produtivas e os serviços por elas realizados ou delas dependentes estão
diretamente articulados à acumulação e reprodução do capital. Em outras
palavras, o crescimento de assalariados no setor de serviços não é crescimento
da classe média, e sim de uma nova classe trabalhadora heterogênea, definida
pelas diferenças de escolaridade e pelas habilidades e competências
determinadas pela tecnociência. De fato, no capitalismo industrial, as
ciências, ainda que algumas delas fossem financiadas pelo capital, se
realizavam, em sua maioria, em pesquisas autônomas cujos resultados poderiam
levar a tecnologias aplicadas pelo capital na produção econômica. Essa situação
significava que cientistas e técnicos pertenciam à clas se média. Hoje, porém,
as ciências e as técnicas tornaram-se parte essencial das forças produtivas e
por isso cientistas e técnicos passaram da classe média à classe trabalhadora
como produtores de bens e serviços articulados à relação entre capital e
tecnociência. Dessa maneira, renda, propriedade e escolaridade não são
critérios para distinguir entre os membros da classe trabalhadora e os da
classe média.
3. O critério da
profissão liberal também se tornou problemático para definir a classe média,
uma vez que a nova forma do capital levou à formação de empresas de saúde,
advocacia, educação, comunicação, alimentação etc., de maneira que seus
componentes se dividem entre proprietários privados e assalariados, e estes
devem ser colocados (mesmo que vociferem contra isso) na classe trabalhadora.
4. A figura da
pequena propriedade familiar também não é critério para definir a classe média
porque a economia neoliberal, ao desmontar o modelo fordista, fragmentar e
terceirizar o trabalho produtivo em milhares de microempresas (grande parte
delas, familiares) dependentes do capital transnacional, transformou esses
pequenos empresários em força produtiva que, juntamente com os prestadores
individuais de serviços (seja na condição de trabalhadores precários, seja na
condição de trabalhadores informais), é dirigida e dominada pelos oligopólios
multinacionais, em suma, os transformou numa parte da nova classe trabalhadora
mundial.
Restaram,
portanto, as burocracias estatal e empresarial, o serviço público, a pequena
propriedade fundiária e o pequeno comércio não filiado às grandes redes de
oligopólios transnacionais como espaços para alocar a classe média. No Brasil,
esta se beneficiou com as políticas econômicas dos últimos dez anos, também
cresceu e prosperou.
Assim, se
retornarmos ao exemplo do viajante brasileiro na Europa dos anos 1950 e 1960,
diremos que a nova classe trabalhadora brasileira começa, finalmente, a ter
acesso aos direitos sociais e a se tornar participante ativa do consumo de
massa. Como a tradição autoritária da sociedade brasileira não pode admitir a
existência de uma classe trabalhadora que não seja constituída pelos miseráveis
deserdados da terra, os pobres desnutridos, analfabetos e incompetentes,
imediatamente passou-se a afirmar que surgiu uma nova classe média, pois isso é
menos perigoso para a ordem estabelecida do que uma classe trabalhadora
protagonista social e política.
Ao mesmo tempo,
entretanto, quando dizemos que se trata de uma nova classe trabalhadora
consideramos que a novidade não se encontra apenas nos efeitos das políticas
sociais e econômicas, mas também nos dois elementos trazidos pelo
neoliberalismo, quais sejam, de um lado, a fragmentação, terceirização e
precarização do trabalho e, de outro, a incorporação à classe trabalhadora de
segmentos sociais que, nas formas anteriores do capitalismo, teriam pertencido à
classe média. Dessa nova classe trabalhadora pouco se sabe até o momento.
5. Classe média:
como desatar o nó?
