sábado, 6 de julho de 2013

MOBILIZAÇÃO REFLETE NOVA COMPOSIÇÃO TÉCNICA DO TRABALHO IMATERIAL DAS METRÓPOLES. ENTREVISTA ESPECIAL COM GIUSEPPE COCCO



Não estamos diante da “falência da política. Ao contrário, trata-se da persistência da política! Diante de tudo que os partidos de esquerda fazem para fornecer munições ao velho discurso antidemocrático e moralista da elite, esses movimentos mostram que a política está viva, apesar dos Felicianos, dos Aldos, da tecnocracia neodesenvolvimentista e da corrupção”, avalia o cientista político.
Confira a entrevista.

Na tentativa de compreender as razões que levaram milhares de cidadãos brasileiros às ruas, o sociólogo Giuseppe Cocco, que estuda o conceito de multidão abordado pelo italiano Antônio Negri, elenca algumas possibilidades. Na avaliação dele, o ciclo de “revoluções 2.0”, com base na internet, “começa a ter uma duração consistente (de mais de 3 anos) e entrou no imaginário, na linguagem de gerações de jovens que não formam mais suas opiniões na imprensa, mas diretamente nas redes sociais”. Outro aspecto importante é o fato de jovens brasileiros só terem conhecido “o Brasil de Lula”. E dispara: “No Brasil, o PT e seu governo (e sua coalizão) pensavam estar blindados pelos recentes sucessos eleitorais (a eleição de Haddad, a reeleição quase plebiscitária do Paes, no Rio), por estar num ciclo econômico positivo e por ter achado que o sagrado graal do ‘novo modelo’ econômico seria, na realidade, reeditar o velho nacional-desenvolvimentismo, rebatizado de neodesenvolvimentismo”.
De acordo com Cocco, havia e há no Brasil “um sem número de movimentos de protesto e resistência, em particular por causa dos efeitos dos megaeventos, e hoje esses movimentos se juntaram, confluindo com a multidão da nova composição do trabalho metropolitano”.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, ele assinala que os protestos ganharam força a partir do Movimento Passe Livre porque “a questão dos transportes e, mais em geral, do serviços é estratégica para o trabalho metropolitano”.
E esclarece: “Os operários fordistas lutavam por salários e horários. Os trabalhadores imateriais têm como fábrica a metrópole e lutam pela qualidade de vida da qual dependerá a inserção deles em um trabalho que não é mais um emprego, mas uma ‘empregabilidade’. Os operários fordistas lutavam para reduzir a parte do horário que ia embutida como lucro nos carros que produziam; os trabalhadores imateriais nas metrópoles desviam os slogans publicitários de uma montadora (‘Vem Pra Rua’) para ressignificar os agenciamentos produtivos que se desenham na circulação”.
Giuseppe Cocco é graduado em Ciência Política pela Université de Paris VIII e pela Università degli Studi di Padova. É mestre em Ciência, Tecnologia e Sociedade pelo Conservatoire National des Arts et Métiers e em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne). É doutor em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne). Atualmente é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e editor das revistas Global BrasilLugar Comum e Multitudes. Coordena a coleção A Política no Império (Civilização Brasileira).
Confira a entrevista.

IHU On-Line – Manifestações sociais massivas descontentes com a política e a economia iniciaram no Oriente, na Espanha, em Wall Street. E agora chegam ao Brasil. Por quê? O que estas manifestações sociais representam?
Giuseppe Cocco – Podemos logo começar dizendo que o que caracteriza essas manifestações é que elas não representam exatamente nada ao passo que, por um tempo mais ou menos longo, elas expressam e constituem tudo. O primeiro elemento é este: elas têm uma dinâmica intempestiva, fogem a qualquer modelo de organização política (não apenas os velhos partidos ou os sindicatos, mas também o terceiro setor, as ONGs) e afirmam uma democracia radical articulada entre as redes e as ruas: autoconvocação e debates nas redes sociais, participação massiva às manifestações de rua, capacidade e determinação de enfrentar a repressão e até capacidade de construção e autogestão de espaços urbanos como foram a Praça Tahrir, as acampadas espanholas e as tentativas do Occupy Wall Street e, enfim, a Praça Taksim em Istambul, na Turquia. Para cada uma dessas ondas e dessas que chamamos de “primaveras”  houve um estopim específico, mas todas dispõem de uma mesma base social (por mais diferenciadas que sejam as trajetórias socioeconômicas dos diferentes países) e dos mesmos processos de subjetivação. No caso do Brasil, todo mundo sabe que o estopim foram os protestos contra o aumento do preço das passagens nos transportes públicos. Como foi o caso de outras marchas, a manifestação em São Paulo foi violentamente reprimida pela Polícia Militar. Só que dessa vez a faísca não se apagou numa “marcha da liberdade” e incendiou São Paulo e todo o país. Mas saber que o estopim foi esse não nos permite avançar na análise.
Por que agora? É difícil responder e talvez a característica própria desse tipo de movimento é que ninguém sabe propor razões “objetivas” indiscutíveis. Contudo, podemos avançar três explicações: a primeira explicação tem a forma de um segundo “estopim” e é a quase coincidência do episódio da repressão da marcha pelo passe livre em São Paulo com a renovação das primaveras árabes e do 15M espanhol nas lutas duríssimas da multidão turca na Praça Taksim, emIstambul (não por acaso, na segunda manifestação carioca, que já reunia 10 mil pessoas, um dos gritos era: “acabou a mordomia, o Rio vai virar uma Turquia”); uma segunda explicação está no fato que esse ciclo de “revoluções 2.0” começa a ter uma duração consistente (de mais de 3 anos) e entrou no imaginário, na linguagem de gerações de jovens que não formam mais suas opiniões na imprensa, mas diretamente nas redes sociais; a terceira explicação é mais consistente e a mais importante e diz respeito ao que são essas “novas gerações” no Brasil de hoje, ou seja, essas gerações de jovens que só conheceram o Brasil de Lula. O que é incrível e até irônico é que o próprio PT não tenha previsto isso e ainda hoje seja incapaz de enxergar esse dado importantíssimo.

