Fonte: Esquerda.Net
O direito à água não é uma questão de escolha. Não é negociável. Não é reversível. É universal, indivisível, imprescritível. Até um condenado à morte tem direito à água. Dependem, portanto, da responsabilidade colectiva, assim como das instituições e autoridades públicas, as condições necessárias para garantir a concretização deste direito para todosTexto de Ricardo Petrella (adaptado de info.alternativa.org), orador no Seminário Internacional "Em Defesa do Direito à Água" a 10 de Janeiro, em Lisboa
Partamos do princípio fundamental que a água para beber, cozinhar, alimentar e tomar banho (água potável, água doméstica, essencial para viver, e cuja quantidade indispensável foi estimada em 50 litros diários por pessoa pela Organização Mundial de Saúde), e a água para a produção agrícola, industrial e actividades terciárias indispensáveis à vida de uma comunidade humana (água para a segurança da existência colectiva, cuja quantidade necessária foi estimada em 1700 metros cúbicos pela OMS e pela FAO), são parte plena do direito fundamental à água, individual e colectivo. Este direito fundamenta se no acesso à água para os usos humanos vitais, do qual ninguém, por nenhuma razão, pode ser privado.
O direito à água não é uma questão de escolha. Não é negociável. Não é reversível. É universal, indivisível, imprescritível. Até um condenado à morte tem direito à água. Dependem, portanto, da responsabilidade colectiva, assim como das instituições e autoridades públicas, as condições necessárias (jurídicas, económicas, financeiras, sociais) para garantir a concretização deste direito para todos, em quantidade e qualidade suficiente para a vida e para a segurança da existência colectiva, segundo as normas internacionais.
Podemos discutir o "nível" dos critérios mencionados, de 50 litros e 1700 metros cúbicos. Alguns, por exemplo, consideram a segunda cifra excessiva. Mas não podemos, de forma alguma, reduzir o alcance do direito à agua apenas à água potável. É a nossa proposta.
Obviamente, não significa que este direito possa satisfazer-se de qualquer modo, particularmente, com práticas não sustentáveis nos planos social, ecológico e económico.
GARANTIR O DIREITO À ÁGUA TEM CUSTOS EXCESSIVOS?
Fazer a água chegar às casas, como acontece quase totalmente nos países ricos e nos grupos sociais abastados, significou investimentos colossais por longos períodos, sem falar dos custos de tratamento e melhorias de infra estrutura e serviços existentes; e, a cada ano, pelo tratamento e colecta da água servida.
Estes custos estão em aumento contínuo e tornam se consideráveis. Estão totalmente fora da capacidade financeira da colectividade local dos países pobres e, também, como se diz, das colectividades dos países ricos. Este é um dos argumentos mais utilizados para justificar a dificuldade até hoje encontrada para assegurar o direito de todos à água, em qualquer lugar.
Na verdade, é um argumento tendencioso. Porque também em numerosos países de débil capacidade financeira, na Ásia, na África e na América Latina, os dirigentes "encontram" recursos financeiros para as despesas militares - e policiais - muito mais relevantes do que aqueles pela água potável, e ajudados pelos dirigentes dos países ricos (e, principalmente, vendedores de armas para o mundo).
Por outro lado, a prática mostra que:
Nos países ricos, os recursos públicos existem. Podem criar sistemas públicos de engenharia financeira, operativos de várias naturezas, assim como dispositivos apoiados por consórcios de bancos e caixas cooperativas destinadas ao mundo dos sindicatos e dos movimentos da sociedade civil (Igreja, Finanças Éticas). Quem disse, por exemplo, que não é mais possível que novas Caixas Económicas verdadeiramente cooperativas não possam realizar aquilo que o movimento das Caixas Cooperativas Desjardins fizeram no Quebeque, no âmbito dos serviços públicos, entre 1950 e 1990?
Nos países pobres, os recursos poderiam também ser encontrados com a anulação das suas dívidas externas, que representam um saque escandaloso das riquezas do Sul pelos países ricos do Norte.
Enfim, considerando o direito humano à água, estes recursos devem e podem ser mantidos nas mãos da comunidade. O seu financiamento pertence ao erário público. E é possível.
ÁGUA POTÁVEL, ÁGUA DOMÉSTICA PARA VIVER
Nos países ricos, no que diz respeito à água potável, à água doméstica para viver, o financiamento público deve cobrir o custo dos 50 litros de água, por dia e por pessoa, independentemente do salário, idade, cidadania, sexo e profissão. E deve cobrir até uma parte dos custos referente ao uso da água acima dos 50 litros se corresponder à busca de bem estar pessoal e familiar.