Uma classe social
não é um dado fixo, definido apenas pelas determinações econômicas, mas um
sujeito social, político, moral e cultural que age, se constitui, interpreta a
si mesmo e se transforma por meio da luta de classes. Ela é uma práxis, ou como
escreveu E. P. Thompson, um fazer-se histórico. Ora, se é nisso que reside a
possibilidade transformadora da classe trabalhadora, é nisso também que reside
a possibilidade de ocultamento de seu ser e o risco de sua absorção ideológica
pela classe dominante, sendo
O primeiro sinal
desse risco justamente a difusão de que há uma nova classe média no Brasil. E é
também por isso que a classe média coloca uma questão política de enorme
relevância.
Estando fora do
núcleo econômico definidor do capitalismo, a classe média encontra-se também
fora do núcleo do poder político: ela não detém o poder do Estado nem o poder
social da classe trabalhadora organizada. Isso a coloca numa posição que a
define menos por sua posição econômica e muito mais por seu lugar ideológico, e
este tende a ser contraditório.
Por sua posição no
sistema social, a classe média tende a ser fragmentada, raramente encontrando
um interesse comum que a unifique. Todavia, certos setores, como é o caso dos
estudantes, dos funcionários públicos, dos intelectuais e de lideranças
religiosas, tendem a se organizar e a se opor à classe dominante em nome da
justiça social, colocando-se na defesa dos interesses e direitos dos excluídos,
dos espoliados, dos oprimidos; numa palavra, tendem para a esquerda e, via de
regra, para a extrema esquerda e o voluntarismo. No entanto, essa configuração
é contrabalançada por outra exatamente oposta. Fragmentada, perpassada pelo
individualismo competitivo, desprovida de um referencial social e econômico
sólido e claro, a classe média tende a alimentar o imaginário da ordem e da
segurança porque, em decorrência de sua fragmentação e de sua instabilidade,
seu imaginário é povoado por um sonho e po r um pesadelo: seu sonho é tornar-se
parte da classe dominante; seu pesadelo é tornar-se proletária. Para que o
sonho se realize e o pesadelo não se concretize, é preciso ordem e segurança.
Isso torna a classe média ideologicamente conservadora e reacionária, e seu
papel social e político é o de assegurar a hegemonia ideológica da classe dominante,
fazendo com que essa ideologia, por intermédio da escola, da religião, dos
meios de comunicação, se naturalize e se espalhe pelo todo da sociedade. é sob
essa perspectiva que se pode dizer que a classe média é a formadora da opinião
social e política conservadora e reacionária.
Cabe ainda
particularizar a classe média brasileira, que, além dos traços anteriores, é
também determinada pela estrutura autoritária da sociedade brasileira. De fato,
conservando as marcas da sociedade colonial escravista, a sociedade brasileira
é marcada pelo predomínio do espaço privado sobre o público e, tendo o centro
na hierarquia familiar, é fortemente hierarquizada em todos os seus aspectos:
nela, as relações sociais e intersubjetivas são sempre realizadas como relação
entre um superior, que manda, e um inferior, que obedece. As diferenças e
assimetrias são sempre transformadas em desigualdades que reforçam a relação
mando-obediência, e as desigualdades são naturalizadas. As relações entre os
que se julgam iguais são de “parentesco”, isto é, de cumplicidade; e, entre
aqueles que são vistos como desiguais, o relacionamento toma a forma do favor,
da clientela, da tutela ou da coop tação, e, quando a desigualdade é muito
marcada, assume a forma da opressão. A divisão social das classes é
sobredeterminada pela polarização entre a carência (das classes populares) e o
privilégio (da classe dominante), que é acentuada e reforçada pela adoção da
economia neoliberal. Visto que uma carência é sempre particular, ela se
distingue do interesse, que pode ser comum, e do direito, que é sempre
universal. Visto que o privilégio é sempre particular, não pode unificar-se num
interesse comum e jamais pode transformar-se num direito, pois, nesse caso,
deixaria de ser privilégio. Compreende-se, portanto, a dificuldade para
instituir no Brasil a democracia, que se define pela criação de novos direitos
pela sociedade e sua garantia pelo Estado.