IHU On-Line – Quais as aproximações e diferenças entre as manifestações brasileiras e as que vêm ocorrendo em outros países?
Giuseppe Cocco – As aproximações são mais importantes do que as diferenças, que apenas enfatizam a qualidade específica de cada evento.
Num primeiro nível, há em comum a articulação entre as redes e as ruas como processo de autoconvocação das marchas e manifestações que ninguém consegue representar, sequer as organizações que se encontraram no cerne da primeira chamada: a tentativa de “empoderar” os rapazes do Movimento pelo Passe Livre em São Paulo (“oficializados” pela presença no Roda Viva e a negociação com prefeitura e estado) mostrou que eles não controlam nem dirigem um movimento que se autorreproduz de maneira rizomática (as manifestações aconteciam ao mesmo tempo sem respeitar qualquer tipo de “trégua”).
Num segundo nível, há em comum o esgotamento da representação política. No Brasil, esse fenômeno foi totalmente subavaliado pela “esquerda” e, sobretudo, pelo PT porque não o entenderam (e não o entendem).
Inicialmente pensaram que fosse um problema das autocracias do Norte da África (Tunísia e Egito); depois que fosse a incapacidade dos socialistas espanhóis (PSOE) de responder de maneira soberana às injunções das agências internacionais de notação ou do Banco Central Europeu. Depois pensaram que o 15M espanhol não consegue encontrar uma nova dinâmica eleitoral ao passo que o partido de Beppe Grillo mostrou na Itália um fenômeno eleitoral totalmente novo e desgovernado.
Em seguida, pensaram que o Egito e a Tunísia foram normalizados eleitoralmente pelo islamismo conservador e aí aparece o levante turco contra o governo islâmico moderado.
No Brasil, o PT e seu governo (e sua coalizão) pensavam estar blindados pelos recentes sucessos eleitorais (a eleição de Haddad, a reeleição quase plebiscitária do Paes, no Rio), por estar num ciclo econômico positivo e por ter achado que o sagrado graal do “novo modelo” econômico seria, na realidade, reeditar o velho nacional-desenvolvimentismo, rebatizado de neodesenvolvimentismo. O que a esquerda como um todo, e o PT no Brasil não entenderam, é que a crise da representação é geral (mesmo que ela tenha sintomas e manifestações diferenciadas), e que os levantes da multidão no Egito, na Tunísia, na Espanha, na Turquia e agora no Brasil são a expressão, entre outras coisas, de uma recusa radical dessa maneira autorreferencial de pensar por parte dos governos e dos partidos políticos.
Num terceiro nível há a principal proximidade entre todos esses movimentos: a base social dessa produção de subjetividade é o novo tipo de trabalho que caracteriza o capitalismo cognitivo. As redes que protestam e se constituem nas ruas de MadriLisboaRomaAtenasIstambulNova York e agora de todas as cidades brasileiras são formadas pelo trabalho imaterial: estudantes, universitários, jovens precários, imigrantes, pobres, índios, ou seja a composição heterogênea do trabalho metropolitano. Não por acaso, por um lado, uma de suas formas principais de luta foi a “acampada” ou o “occupy” e, por outro, os levantes turco e brasileiro tiveram como estopim a defesa das formas de vida da multidão do trabalho metropolitano: a defesa do parque contra a especulação imobiliária (a construção de um shopping) em Istambul, e a luta contra o aumento do custo dos transportes, no caso do Brasil.
Diante dessas aproximações, as diferenças são bem menores, embora elas existam (e sejam até óbvias). Podemos apreender essas diferenças do ponto de vista das condições objetivas da cada país e do ponto de vista de como cada um desses movimentos foi transformando (ou não) a fase destituinte em momento constituinte. Assim, o 15M espanhol se apresenta como a experiência que mais conseguiu durar apesar de não ter revertido as políticas econômicas. As revoluções árabes foram normalizadas pelas vitórias eleitorais conservadoras, mas os levantes se tornam endêmicos.
Na Turquia e ainda mais no Brasil, não sabemos – literalmente – o que vai acontecer. É no plano das condições objetivas que encontramos a maior diferença: na Espanha e, em geral, no mediterrâneo as revoluções são marcadas pelos processos de “desclassificação” das classe médias. No Brasil é exatamente o contrário: tudo isso acontece no âmbito e no momento da emergência da “nova classe média”. Só que essa nova composição de classe é, na realidade, a nova composição do trabalho metropolitano, lutando pelos parques ou pelos transportes públicos: ascendendo socialmente, os pobres brasileiros se tornam o que as classes médias europeias se tornam, descendo: a nova composição técnica do trabalho imaterial das metrópoles.

IHU On-Line – Além do aumento do preço das passagens, quais são os outros motivos que desencadearam as manifestações?
Giuseppe Cocco – Podemos elencar duas respostas. A primeira é a seguinte: se pensarmos bem, essa pergunta encontra sua resposta numa sua simples reformulação: “por que nas cidades e metrópoles brasileiras não há mais lutas e mais levantes pelo sem número de motivos que a justificariam?"
No Brasil, não faltam razões! Uma vez que “pegou” é só escolher, a lista é infinita.
Vou trazer apenas um exemplo, contando uma anedota: um dia fui assistir a um Fórum da UPP Social (que hoje não existe mais) em duas favelinhas da Zona Norte, bem precárias. Toda a parafernália dos governos estadual e municipal estava mobilizada, com seus carros de função, para dar sentido à pacificação. Os poucos moradores que falaram colocaram dois problemas essenciais: primeiro, disseram, vivemos no meio do esgoto; segundo, os policiais agem de maneira violenta e arbitrária.
As dezenas de secretários e outros servidores presentes não conseguiram dizer nada sobre como seria resolvido esse problema básico do saneamento. Saindo da favelinha, passei por uma centena de adolescentes que ficava sem fazer nada na entrada e, no caminho de volta ao Centro do Rio, a 5 minutos de carro, passei na frente de uma obra gigantesca, faraônica: o Maracanã!
A pergunta de cima encontra uma resposta bem igual a que colocava Keynes em 1919: “nem sempre as pessoas aceitam morrer em silêncio”. Havia no Rio de Janeiro e no Brasil (e continua havendo) um sem número de movimentos de protesto e resistência, em particular por causa dos efeitos dos megaeventos, e hoje esses movimentos se juntaram, confluindo com a multidão da nova composição do trabalho metropolitano. No Rio, os manifestantes sempre se juntam para dirigir invectivas pesadas ao governador Sergio Cabral e ao prefeito Eduardo Paes.
Chegamos assim à segunda resposta: o movimento foi mesmo pelos 0,20 centavos! Só que esse “pouco” é na realidade “muito”. Por quê? Porque a questão dos transportes e, mais em geral, dos serviços é estratégica para o trabalho metropolitano. Os operários fordistas lutavam por salários e horários. Os trabalhadores imateriais têm como fábrica a metrópole e lutam pela qualidade de vida da qual dependerá a inserção deles em um trabalho que não é mais um emprego, mas uma “empregabilidade”.
Os operários fordistas lutavam para reduzir a parte do horário que ia embutida como lucro nos carros que produziam; os trabalhadores imateriais nas metrópoles desviam os slogans publicitários de uma montadora (“Vem Pra Rua”) para ressignificar os agenciamentos produtivos que se desenham na circulação. Os operários fordistas lutavam contra o trabalho. Os trabalhadores imateriais lutam no terreno da produção de subjetividade. É na circulação que a subjetividade se produz e produz valor e renda.