Em Valloria e na Svezia, por exemplo, um habitante usa respectivamente, em média, 109 e 119 litros por dia no consumo doméstico. A qualidade do seu nível de vida é considerada mais do que decente. Isso significa que nos países ricos é possível viver mais que decentemente com 120 litros de água por dia.
Tomemos a hipótese de que a nossa sociedade decida considerar 120 litros quotidianos por habitante como um uso razoável, sustentável. Neste caso, precisaríamos aplicar, para um consumo de água situado entre os 50 e os 120 litros por pessoa, uma tarifa que poderia ser chamada de "tarifa da sustentabilidade", e que seja um pouco inferior ao custo real de produção. De 120 até 180/200 litros (que é o consumo médio de um habitante da Europa Ocidental), entramos num quadro de alto consumo, sinal de um alto padrão de vida. Deveríamos, então, aplicar a "tarifa do interesse individual", a taxas progressivas, proporcionais à quantidade usada.
Fica como hipótese que mais de 200 litros por dia e por pessoa representa, para a nossa sociedade, um consumo excessivo, não sustentável, um desperdício do património universal. Neste caso, proporíamos que se aplicasse a "tarifa do proibido", segundo o princípio de que "quem contamina não tem direito". Se a sociedade considera efectivamente que mais de 200 litros constituem uma ameaça real à qualidade de vida do ecossistema, nem o princípio de "quem consome paga", nem o princípio de "quem contamina paga" podem ser aplicados, visto que não permitem a gestão sustentável do bem água.
ÁGUA PARA SEGURANÇA DA EXISTÊNCIA COLECTIVA
Uma vez respeitado o financiamento público da água para a segurança da existência colectiva, é urgente resolver uma situação marcada por uma regulamentação pouco adaptada e permissiva demais em quase todos os países ricos; um sistema de subsídios generalizados que é pouco claro, que obedece aos interesses corporativos dos mais fortes; e ausência de uma política de gestão financeira coerente. Por outras palavras, o uso da água pela agricultura e as indústrias, ou é sem custo algum para os utilizadores ou é fortemente subsidiado.
Propomos que se abra na Europa, antes de qualquer negociação do tipo GATS (os acordos para a privatização dos serviços da OMC) e também rejeitando a directiva Bolkestein, um amplo debate sobre este tema, sabendo que é urgente definir, do nosso ponto de vista, o nível que a autoridade pública considera, no plano mundial, como a quantidade de água produtiva para a segurança da existência colectiva de uma comunidade humana.
Recordemos que o emprego da água na agricultura, indústria e energia representam hoje 90% da oferta mundial de água doce. Segundo a OMS e a FAO, uma comunidade humana precisa, para viver com segurança hídrica, de 1700 metros cúbicos por pessoa/ano. Numa situação de alarme hídrico esse índice pode baixar até 1000 metros cúbicos. Menos que isso significa uma condição de penúria hídrica, de graves consequências para a saúde, a alimentação e a vida.
DUAS TESES PERIGOSAS
Um "contrato mundial da água", que regule estes aspectos é urgente, porque a sua falta pode gerar duas situações críticas. De um lado, pode-se reforçar o princípio da "soberania hídrica nacional". Assistiremos com isto, e sobretudo na hipótese de uma escassez crescente da água doce, ao fortalecimento da "nacionalização" da gestão da água, estritamente subordinada aos interesses nacionais, em lugar de uma responsabilidade mundial em matéria de segurança hídrica. De outro lado, teremos a afirmação da tese da "água virtual", segundo a qual os países em situação de alarme ou penúria hídrica teriam interesse em não produzir alimentos localmente, mesmo os géneros de primeira necessidade, que consumiriam grandes quantidades de água, mas sim importá-los, o que pouparia um nível razoável de recursos hídricos. A quantidade presumida representaria a "água virtual".
Aparentemente razoáveis, estas duas teses são perigosas porque:
a) Transferem para o âmbito comercial a regulação política daquilo que deveria pertencer ao âmbito da cooperação mútua inter-regional, continental e mundial. No âmbito agrícola, as regras comerciais são as mais injustas, as menos solidárias e as menos sustentáveis. E são, além disso, dominadas pelos grandes monopólios mundiais, norte-americanos, europeus e japoneses, da indústria agro alimentar e das grandes distribuidoras. Sugerir aos países que estão em penúria de água tornar a sua segurança colectiva dependente dos termos de troca comercial profundamente desigual parece pouco razoável.
b) Condenam estes países a uma dependência de países que produzem e distribuem produtos agrícolas, e impedem qualquer esforço de definição e aplicação de políticas e instituições mundiais (as mais diversas, como a FAO, OMS, OMC, sempre mais próximas dos interesses ocidentais), no âmbito agrícola, industrial e energético.