Parte constitutiva
da sociedade brasileira, a classe média não só incorpora e propaga
ideologicamente as formas autoritárias das relações sociais, como também
incorpora e propaga a naturalização e valorização positiva da fragmentação e
dispersão socioeconômica, trazidas pela economia neoliberal e defendidas
ideologicamente pelo estímulo ao individualismo competitivo agressivo e ao
sucesso a qualquer preço pela astúcia para operar com os procedimentos do
mercado.
Ora, por mais que,
no Brasil, as políticas econômicas e sociais tenham avançado em direção à
democracia, as condições impostas pela economia neoliberal determinaram, como
vimos, a difusão por toda a sociedade da ideologia da competência e da
racionalidade do mercado como competição e promessa de sucesso. Uma vez que a
nova classe trabalhadora brasileira se constituiu no interior desse momento do
capitalismo, marcado pela fragmentação e dispersão do trabalho produtivo, de
terceirização, precariedade e informalidade do trabalho, percebido como
prestação de serviço de indivíduos independentes que se relacionam com outros
indivíduos independentes na esfera do mercado de bens e serviços, ela se torna
propensa a aderir ao individualismo competitivo e agressivo difundido pela
classe média. Em outras palavras, o ser do social permanece oculto e por isso
ela tende a aderir ao modo de aparecer do social como conjunto heterogêneo de
indivíduos e interesses particulares em competição. E ela própria tende a
acreditar que faz parte de uma nova classe média brasileira.
Essa crença é
reforçada por sua entrada no consumo de massa.
De fato, do ponto
de vista simbólico, a classe média substitui a falta de poder econômico e de
poder político, que a definem, seja pela guinada ao voluntarismo de esquerda,
seja voltando-se para a direita pela busca do prestígio e dos signos de
prestígio, como os diplomas e os títulos vindos das profissões liberais, e pelo
consumo de serviços e objetos indicadores de autoridade, riqueza, abundância,
ascensão social – a casa no “bairro nobre” com quatro suítes, o carro
importado, a roupa de marca etc. Em outras palavras, o consumo lhe aparece como
ascensão social em direção à classe dominante e como distância intransponível
entre ela e a classe trabalhadora. Esta, por sua vez, ao ter acesso ao consumo
de massa tende a tomar esse imaginário por realidade e a aderir a ele.
Se, pelas
condições atuais de sua formação, a nova classe trabalhadora brasileira está
cercada por todos os lados pelos valores e símbolos neoliberais difundidos pela
classe média, como desatar esse nó?
6. Para finalizar
Se a política
democrática corresponde a uma sociedade democrática e se no Brasil a sociedade
é autoritária, hierárquica, vertical, oligárquica, polarizada entre a carência
e o privilégio, só será possível dar continuidade a uma política democrática
enfrentando essa estrutura social. A ideia de inclusão social não é suficiente
para derrubar essa polarização. Esta só pode ser enfrentada se o privilégio for
enfrentado e este só será enfrentado por meio de quatro grandes ações
políticas: uma reforma tributária que opere sobre a vergonhosa concentração da
renda e faça o Estado passar da política de transferência de renda para a da
distribuição e redistribuição da renda; uma reforma política, que dê uma
dimensão republicana às instituições públicas; uma reforma social, que
consolide o Estado do bem-estar social como política do Estado e não apenas
como programa de governo; e uma política de cidadania cultural capaz de
desmontar o imaginário autoritário, quebrando o monopólio da classe dominante
sobre a esfera dos bens simbólicos e sua difusão e conservação por meio da classe
média.
Mas a ação do
Estado só pode ir até esse ponto. A continuidade da construção de uma sociedade
democrática só pode ser a práxis da classe trabalhadora e por isso é
fundamental que ela própria, como já o fez tantas outras vezes na história e
tão claramente no Brasil, nos anos 1980 e 1990, encontre, em meio às
adversidades impostas pelo modo de produção capitalista, caminhos novos de
organização, crie suas formas de luta e de expressão autônoma, seja o sujeito
de seu fazer.