IHU On-Line – Os manifestantes deixam claro que são apartidários, não querem violência e não têm lideranças. Como interpreta esse discurso? Como pensar um novo modelo político a partir dessas características?
Giuseppe Cocco – Com certeza, uma das dimensões constitutivas da Revolução 2.0 é a crise da representação e essa é uma questão central. Precisamos lembrar que a antecipação da revolução 2.0 como crítica radical da representação é sul-americana. O “Que se vayan todos” argentino antecipou em 10 anos o “No nos representan” espanhol. Só que as dimensões dessa crise são processadas pelo discurso oficial – ou seja, partidário – de maneira invertida. E essa inversão não é por acaso. Aliás, os últimos desdobramentos do movimento (as agressões contra os partidos de esquerda nas manifestações do dia 20 de junho) nos mostram muito bem como funciona essa inversão.
Os partidos (sobretudo aqueles que estão no governo) dizem que esses movimentos são limitados porque recusam os partidos, não são “orgânicos”, porque têm uma “ideologia” que os recusa e, portanto, são potencialmente antidemocráticos. Obviamente, isso é correto. Só que, a afirmação correta esconde duas belas falsificações.
primeira também é óbvia: os “grupos” que rezam por uma crítica fundamentalista da representação têm pouca consistência social e nenhuma capacidade de determinar, sequer influenciar, movimentos desse tamanho.
segunda falsificação é uma consequência dessa primeira: os partidos atribuem a crise da representação a um processo e a uma crítica que viria de fora, quando na realidade os maiores e únicos responsáveis dessa crise são eles!
E a responsabilidade está na indiferenciação da clivagem direita/esquerda, ou seja, no fato de os governos mudarem e continuarem fazendo as mesmas coisas, inclusive com a reciclagem das mesmas figuras políticas. Assim, o PSOEespanhol atribuiu ao 15M sua derrota eleitoral, quando na realidade o 15M é apenas a consequência do fato que os socialistas espanhóis faziam a mesma política econômica da direita. É exatamente o que acabou acontecendo no Brasil de Lula e, sobretudo, de Dilma. O movimento que nasceu com a luta contra o aumento recusa as dimensões autoritárias e arrogantes das coalizões e desses consensos que reúnem direita e esquerda na reprodução dos interesses de sempre.
É o Haddad que devia representar o novo e se apresenta junto ao Alckmin para juntos dizerem a mesma coisa: que a redução da tarifa terá um custo (sic!). É a coalizão conservadora que governa o estado e a prefeitura do Rio, e onde o PT planeja e executa remoções de pobres, desrespeitando a própria LOM. São as alianças espúrias com os ruralistas de um ministro de esquerda. É a condução autoritária das megaobras e dos megaeventos. É a entrega da Comissão de Direitos Humanos da Câmara a um fundamentalista que, exatamente no dia seguinte da grande manifestação da segunda-feira, fez votar o projeto de Lei que define a homossexualidade como uma doença.
A esquerda e a incapacidade
A extrema esquerda ou a esquerda radical erram quando pensam que estão “salvas” dessa situação. Os partidos de esquerda são incapazes de entender que esse movimento se forma na recusa – confusa, flutuante, ambígua e até perigosa – do partido, da organização separada, da bandeira. Isso porque a recusa é geral, não faz distinções e funciona como rejeição de qualquer plataforma ideológica preparada e determinada por lógicas de aparelhos separados: nisso há uma percepção de que um dos problemas da política é a construção de aparelhos que tendem – antes de tudo – a reproduzir a si mesmos.
A agressão de um grupo organizado ao bloco de bandeiras do PSTU, do PSOL e do PCB na marcha da quinta feira, 20 de junho, quebrou as ilusões de que a crise seria somente do PT e assustou todo o mundo. Contudo, nesse episódio lamentável encontramos, mais uma vez, o funcionamento perverso da lógica da representação. Os grupos agressores eram claramente organizados e tinham esses objetivos tão claramente quanto o processo de organização indica as manipulações mais podres. Todas as análises e denúncias que imediatamente foram produzidas identificaram esses grupos (que claramente agiam a mando de algum desenho de provocar essa situação) com a manifestação em geral.
Sem partidos
Na realidade, o apoio genérico dos jovens à palavra de ordem “sem partidos!” não tem nenhuma significação linear e ainda menos “fascista”. Paradoxalmente, a recusa dos partidos, inclusive dos “radicais” e de suas bandeiras, é a recusa – claro, confusa e contraditória – da homologação de direita e esquerda e uma demanda para uma “verdadeira esquerda”. Essa demanda não é idealista e não pode ser travada com linguagens e símbolos obsoletos (as bandeiras vermelhas, por exemplo). Para reerguer as bandeiras vermelhas, é preciso deixá-las em casa por um bom momento! A bandeira vermelha precisa abandonar sua dimensão ideal e transcendente (ou seja, vazia) e voltar a ser interna (imanente) às linguagens das lutas como eles são. Nesse terreno é possível e necessário construir outra representação e, sobretudo, reforçar a democracia.

IHU On-Line – O senhor publicou recentemente no Twitter que “as lutas da multidão em São Paulo e no Rio são o melhor resultado dos governos Lula. Tão bom que ninguém no PT foi capaz de antecipar”. Pode nos explicar essa ideia? Trata-se da falência da política?
Giuseppe Cocco – Começando do final: não estamos diante da “falência da política. Ao contrário, trata-se da persistência da política! Diante de tudo que os partidos de esquerda fazem para fornecer munições ao velho discurso antidemocrático e moralista da elite, esses movimentos mostram que a política está viva, apesar dos Felicianos, dos Aldos, da tecnocracia neodesenvolvimentista e da corrupção! Ser contra o moralismo da direita não significa achar “graça” nos comportamentos imorais da esquerda no poder. Trata-se apenas de não cair nas armadilhas da direita, mas num esforço de conjunção ética dos fins e dos meios.
Esse movimento, qualquer seja seu desfecho, é o movimento da multidão do trabalho metropolitano, o mais puro produto dos 10 anos de governo do PT. Vamos aprofundar e esclarecer essa afirmação em dois momentos. Num primeiro momento, essa afirmação é uma valoração positiva dos governos Lula e Dilma. Uma avaliação positiva não porque tenham sido de “esquerda” ou socialistas, mas porque eles se deixaram atravessar – sem querer – por ume série de linhas de mudança: políticas de acesso, cotas de cor, políticas sociais, criação de empregos, valorização do salário mínimo, expansão do crédito.
A esquerda radical julgava essas políticas exatamente como agora – ironicamente nesse caso até o PT – julgam a questão das “bandeiras”: idealmente. “Lula está implementando outro modelo, outra sociedade, socialista?” se perguntava e criticava. Ora, ninguém implementa modelo alternativo, mesmo quando se está no governo. Apenas pode ter a sensibilidade de apreender as dinâmicas reais que, na sociedade, poderão amplificar-se e produzir algo novo.
Os governos Lula e Dilma associaram o governo da interdependência na globalização com a produção, tímida e real, de uma nova geração de direitos e de inclusão produtiva. Estatisticamente, isso se traduziu na mobilidade ascendente dos níveis de rendimento de mais de 50 milhões de brasileiros e pela entrada de novas gerações nas escolas técnicas e universidades. Lula não quis saber de bandeiras e até declarou que ele “nunca tinha sido socialista”. Ficou dentro da sociedade indo atrás das linguagens, dos símbolos e das políticas que entendia.
Na virada da década de 2010, esse processo se consolidou em dois fenômenos maiores: o primeiro é eleitoral e tem o nome de “lulismo”, ou seja, a capacidade que Lula tem de ganhar e, sobretudo, fazer ganhar eleições majoritárias: começando pela presidente Dilma e chegando ao prefeito Haddad; o segundo é o regime discursivo da emergência de uma “nova classe média”, com base nos trabalhos do economista Marcelo Neri. Com a crise do capitalismo global (2007-2008) e a chegada de Dilma ao poder, o discurso da “nova classe média” foi além das preocupações do marketing eleitoral, para tornar-se a base social de uma virada que vê, no papel do Estado junto das grandes empresas, o alfa e o ômega de um novo modelo desenvolvimentista (neodesenvolvimentista).
Economia
Sociologicamente, o objetivo do neodesenvolvimentismo é transformar os pobres em “classe média”, e para isso é preciso economicamente de um Brasil Maior, capaz de se reindustrializar. O governo Dilma chegou a baixar os juros e multiplicou os subsídios às indústrias produtoras de bens de consumo duráveis, em particular de carros, e à construção civil. O que o movimento afirmou e certificou foi a dimensão ilusória desse suposto modelo (isso não significa que o modelo não será implementado; significa apenas que ele perdeu a patina de consenso que o legitimava e deverá apresentar-se como cada vez mais autoritário). No plano macroeconômico, a inflexão tecnocrática não deu muito certo, pois a tentativa de mexer nos juros resultou na volta da inflação dos preços (que está na base da revolta). A inflação dos juros e aquelas dos preços se reapresentaram como as duas faces de um impasse renovado que só uma mobilização produtiva (da qual não há sinal) pode resolver .
Nova classe média não existe
No plano sociológico, a “nova classe média” não existe, porque o que se constitui é uma nova composição social cujas características técnicas são de trabalhar diretamente nas redes de circulação e serviços da metrópole. A figura econômica (a “média” da faixa de renda) esconde o conteúdo sociológico de uma inclusão produtiva que não passa mais pela prévia implementação na relação salarial. Esse trabalho dos incluídos enquanto excluídos é um trabalho de tipo diferente: ele é precarizado (do ponto de vista da relação de emprego); imaterial (do ponto de vista que depende da recomposição subjetiva e comunicativa do trabalho manual e intelectual) e terciário (do ponto de vista da cadeia produtiva, aquela dos serviços).
A qualidade da inserção produtiva desse trabalho depende diretamente dos direitos prévios aos quais têm acesso e que, ao mesmo tempo, ele produz, como, por exemplo, poder circular pela metrópole. É exatamente essa composição técnica e social do trabalho metropolitano o que constitui a outra face da “nova classe média” oriunda do período Lula. Ao mesmo tempo em que ela foi a base eleitoral das sucessivas derrotas do neoliberalismo, ela é também hoje, na sua recomposição política, a oposição ao neodesenvolvimentismo. Para ela, a questão da mobilidade urbana tem a mesma dimensão que tinha o salário para os operários ao mesmo tempo em que o segmento estratégico é aquele dos serviços.
As cidades e metrópoles brasileiras – e não a reindustrialização – constituem o maior gargalo, ao mesmo tempo social, político e econômico. A ideologia e a coalizão de interesses que estão com a presidente Dilma não mostraram, até agora, a menor capacidade de enxergar esse dado. Mais do que isso, essa nova composição do trabalho imaterial e metropolitano produz, a partir de formas de vida, outras formas de vida. Por isso, o movimento do passe livre, como aquele de Istambulque defendia um parque, foi juntando todos os focos de resistência que existem nas metrópoles, até se espalhar – como está fazendo nesse momento, dramaticamente e assustadoramente – pelas periferias onde nunca teve manifestação de massa nenhuma.
O que esse “levante” da multidão do trabalho imaterial nos mostra é que o “legado” destes últimos dez anos de governo está em disputa, e que o mais interessante é ficar por dentro dessas alternativas, em vez de querer colocar uma ou outra bandeira. A política e os movimentos estão dentro e contra. Por exemplo, pensemos a questão dos megaeventos, das copas e olimpíadas. Muitos dos focos de resistência nas metrópoles são movimentos que criticam os gastos com obras, estádios, favelas que resistem contra as remoções etc. Ao mesmo tempo, a possibilidade de o movimento ter acontecido sem uma repressão brutal, por enquanto, se deve também à Confederation Cup. Mais uma vez, o conflito é dentro e contra.