Para os países que não devem enfrentar um déficit hídrico, propomos:
a) que 1700 metros cúbicos por pessoa/ano fiquem nas mãos da comunidade: esta cifra deve ser estabelecida de forma precisa para os diversos países, dentro de variações de 1200 e 1700 metros cúbicos. A cobertura financeira dos custos seria assegurada por mecanismos de cálculos sobre as entradas percebidas com a fiscalização dos usos superiores aos 1700 metros cúbicos.
b) que, além dos 1700 metros cúbicos por pessoa/ano, se aplique uma tarifa progressiva, que varia em função do uso para agricultura e indústria, suas quantidades e impactos sobre o ecossistema, e das arrecadações fiscais dos cálculos sobre uso para finalidade energética.
c) que se defina para qual nível de consumo os princípios de "quem consome paga" e "quem polui paga" serão substituídos pela proibição total.
Para os países em alarme hídrico e, sobretudo, em penúria hídrica, propomos: que, em primeiro lugar, as autoridades locais favoreçam o uso sustentável e rigoroso da água prioritariamente para consumo doméstico e para a agricultura destinada a satisfazer as necessidades locais, proibindo os usos injustificados e inadequados para agricultura de exportação. Esta finalidade deverá ser sustentada pelos países ricos do Norte, que deverão deixar de subsidiar a exportação dos seus próprios produtos agrícolas (347 mil milhões de dólares ao ano!) e destinar pelo menos um terço destes subsídios em favor do desenvolvimento dos países pobres, os quais - em termos económicos puramente quantitativos - bastariam, juntamente com a anulação da dívida externa, para eliminar, em 15 anos, a fome, a sede a as doenças decorrentes destes, no mundo inteiro.
Tudo isto permitiria a estes países que se concentrassem na solução do problema do crescimento irracional e assassino das grandes concentrações urbanas de bairros de lata. A negação do direito à vida através da falta de acesso à água para viver está no coração destas cidades. Estas são soluções que permitirão um desenvolvimento urbano mais saudável e menos devastador. Uma destas está no desenvolvimento de cidades médias e na reconstrução da "municipalidade com medidas humanas" dentro das grandes cidades com milhões de habitantes.
Isto permitiria que as populações participassem da gestão e das soluções dos problemas comuns, concentrando o trabalho dos habitantes principalmente sobre aquilo que diz respeito à água, à alimentação, à habitação, à saúde, ao transporte colectivo e à educação.
Nestes países, o problema de como cobrir os custos pode ser tratado somente no âmbito de uma política integrada de desenvolvimento da sociedade e dos direitos humanos e sociais. São as escolhas feitas neste nível que ditarão as prioridades na política agrícola, industrial, sanitária, no centro das quais se encontra a questão da água e do direito à vida.
Estas dimensões são totalmente ignoradas no relatório "Financiar água para todos", feito pelo Grupo Camdessus e compilado como iniciativa do Conselho Mundial da Água, com o apoio do Banco Mundial, das multinacionais privadas da água e de um certo número de governos favoráveis à privatização dos serviços hídricos. Para os seus autores, o essencial do financiamento da água para todos gira em torno da criação de um ambiente de regulação económica favorável à iniciativa privada, de forma a atrair os investimentos privados estrangeiros.
O direito à água não é uma questão de escolha. Não é negociável. Não é reversível. É universal, indivisível, imprescritível. Até um condenado à morte tem direito à água. Dependem, portanto, da responsabilidade colectiva, assim como das instituições e autoridades públicas, as condições necessárias para garantir a concretização deste direito para todosTexto de Ricardo Petrella (adaptado de info.alternativa.org), orador no Seminário Internacional "Em Defesa do Direito à Água" a 10 de Janeiro, em Lisboa
Partamos do princípio fundamental que a água para beber, cozinhar, alimentar e tomar banho (água potável, água doméstica, essencial para viver, e cuja quantidade indispensável foi estimada em 50 litros diários por pessoa pela Organização Mundial de Saúde), e a água para a produção agrícola, industrial e actividades terciárias indispensáveis à vida de uma comunidade humana (água para a segurança da existência colectiva, cuja quantidade necessária foi estimada em 1700 metros cúbicos pela OMS e pela FAO), são parte plena do direito fundamental à água, individual e colectivo. Este direito fundamenta se no acesso à água para os usos humanos vitais, do qual ninguém, por nenhuma razão, pode ser privado.