Crônicas
paulistanas
Era a manhã de uma
quinta-feira, no “bairro nobre” de Higienópolis, em São Paulo. Pelas ruas, uma
passeata, alguns folhetos e cartazes: os moradores de classe média “alta” do
bairro puseram-se em movimento para impedir a construção de uma estação de metrô
em sua vizinhança, alegando que a presença cotidiana de trabalhadores em
trânsito traria violência, perigo, sujeira e crime, ameaçando a ordem e a
segurança da região.
Era um sábado à
noite. Nos aeroportos de Congonhas e Guarulhos, centenas de passageiros enfrentavam
uma situação caótica: voos atrasados, alguns cancelados, outros transferidos de
um setor para outro dos aeroportos, sem aviso prévio. Muita confusão. Uma
parcela dos passageiros, com valises estampando griffes famosas para marcar sua
posição de “alta” classe média, manifestou coletivamente seu profundo desagrado
e, aqui e acolá, ouvia-se o mesmo refrão: “é isto o presente de grego deste
governo. Entupiu os aeroportos com a gentalha que deveria estar nas estações
rodoviárias, onde é o seu lugar!”.
Era um domingo à
tarde. Precisei ir ao banco para fazer uma retirada de dinheiro
Para as despesas
da semana. Meu genro me deu uma carona, mas ao chegar à agência bancária não
lhe foi possível estacionar porque as três entradas para carros estavam obstruídas
por um enorme automóvel prateado, cujos vidros escuros impediam-nos de saber se
havia alguém ali. Desci no meio da rua e ao me dirigir ao banco voltei-me para
o veículo prateado e indaguei em voz bem alta, pois não sabia se, além de
escuros, impedindo a visão, os vidros também seriam blindados, impedindo a
entrada de algum som:
– Há alguém aí?
Vocês vão ao banco? Estão impedindo o estacionamento de outros carros!
Nenhuma resposta.
Entrei na agência
bancária e ia começar uma operação quando uma moça, toda faceira, vestida,
calçada e maquiada com todas as marcas grã-finas, se aproximou e gritou:
– Não tem
educação, não? Vai gritando assim pela rua? Retruquei:
– Você ocupou todo
o espaço disponível para o estacionamento dos carros e eu não sabia sequer se havia
alguém no seu carro.
Nesse exato
momento, entrou um homem (não tão moço quanto ela, mas também coberto de
griffes da alta moda) e gritou:
– Você pensa que
eu vou estacionar o meu Mercedes em qualquer lugar? Foi a conta. Do fundo das
minhas entranhas veio o brado:
– Você é o típico
representante da classe média paulistana! Fascista! Você é uma abominação
política!
Por alguns
segundos ele ficou sem ação, mas a moça não teve dúvidas: me bateu. Voltei-me
para ela:
– Você vai passar
da violência verbal para a violência física? Você é uma abominação ética!
Os dois se
entreolharam perplexos e ele retomou a iniciativa:
– Você é uma velha
feia!
Foi a sopa no mel.
Repliquei:
– A minha idade é
um fato da natureza, é um dado objetivo. Você não pode transformar um dado da
natureza num xingamento. Você é uma abominação cognitiva!
Os dois ficaram
imóveis por um momento e partiram sem dizer mais nada.
Na verdade, foram
derrotados naquilo em que, certamente, são sempre vitoriosos: seu intento,
típico de classe média, de fazer valer o “sabe com quem está falando?”. De
fato, suas falas procuraram automática e imediatamente estabelecer uma relação
de hierarquia, em que eles eram a parte superior e eu, a parte inferior do
pedaço: não tenho educação, não sei o valor de um Mercedes, devo mesmo apanhar
e sou uma velha feia diante de dois jovens (ele, nem tanto) elegantes e
bonitos. O intento era me inferiorizar e me humilhar, isto é, me pôr no meu
lugar. Afinal, o que é que estou pensando que sou?
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