IHU On-Line – O que é possível vislumbrar para o cenário político a partir das manifestações?
Giuseppe Cocco – Creio que o evento é tão potente e imprevisto que ninguém saberá responder a essa pergunta. Sobretudo neste momento: a cada dia e talvez a cada hora mudam alguns dados fundamentais. O que podemos dizer é que o cenário eleitoral de 2014 até 2018 estava desenhado e as variáveis vislumbradas eram aquelas macroeconômicas. O movimento se convidou para essa discussão. Só que não há ninguém que possa sentar nessa eventual mesa dizendo que o representa.
A terra tremeu e continua tremendo, só que a fumaça levantada não nos deixa ainda ver quais prédios cairão e quais ficarão em pé. Nesse cenário, podemos fazer duas conjeturas.
Numa primeira, a presidente Dilma pode abrir pela esquerda, por exemplo, com uma reforma ministerial que colocaria pessoas qualificadas e altamente progressistas em ministérios-chave como a Justiça, Cidade e Transportes, MinC e Educação, convocando a sociedade a se constituir – em todos os níveis possíveis – em assembleias participativas para discutir as urgências metropolitanas.
Na segunda (que me parece ser aquela anunciada pelo pronunciamento do dia 21 de junho), ela se limita a reconhecer a existência de outra composição social no movimento e a construção de um grande pacto sobre os serviços públicos, mas não anuncia nada de novo a não ser algumas bandeiras de longo prazo (a destinação de 100% dos royalties do petróleo para a educação) e enfatiza a questão da ordem: repressão dos “violentos” e respeito pelos megaeventos (ou seja, mais repressão). E isso depois dos fatos bem sombrios da quinta-feira (aparição desses grupos pagos para agredir os partidos e, no Rio, repressão generalizada da manifestação perseguindo a centenas de milhares de participantes durante toda a dispersão).
O cenário que vislumbro é pessimista: parece-me que boa parte dos militantes de esquerda está caindo na armadilha das “bandeiras”, e que isso acabará por realmente entregar o movimento à direita e, por cima, haverá repressão, eventualmente também das opiniões. Nesse cenário muito provável, para salvar a si mesmos e evitar uma renovação geral, as burocracias e outros fisiologismos encastelados nos diferentes governos e coalizões, estão destruindo as possibilidades de uma grande renovação da esquerda e levando todo o mundo de roldão no buraco que será o resultado eleitoral de 2014. Mas quero muito estar errado. Se for verdade que estou errado, serão as lutas da multidão que o dirão e o cenário que elas têm de enfrentar é muito, muito complexo.


COLÓQUIO INTERNACIONAL MARX E O MARXISMO 2013


quinta-feira, 4 de julho de 2013

UMA NOVA CLASSE TRABALHADORA



Marilena Chauí

1. Surpresas

Alguém que, nos anos 1950 e 1960, conhecesse as terríveis condições de vida e de trabalho das classes populares brasileiras e, naquela época, tivesse viajado por uns tempos pela Europa, seria duplamente surpreendido. Primeira surpresa: veria operários dirigindo pequenos carros (na França, o famoso “dois cavalos” da Renault; na Inglaterra, o “biriba” da Morris; na Itália, o Cinquecento da Fiat), passando as férias com a família (em geral em alguma praia), fazendo compras em lojas de departamento populares (na França, o Prixunic; na Inglaterra, o Woolworths e a C&A), enviando os filhos a creches públicas e, quando maiores, à escola pública de primeiro e segundo graus, às escolas técnicas e mesmo às universidades. Também veria que os trabalhadores tinham direito, assim como suas famílias, a hospitais públicos e medicamentos gratuitos e, evidentemente, possuíam casa própria. Era a Europa do período fordista do capitalismo industrial, portanto da linha de montagem e fabricação em série de produtos cujo custo barateado permitia o consumo de massa. Mas era, sobretudo, a Europa da economia keynesiana, quando as lutas anteriores dos trabalhadores organizados haviam levado à eleição de governantes de centro ou de esquerda e ao surgimento do Estado do Bem-Estar Social, no qual uma parte considerável do fundo público era destinada, sob a forma de salário indireto, aos direitos sociais, reivindicados e, agora, conquistados pelas lutas dos trabalhadores. Segunda surpresa: a diferença profunda entre, por exemplo, a situação dos trabalhadores suecos – desde os salários e direitos sociais até os direitos culturais – e a dos espanhóis, portugueses e gregos, ainda submetidos a ditaduras fascistas e forçados a emigrar para o restante da Europa em busca de melhores condições de vida e de trabalho.
Entretanto, não passaria pela cabeça de ninguém dizer que os trabalhadores europeus haviam ascendido à classe média. Curiosamente, é o que se diz hoje dos trabalhadores brasileiros, após dez anos de políticas contrárias ao neoliberalismo.