O direito à água não é uma questão de escolha. Não é negociável. Não é reversível. É universal, indivisível, imprescritível. Até um condenado à morte tem direito à água. Dependem, portanto, da responsabilidade colectiva, assim como das instituições e autoridades públicas, as condições necessárias (jurídicas, económicas, financeiras, sociais) para garantir a concretização deste direito para todos, em quantidade e qualidade suficiente para a vida e para a segurança da existência colectiva, segundo as normas internacionais.
Podemos discutir o "nível" dos critérios mencionados, de 50 litros e 1700 metros cúbicos. Alguns, por exemplo, consideram a segunda cifra excessiva. Mas não podemos, de forma alguma, reduzir o alcance do direito à agua apenas à água potável. É a nossa proposta.
Obviamente, não significa que este direito possa satisfazer-se de qualquer modo, particularmente, com práticas não sustentáveis nos planos social, ecológico e económico.
GARANTIR O DIREITO À ÁGUA TEM CUSTOS EXCESSIVOS?
Fazer a água chegar às casas, como acontece quase totalmente nos países ricos e nos grupos sociais abastados, significou investimentos colossais por longos períodos, sem falar dos custos de tratamento e melhorias de infra estrutura e serviços existentes; e, a cada ano, pelo tratamento e colecta da água servida.
Estes custos estão em aumento contínuo e tornam se consideráveis. Estão totalmente fora da capacidade financeira da colectividade local dos países pobres e, também, como se diz, das colectividades dos países ricos. Este é um dos argumentos mais utilizados para justificar a dificuldade até hoje encontrada para assegurar o direito de todos à água, em qualquer lugar.
Na verdade, é um argumento tendencioso. Porque também em numerosos países de débil capacidade financeira, na Ásia, na África e na América Latina, os dirigentes "encontram" recursos financeiros para as despesas militares - e policiais - muito mais relevantes do que aqueles pela água potável, e ajudados pelos dirigentes dos países ricos (e, principalmente, vendedores de armas para o mundo).
Por outro lado, a prática mostra que:
Nos países ricos, os recursos públicos existem. Podem criar sistemas públicos de engenharia financeira, operativos de várias naturezas, assim como dispositivos apoiados por consórcios de bancos e caixas cooperativas destinadas ao mundo dos sindicatos e dos movimentos da sociedade civil (Igreja, Finanças Éticas). Quem disse, por exemplo, que não é mais possível que novas Caixas Económicas verdadeiramente cooperativas não possam realizar aquilo que o movimento das Caixas Cooperativas Desjardins fizeram no Quebeque, no âmbito dos serviços públicos, entre 1950 e 1990?
Nos países pobres, os recursos poderiam também ser encontrados com a anulação das suas dívidas externas, que representam um saque escandaloso das riquezas do Sul pelos países ricos do Norte.
Enfim, considerando o direito humano à água, estes recursos devem e podem ser mantidos nas mãos da comunidade. O seu financiamento pertence ao erário público. E é possível.
ÁGUA POTÁVEL, ÁGUA DOMÉSTICA PARA VIVER
Nos países ricos, no que diz respeito à água potável, à água doméstica para viver, o financiamento público deve cobrir o custo dos 50 litros de água, por dia e por pessoa, independentemente do salário, idade, cidadania, sexo e profissão. E deve cobrir até uma parte dos custos referente ao uso da água acima dos 50 litros se corresponder à busca de bem estar pessoal e familiar.
Em Valloria e na Svezia, por exemplo, um habitante usa respectivamente, em média, 109 e 119 litros por dia no consumo doméstico. A qualidade do seu nível de vida é considerada mais do que decente. Isso significa que nos países ricos é possível viver mais que decentemente com 120 litros de água por dia.
Tomemos a hipótese de que a nossa sociedade decida considerar 120 litros quotidianos por habitante como um uso razoável, sustentável. Neste caso, precisaríamos aplicar, para um consumo de água situado entre os 50 e os 120 litros por pessoa, uma tarifa que poderia ser chamada de "tarifa da sustentabilidade", e que seja um pouco inferior ao custo real de produção. De 120 até 180/200 litros (que é o consumo médio de um habitante da Europa Ocidental), entramos num quadro de alto consumo, sinal de um alto padrão de vida. Deveríamos, então, aplicar a "tarifa do interesse individual", a taxas progressivas, proporcionais à quantidade usada.