2. A catástrofe neoliberal

Diante da classe trabalhadora que descrevemos acima, não foi por acaso, em meados dos anos 1970, quando o déficit fiscal do Estado e a estagflação abriram uma crise no capitalismo, que os ideólogos conservadores ofereceram uma suposta explicação para ela: a crise, disseram eles, foi causada pelo poder excessivo dos sindicatos e dos movimentos operários, que pressionaram por aumentos salariais e exigiram o aumento dos encargos sociais do Estado. Teriam, dessa maneira, destruído os níveis de lucro requeridos pelas empresas, desencadeado processos inflacionários incontroláveis e provocado o aumento colossal da dívida pública.
Feito o diagnóstico, também ofereceram o remédio: um Estado forte para quebrar o poder dos sindicatos e movimentos populares, controlar o dinheiro público e cortar drasticamente os encargos sociais e os investimentos na economia, tendo como meta principal a estabilidade monetária por meio da contenção dos gastos sociais e do aumento da taxa de desemprego para formar um exército industrial de reserva que acabasse com o poderio das organizações trabalhadoras. Tratava-se, portanto, de um Estado que realizasse uma reforma fiscal para incentivar os investimentos privados, reduzindo os impostos sobre o capital e as fortunas e aumentando os impostos sobre a renda individual e, assim, sobre o trabalho, o consumo e o comércio. Finalmente, um Estado que se afastasse da regulação da economia, privatizando as empresas públicas e deixando que o próprio mercado operasse a desregulação, ou, traduzindo em miúdos, a abolição dos investimentos estatais na produção e do controle estatal sobre o fluxo financeiro, a drástica legislação antigreve e o vasto programa de privatização. Pinochet, no Chile, Thatcher, na Grã-Bretanha, e Reagan, nos Estados unidos, tornaram-se a ponta de lança política desse programa.
Com o encolhimento do espaço público dos direitos e a ampliação do espaço privado dos interesses de mercado, nascia o neoliberalismo, cujos traços principais podem ser assim resumidos:

1. A desativação do modelo industrial de tipo fordista, baseado no planejamento, na funcionalidade e no longo prazo do trabalho industrial, com a centralização e verticalização das plantas industriais, grandes linhas de montagens concentradas num único espaço, formação de grandes estoques orientados pelas ideias de qualidade e durabilidade dos produtos, e numa política salarial articulada ao Estado (o salário direto articulado ao salário indireto, isto é, aos benefícios sociais assegurados pelo Estado). Em contrapartida, no neoliberalismo, a produção opera por fragmentação e dispersão de todas as esferas e etapas do trabalho produtivo, com a compra e venda de serviços no mundo inteiro, isto é, com a terceirização e precarização do trabalho. Desarticulam-se as formas consolidadas de negociação salarial e se desfazem os referenciais que permitiam à classe trabalhadora perceber-se como classe e lutar como classe social, enfraquecendo-se ao se dispersar nas pequenas unidades terceirizadas, de prestação de serviços, no trabalho precarizado e na informalidade, que se espalharam pelo planeta. Desponta uma nova classe trabalhadora cuja composição e definição ainda estão longe de ser compreendidas.

2. O desemprego torna-se estrutural, deixando de ser acidental ou expressão de uma crise conjuntural, porque a forma contemporânea do capitalismo, ao contrário de sua forma clássica, não opera por inclusão de toda a sociedade no mercado de trabalho e de consumo, mas por exclusão, que se realiza não só pela introdução ilimitada de tecnologias de automação, mas também pela velocidade da rotatividade da mão de obra, que se torna desqualificada e obsoleta muito rapidamente em decorrência da velocidade das mudanças tecnológicas. Como consequência, tem-se a perda de poder dos sindicatos, das organizações e movimentos populares e o aumento da pobreza absoluta.

3. O deslocamento do poder de decisão do capital industrial para o capital financeiro, que se torna o coração e o centro nervoso do capitalismo, ampliando a desvalorização do trabalho produtivo e privilegiando a mais abstrata e fetichizada das mercadorias, o dinheiro, porém não como mercadoria equivalente para todas as mercadorias, mas como moeda ou expressão monetária da relação entre credores e devedores, provocando, assim, a passagem da economia ao monetarismo. Essa abstração transforma a economia no movimento fantasmagórico das bolsas de valores, dos bancos e financeiras – fantasmagórico porque não operam com a materialidade produtiva e sim com signos, sinais e imagens do movimento vertiginoso das moedas.

4. No Estado do Bem-Estar Social, a presença do fundo público sob a forma do salário indireto (os direitos econômicos e sociais) desatou o laço que prendia o capital à força de trabalho (ou ao salário direto). Esse laço era o que, tradicionalmente, forçava a inovação técnica pelo capital a ser uma reação ao aumento real de salário1 e, ao ser desatado, três consequências se impuseram: a) o impulso à inovação tecnológica tornou-se praticamente ilimitado, provocando expansão dos investimentos e agigantamento das forças produtivas cuja liquidez é impressionante, mas cujo lucro não é suficiente para concretizar todas as possibilidades tecnológicas, exigindo o financiamento estatal; b) o desemprego passou a ser estrutural não só pela introdução ilimitada de tecnologias de automação, mas também pela velocidade da rotatividade da mão de obra, que se torna desqualificada e obsoleta muito rap idamente em decorrência da velocidade das mudanças tecnológicas, ampliando a fragmentação da classe trabalhadora e diminuindo o poder de suas organizações; c) o aumento do setor de serviços também se torna estrutural, deixando de ser um suplemento à produção, visto que, agora, sob a designação de tecnociência, a ciência e a tecnologia tornaram-se forças produtivas, deixando de ser mero suporte do capital para se converter em agentes de sua acumulação; com isso, mudou o modo de inserção social do conhecimento científico e técnico, de maneira que cientistas e técnicos se tornaram agentes econômicos diretos. A força e o poder capitalistas encontram-se no monopólio dos conhecimentos e da informação.

5. A transnacionalização da economia reduz a importância da figura do Estado nacional como enclave territorial para o capital e dispensa as formas clássicas do imperialismo – colonialismo político-militar, geopolítica de áreas de influência etc. –, de sorte que o centro econômico, jurídico e político planetário encontra-se no Fundo Monetário Internacional (FMI) e no Banco Mundial, que operam com um único dogma: estabilidade monetária e corte do déficit público.

6. A distinção entre países de Primeiro e terceiro Mundo tende a ser acrescida com a existência, em cada país, de uma divisão entre bolsões de riqueza absoluta e de miséria absoluta, isto é, a polarização de classes surge como polarização entre a opulência absoluta e a indigência absoluta.

3. A mudança a caminho

Em política, há ações e acontecimentos com força para se tornar simbólicos. é assim que podemos contrapor dois momentos simbólicos que marcaram a política brasileira entre 1990 e 2002: o primeiro nos leva de volta ao “bolo de noiva”, que inaugurou a era Collor; o segundo, à pergunta singela feita pelo recém-eleito presidente da república aos âncoras do Jornal nacional da Rede Globo, na noite de 28 de outubro de 2002.
No final da campanha presidencial de 1989 e na fase de transição entre novembro de 1989 e janeiro de 1990, um fato novo marcou a política brasileira: em primeiro plano, tanto nos discursos como nos debates e na prática, veio a economista Zélia Cardoso de Melo com sua equipe técnica. As decisões fundamentais partiam desse grupo, que se reunia em Brasília num edifício apelidado “bolo de noiva” e de lá vieram medidas econômicas que definiram o governo de Fernando Collor, no qual o discurso político foi suplantado pelo técnico-econômico. Neste, surgia, imperial, uma nova figura: o mercado, cuja fantasmagoria só entraria em pleno funcionamento no período de 1994 a 2002, quando a população brasileira passou a ouvir curiosas expressões, tais como “os mercados estão nervosos”, “os mercados estão agitados”, “os mercados se acalmaram”, “os mercados não aprovaram”, como se “os mercados” fossem alguém!
Na noite de 28 de outubro de 2002, no final do Jornal nacional da Rede Globo de televisão, quando os âncoras falavam sobre as cotações das bolsas de valores, do dólar e do real, e sobre a agitação e calmaria dos “mercados”, o presidente da República eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, que estava sendo entrevistado, perguntou com um sorriso levemente irônico: “Vocês não têm outros assuntos? Cadê a fome, o desemprego, a miséria, a desigualdade social?”. Essa indagação singela, unida ao pronunciamento feito algumas horas antes, anunciando a criação da Secretaria de Emergência Social, cuja prioridade era o combate à fome, demarcou simbolicamente o novo campo da política no Brasil: os direitos civis, econômicos e sociais são prioritários e comandam as ações técnico-econômicas, pois a democracia é a única forma política em cujo núcleo está a ideia de direitos, tanto de sua criação pela sociedade, como de sua garantia e conservação pelo Estado.
O “bolo de noiva” simbolizou a entrada do país no modelo neoliberal. O pronunciamento e a pergunta do novo presidente da república simbolizaram a decisão de sair desse modelo.
Entre esses dois momentos, intercalam-se os governos de Fernando Henrique Cardoso, que tornaram esse modelo hegemônico ao realizar a chamada reforma e modernização do Estado, isto é, a adoção do neoliberalismo como princípio definidor da ação estatal (privatização dos direitos sociais, convertidos em serviços vendidos e comprados no mercado, privatização das empresas públicas, direcionamento do fundo público para o capital financeiro etc.). Para legitimar essa decisão política, foram mobilizadas as duas grandes ideologias contemporâneas: a da competência e a da racionalidade do mercado.
A ideologia da competência afirma que aqueles que possuem determinados conhecimentos têm o direito natural de mandar e comandar os que supostamente são ignorantes, de tal maneira que a divisão social das classes aparece como divisão entre dirigentes competentes e executantes que apenas cumprem ordens. Essa ideologia, dando enorme destaque à figura do “técnico competente”, tem a peculiaridade de esquecer a essência mesma da democracia, qual seja, a ideia de que os cidadãos têm direito a todas as informações que lhes permitam tomar decisões políticas porque são todos politicamente competentes para opinar e deliberar, e que somente após a tomada de decisão política há de se recorrer aos técnicos, cuja função não é deliberar nem decidir, mas implementar da melhor maneira as decisões políticas tomadas pelos cidadãos e por seus representantes.
Por sua vez, a ideologia neoliberal afirma que o espaço público deve ser encolhido ao mínimo enquanto o espaço privado dos interesses de mercado deve ser alargado, pois considera o mercado portador de racionalidade para o funcionamento da sociedade. Ela se consolidou no Brasil com o discurso da modernização, no qual modernidade significava apenas três coisas: enxugar o Estado (entenda-se: redução dos gastos públicos com os direitos sociais), importar tecnologias de ponta e gerir os interesses da finança nacional e internacional.
Essa ideologia propagou-se pela vida cotidiana brasileira, bastando observar o que acontecia nos noticiários dos meios de comunicação. As cotações das bolsas de valores do mundo inteiro, assim como as das moedas, o comportamento do FMI, do Banco Mundial e dos bancos privados passaram para as primeiras páginas dos jornais, para o momento “nobre” dos noticiários de rádio e televisão, alguns canais chegando mesmo a manter na tela faixas com a variação das cotações das bolsas de valores e das moedas minuto por minuto. A subida ou descida do valor do dólar, do euro e do real, o “risco Brasil”, as falas dos dirigentes do FMI, do Banco Central norte-americano, dos economistas ingleses, franceses e alemães passaram a ocupar o lugar de honra e, nos noticiários matinais, a exibição cotidiana da abertura do pregão da bolsa de valores em Wall Street assumiu a aparência de uma oração ou de uma missa, rivalizando com o que, no mesmo horário, se passava nas rádios e canais de televisão propriamente religiosos.
Ora, o neoliberalismo não é, de maneira nenhuma, a crença na racionalidade do mercado e o enxugamento do Estado, e sim a decisão de cortar o fundo público no polo de financiamento dos bens e serviços públicos (isto é, dos direitos sociais) e maximizar o uso da riqueza pública nos investimentos exigidos pelo capital. A compreensão dessa verdade veio expressar-se na decisão dos eleitores de fazer valer a reivindicação por uma nova forma de gestão do fundo público, na qual a bússola é a defesa dos direitos sociais.

4. Uma nova classe trabalhadora brasileira

Estudos, pesquisas e análises mostram que houve uma mudança profunda na composição da sociedade brasileira, graças aos programas governamentais de transferência da renda, inclusão social e erradicação da pobreza, à política econômica de garantia do emprego e elevação do salário mínimo, à recuperação de parte dos direitos sociais das classes populares (sobretudo alimentação, saúde, educação e moradia), à articulação entre esses programas e o princípio do desenvolvimento sustentável e aos primeiros passos de uma reforma agrária que permita às populações do campo não recorrer à migração forçada em direção aos centros urbanos.
De modo geral, utilizando a classificação dos institutos de pesquisa de mercado e da sociologia, costuma-se organizar a sociedade numa pirâmide seccionada em classes designadas como A, B, C, D e E, tomando como critério a renda, a propriedade de bens imóveis e móveis, a escolaridade e a ocupação ou profissão. Por esse critério, chegou-se à conclusão de que, entre 2003 e 2011, as classes D e E diminuíram consideravelmente, passando de 96,2 milhões de pessoas a 63,5 milhões; já no topo da pirâmide houve crescimento das classes A e B, que passaram de 13,3 milhões de pessoas a 22,5 milhões. A expansão verdadeiramente espetacular, contudo, ocorreu na classe C, que passou de 65,8 milhões de pessoas a 105,4 milhões. Essa expansão tem levado à afirmação de que cresceu a classe média brasileira, ou melhor, de que teria surgido uma nova classe média no país.
Sabemos, entretanto, que há outra maneira de analisar a divisão social das classes, tomando como critério a forma da propriedade. No modo de produção capitalista, a classe dominante é proprietária privada dos meios sociais de produção (capital produtivo e capital financeiro); a classe trabalhadora, excluída desses meios de produção e neles incluída como força produtiva, é proprietária da força de trabalho, vendida e comprada sob a forma de salário. Marx falava em pequena burguesia para indicar uma classe social que não se situava nos dois polos da divisão social constituinte do modo de produção capitalista. A escolha dessa designação decorria de dois motivos principais em primeiro lugar, para afastar-se da noção inglesa de middle class, que indicava exatamente a burguesia, situada entre a nobreza e a massa trabalhadora; em segundo, para indicar, por um lado, sua proximidade social e ideológi ca com a burguesia, e não com os trabalhadores, e, por outro, indicar que, embora não fosse proprietária privada dos meios sociais de produção, poderia ser proprietária privada de bens móveis e imóveis. Numa palavra, encontrava-se fora do núcleo central do capitalismo: não era detentora do capital e dos meios sociais de produção e não era a força de trabalho que produz capital; situava-se nas chamadas profissões liberais, na burocracia estatal (ou nos serviços públicos) e empresarial (ou na administração e gerência), na pequena propriedade fundiária e no pequeno comércio.
É a sociologia, sobretudo a de inspiração estadunidense, que introduz a noção de classe média para designar esse setor socioeconômico, empregando, como dissemos acima, os critérios de renda, escolaridade, profissão e consumo, a pirâmide das classes A, B, C, D e E, e a célebre ideia de mobilidade social para descrever a passagem de um indivíduo de uma classe para outra.
Se abandonarmos a descrição sociológica, se ficarmos com a constituição das classes sociais no modo de produção capitalista (ainda que adotemos a expressão “classe média”), se considerarmos as pesquisas que mencionamos ao iniciar este texto e os números que elas apresentam relativos à diminuição e ao aumento do contingente nas três classes sociais, poderemos chegar a algumas conclusões:

1. Os projetos e programas de transferência de renda e garantia de direitos sociais (educação, saúde, moradia, alimentação) e econômicos (aumento do salário mínimo, políticas de garantia do emprego, salário-desemprego, reforma agrária, cooperativas da economia solidária etc.) indicam que o que cresceu no Brasil foi a classe trabalhadora, cuja composição é complexa, heterogênea e não se limita aos operários industriais e agrícolas.

2. O critério dos serviços como definidor da classe média não se mantém na forma atual do capitalismo porque a ciência e as técnicas (a chamada tecnociência) se tornaram forças produtivas e os serviços por elas realizados ou delas dependentes estão diretamente articulados à acumulação e reprodução do capital. Em outras palavras, o crescimento de assalariados no setor de serviços não é crescimento da classe média, e sim de uma nova classe trabalhadora heterogênea, definida pelas diferenças de escolaridade e pelas habilidades e competências determinadas pela tecnociência. De fato, no capitalismo industrial, as ciências, ainda que algumas delas fossem financiadas pelo capital, se realizavam, em sua maioria, em pesquisas autônomas cujos resultados poderiam levar a tecnologias aplicadas pelo capital na produção econômica. Essa situação significava que cientistas e técnicos pertenciam à clas se média. Hoje, porém, as ciências e as técnicas tornaram-se parte essencial das forças produtivas e por isso cientistas e técnicos passaram da classe média à classe trabalhadora como produtores de bens e serviços articulados à relação entre capital e tecnociência. Dessa maneira, renda, propriedade e escolaridade não são critérios para distinguir entre os membros da classe trabalhadora e os da classe média.

3. O critério da profissão liberal também se tornou problemático para definir a classe média, uma vez que a nova forma do capital levou à formação de empresas de saúde, advocacia, educação, comunicação, alimentação etc., de maneira que seus componentes se dividem entre proprietários privados e assalariados, e estes devem ser colocados (mesmo que vociferem contra isso) na classe trabalhadora.

4. A figura da pequena propriedade familiar também não é critério para definir a classe média porque a economia neoliberal, ao desmontar o modelo fordista, fragmentar e terceirizar o trabalho produtivo em milhares de microempresas (grande parte delas, familiares) dependentes do capital transnacional, transformou esses pequenos empresários em força produtiva que, juntamente com os prestadores individuais de serviços (seja na condição de trabalhadores precários, seja na condição de trabalhadores informais), é dirigida e dominada pelos oligopólios multinacionais, em suma, os transformou numa parte da nova classe trabalhadora mundial.
Restaram, portanto, as burocracias estatal e empresarial, o serviço público, a pequena propriedade fundiária e o pequeno comércio não filiado às grandes redes de oligopólios transnacionais como espaços para alocar a classe média. No Brasil, esta se beneficiou com as políticas econômicas dos últimos dez anos, também cresceu e prosperou.
Assim, se retornarmos ao exemplo do viajante brasileiro na Europa dos anos 1950 e 1960, diremos que a nova classe trabalhadora brasileira começa, finalmente, a ter acesso aos direitos sociais e a se tornar participante ativa do consumo de massa. Como a tradição autoritária da sociedade brasileira não pode admitir a existência de uma classe trabalhadora que não seja constituída pelos miseráveis deserdados da terra, os pobres desnutridos, analfabetos e incompetentes, imediatamente passou-se a afirmar que surgiu uma nova classe média, pois isso é menos perigoso para a ordem estabelecida do que uma classe trabalhadora protagonista social e política.
Ao mesmo tempo, entretanto, quando dizemos que se trata de uma nova classe trabalhadora consideramos que a novidade não se encontra apenas nos efeitos das políticas sociais e econômicas, mas também nos dois elementos trazidos pelo neoliberalismo, quais sejam, de um lado, a fragmentação, terceirização e precarização do trabalho e, de outro, a incorporação à classe trabalhadora de segmentos sociais que, nas formas anteriores do capitalismo, teriam pertencido à classe média. Dessa nova classe trabalhadora pouco se sabe até o momento.

5. Classe média: como desatar o nó?

Uma classe social não é um dado fixo, definido apenas pelas determinações econômicas, mas um sujeito social, político, moral e cultural que age, se constitui, interpreta a si mesmo e se transforma por meio da luta de classes. Ela é uma práxis, ou como escreveu E. P. Thompson, um fazer-se histórico. Ora, se é nisso que reside a possibilidade transformadora da classe trabalhadora, é nisso também que reside a possibilidade de ocultamento de seu ser e o risco de sua absorção ideológica pela classe dominante, sendo
O primeiro sinal desse risco justamente a difusão de que há uma nova classe média no Brasil. E é também por isso que a classe média coloca uma questão política de enorme relevância.
Estando fora do núcleo econômico definidor do capitalismo, a classe média encontra-se também fora do núcleo do poder político: ela não detém o poder do Estado nem o poder social da classe trabalhadora organizada. Isso a coloca numa posição que a define menos por sua posição econômica e muito mais por seu lugar ideológico, e este tende a ser contraditório.
Por sua posição no sistema social, a classe média tende a ser fragmentada, raramente encontrando um interesse comum que a unifique. Todavia, certos setores, como é o caso dos estudantes, dos funcionários públicos, dos intelectuais e de lideranças religiosas, tendem a se organizar e a se opor à classe dominante em nome da justiça social, colocando-se na defesa dos interesses e direitos dos excluídos, dos espoliados, dos oprimidos; numa palavra, tendem para a esquerda e, via de regra, para a extrema esquerda e o voluntarismo. No entanto, essa configuração é contrabalançada por outra exatamente oposta. Fragmentada, perpassada pelo individualismo competitivo, desprovida de um referencial social e econômico sólido e claro, a classe média tende a alimentar o imaginário da ordem e da segurança porque, em decorrência de sua fragmentação e de sua instabilidade, seu imaginário é povoado por um sonho e po r um pesadelo: seu sonho é tornar-se parte da classe dominante; seu pesadelo é tornar-se proletária. Para que o sonho se realize e o pesadelo não se concretize, é preciso ordem e segurança. Isso torna a classe média ideologicamente conservadora e reacionária, e seu papel social e político é o de assegurar a hegemonia ideológica da classe dominante, fazendo com que essa ideologia, por intermédio da escola, da religião, dos meios de comunicação, se naturalize e se espalhe pelo todo da sociedade. é sob essa perspectiva que se pode dizer que a classe média é a formadora da opinião social e política conservadora e reacionária.
Cabe ainda particularizar a classe média brasileira, que, além dos traços anteriores, é também determinada pela estrutura autoritária da sociedade brasileira. De fato, conservando as marcas da sociedade colonial escravista, a sociedade brasileira é marcada pelo predomínio do espaço privado sobre o público e, tendo o centro na hierarquia familiar, é fortemente hierarquizada em todos os seus aspectos: nela, as relações sociais e intersubjetivas são sempre realizadas como relação entre um superior, que manda, e um inferior, que obedece. As diferenças e assimetrias são sempre transformadas em desigualdades que reforçam a relação mando-obediência, e as desigualdades são naturalizadas. As relações entre os que se julgam iguais são de “parentesco”, isto é, de cumplicidade; e, entre aqueles que são vistos como desiguais, o relacionamento toma a forma do favor, da clientela, da tutela ou da coop tação, e, quando a desigualdade é muito marcada, assume a forma da opressão. A divisão social das classes é sobredeterminada pela polarização entre a carência (das classes populares) e o privilégio (da classe dominante), que é acentuada e reforçada pela adoção da economia neoliberal. Visto que uma carência é sempre particular, ela se distingue do interesse, que pode ser comum, e do direito, que é sempre universal. Visto que o privilégio é sempre particular, não pode unificar-se num interesse comum e jamais pode transformar-se num direito, pois, nesse caso, deixaria de ser privilégio. Compreende-se, portanto, a dificuldade para instituir no Brasil a democracia, que se define pela criação de novos direitos pela sociedade e sua garantia pelo Estado.
Parte constitutiva da sociedade brasileira, a classe média não só incorpora e propaga ideologicamente as formas autoritárias das relações sociais, como também incorpora e propaga a naturalização e valorização positiva da fragmentação e dispersão socioeconômica, trazidas pela economia neoliberal e defendidas ideologicamente pelo estímulo ao individualismo competitivo agressivo e ao sucesso a qualquer preço pela astúcia para operar com os procedimentos do mercado.
Ora, por mais que, no Brasil, as políticas econômicas e sociais tenham avançado em direção à democracia, as condições impostas pela economia neoliberal determinaram, como vimos, a difusão por toda a sociedade da ideologia da competência e da racionalidade do mercado como competição e promessa de sucesso. Uma vez que a nova classe trabalhadora brasileira se constituiu no interior desse momento do capitalismo, marcado pela fragmentação e dispersão do trabalho produtivo, de terceirização, precariedade e informalidade do trabalho, percebido como prestação de serviço de indivíduos independentes que se relacionam com outros indivíduos independentes na esfera do mercado de bens e serviços, ela se torna propensa a aderir ao individualismo competitivo e agressivo difundido pela classe média. Em outras palavras, o ser do social permanece oculto e por isso ela tende a aderir ao modo de aparecer do social como conjunto heterogêneo de indivíduos e interesses particulares em competição. E ela própria tende a acreditar que faz parte de uma nova classe média brasileira.
Essa crença é reforçada por sua entrada no consumo de massa.
De fato, do ponto de vista simbólico, a classe média substitui a falta de poder econômico e de poder político, que a definem, seja pela guinada ao voluntarismo de esquerda, seja voltando-se para a direita pela busca do prestígio e dos signos de prestígio, como os diplomas e os títulos vindos das profissões liberais, e pelo consumo de serviços e objetos indicadores de autoridade, riqueza, abundância, ascensão social – a casa no “bairro nobre” com quatro suítes, o carro importado, a roupa de marca etc. Em outras palavras, o consumo lhe aparece como ascensão social em direção à classe dominante e como distância intransponível entre ela e a classe trabalhadora. Esta, por sua vez, ao ter acesso ao consumo de massa tende a tomar esse imaginário por realidade e a aderir a ele.
Se, pelas condições atuais de sua formação, a nova classe trabalhadora brasileira está cercada por todos os lados pelos valores e símbolos neoliberais difundidos pela classe média, como desatar esse nó?

6. Para finalizar

Se a política democrática corresponde a uma sociedade democrática e se no Brasil a sociedade é autoritária, hierárquica, vertical, oligárquica, polarizada entre a carência e o privilégio, só será possível dar continuidade a uma política democrática enfrentando essa estrutura social. A ideia de inclusão social não é suficiente para derrubar essa polarização. Esta só pode ser enfrentada se o privilégio for enfrentado e este só será enfrentado por meio de quatro grandes ações políticas: uma reforma tributária que opere sobre a vergonhosa concentração da renda e faça o Estado passar da política de transferência de renda para a da distribuição e redistribuição da renda; uma reforma política, que dê uma dimensão republicana às instituições públicas; uma reforma social, que consolide o Estado do bem-estar social como política do Estado e não apenas como programa de governo; e uma política de cidadania cultural capaz de desmontar o imaginário autoritário, quebrando o monopólio da classe dominante sobre a esfera dos bens simbólicos e sua difusão e conservação por meio da classe média.
Mas a ação do Estado só pode ir até esse ponto. A continuidade da construção de uma sociedade democrática só pode ser a práxis da classe trabalhadora e por isso é fundamental que ela própria, como já o fez tantas outras vezes na história e tão claramente no Brasil, nos anos 1980 e 1990, encontre, em meio às adversidades impostas pelo modo de produção capitalista, caminhos novos de organização, crie suas formas de luta e de expressão autônoma, seja o sujeito de seu fazer.

Crônicas paulistanas

Era a manhã de uma quinta-feira, no “bairro nobre” de Higienópolis, em São Paulo. Pelas ruas, uma passeata, alguns folhetos e cartazes: os moradores de classe média “alta” do bairro puseram-se em movimento para impedir a construção de uma estação de metrô em sua vizinhança, alegando que a presença cotidiana de trabalhadores em trânsito traria violência, perigo, sujeira e crime, ameaçando a ordem e a segurança da região.
Era um sábado à noite. Nos aeroportos de Congonhas e Guarulhos, centenas de passageiros enfrentavam uma situação caótica: voos atrasados, alguns cancelados, outros transferidos de um setor para outro dos aeroportos, sem aviso prévio. Muita confusão. Uma parcela dos passageiros, com valises estampando griffes famosas para marcar sua posição de “alta” classe média, manifestou coletivamente seu profundo desagrado e, aqui e acolá, ouvia-se o mesmo refrão: “é isto o presente de grego deste governo. Entupiu os aeroportos com a gentalha que deveria estar nas estações rodoviárias, onde é o seu lugar!”.
Era um domingo à tarde. Precisei ir ao banco para fazer uma retirada de dinheiro
Para as despesas da semana. Meu genro me deu uma carona, mas ao chegar à agência bancária não lhe foi possível estacionar porque as três entradas para carros estavam obstruídas por um enorme automóvel prateado, cujos vidros escuros impediam-nos de saber se havia alguém ali. Desci no meio da rua e ao me dirigir ao banco voltei-me para o veículo prateado e indaguei em voz bem alta, pois não sabia se, além de escuros, impedindo a visão, os vidros também seriam blindados, impedindo a entrada de algum som:
– Há alguém aí? Vocês vão ao banco? Estão impedindo o estacionamento de outros carros!
Nenhuma resposta.
Entrei na agência bancária e ia começar uma operação quando uma moça, toda faceira, vestida, calçada e maquiada com todas as marcas grã-finas, se aproximou e gritou:
– Não tem educação, não? Vai gritando assim pela rua? Retruquei:
– Você ocupou todo o espaço disponível para o estacionamento dos carros e eu não sabia sequer se havia alguém no seu carro.
Nesse exato momento, entrou um homem (não tão moço quanto ela, mas também coberto de griffes da alta moda) e gritou:
– Você pensa que eu vou estacionar o meu Mercedes em qualquer lugar? Foi a conta. Do fundo das minhas entranhas veio o brado:
– Você é o típico representante da classe média paulistana! Fascista! Você é uma abominação política!
Por alguns segundos ele ficou sem ação, mas a moça não teve dúvidas: me bateu. Voltei-me para ela:
– Você vai passar da violência verbal para a violência física? Você é uma abominação ética!
Os dois se entreolharam perplexos e ele retomou a iniciativa:
– Você é uma velha feia!
Foi a sopa no mel. Repliquei:
– A minha idade é um fato da natureza, é um dado objetivo. Você não pode transformar um dado da natureza num xingamento. Você é uma abominação cognitiva!
Os dois ficaram imóveis por um momento e partiram sem dizer mais nada.

Na verdade, foram derrotados naquilo em que, certamente, são sempre vitoriosos: seu intento, típico de classe média, de fazer valer o “sabe com quem está falando?”. De fato, suas falas procuraram automática e imediatamente estabelecer uma relação de hierarquia, em que eles eram a parte superior e eu, a parte inferior do pedaço: não tenho educação, não sei o valor de um Mercedes, devo mesmo apanhar e sou uma velha feia diante de dois jovens (ele, nem tanto) elegantes e bonitos. O intento era me inferiorizar e me humilhar, isto é, me pôr no meu lugar. Afinal, o que é que estou pensando que sou?