Fica como hipótese que mais de 200 litros por dia e por pessoa representa, para a nossa sociedade, um consumo excessivo, não sustentável, um desperdício do património universal. Neste caso, proporíamos que se aplicasse a "tarifa do proibido", segundo o princípio de que "quem contamina não tem direito". Se a sociedade considera efectivamente que mais de 200 litros constituem uma ameaça real à qualidade de vida do ecossistema, nem o princípio de "quem consome paga", nem o princípio de "quem contamina paga" podem ser aplicados, visto que não permitem a gestão sustentável do bem água.
ÁGUA PARA SEGURANÇA DA EXISTÊNCIA COLECTIVA
Uma vez respeitado o financiamento público da água para a segurança da existência colectiva, é urgente resolver uma situação marcada por uma regulamentação pouco adaptada e permissiva demais em quase todos os países ricos; um sistema de subsídios generalizados que é pouco claro, que obedece aos interesses corporativos dos mais fortes; e ausência de uma política de gestão financeira coerente. Por outras palavras, o uso da água pela agricultura e as indústrias, ou é sem custo algum para os utilizadores ou é fortemente subsidiado.
Propomos que se abra na Europa, antes de qualquer negociação do tipo GATS (os acordos para a privatização dos serviços da OMC) e também rejeitando a directiva Bolkestein, um amplo debate sobre este tema, sabendo que é urgente definir, do nosso ponto de vista, o nível que a autoridade pública considera, no plano mundial, como a quantidade de água produtiva para a segurança da existência colectiva de uma comunidade humana.
Recordemos que o emprego da água na agricultura, indústria e energia representam hoje 90% da oferta mundial de água doce. Segundo a OMS e a FAO, uma comunidade humana precisa, para viver com segurança hídrica, de 1700 metros cúbicos por pessoa/ano. Numa situação de alarme hídrico esse índice pode baixar até 1000 metros cúbicos. Menos que isso significa uma condição de penúria hídrica, de graves consequências para a saúde, a alimentação e a vida.
DUAS TESES PERIGOSAS
Um "contrato mundial da água", que regule estes aspectos é urgente, porque a sua falta pode gerar duas situações críticas. De um lado, pode-se reforçar o princípio da "soberania hídrica nacional". Assistiremos com isto, e sobretudo na hipótese de uma escassez crescente da água doce, ao fortalecimento da "nacionalização" da gestão da água, estritamente subordinada aos interesses nacionais, em lugar de uma responsabilidade mundial em matéria de segurança hídrica. De outro lado, teremos a afirmação da tese da "água virtual", segundo a qual os países em situação de alarme ou penúria hídrica teriam interesse em não produzir alimentos localmente, mesmo os géneros de primeira necessidade, que consumiriam grandes quantidades de água, mas sim importá-los, o que pouparia um nível razoável de recursos hídricos. A quantidade presumida representaria a "água virtual".
Aparentemente razoáveis, estas duas teses são perigosas porque:
a) Transferem para o âmbito comercial a regulação política daquilo que deveria pertencer ao âmbito da cooperação mútua inter-regional, continental e mundial. No âmbito agrícola, as regras comerciais são as mais injustas, as menos solidárias e as menos sustentáveis. E são, além disso, dominadas pelos grandes monopólios mundiais, norte-americanos, europeus e japoneses, da indústria agro alimentar e das grandes distribuidoras. Sugerir aos países que estão em penúria de água tornar a sua segurança colectiva dependente dos termos de troca comercial profundamente desigual parece pouco razoável.
b) Condenam estes países a uma dependência de países que produzem e distribuem produtos agrícolas, e impedem qualquer esforço de definição e aplicação de políticas e instituições mundiais (as mais diversas, como a FAO, OMS, OMC, sempre mais próximas dos interesses ocidentais), no âmbito agrícola, industrial e energético.
Para os países que não devem enfrentar um déficit hídrico, propomos:
a) que 1700 metros cúbicos por pessoa/ano fiquem nas mãos da comunidade: esta cifra deve ser estabelecida de forma precisa para os diversos países, dentro de variações de 1200 e 1700 metros cúbicos. A cobertura financeira dos custos seria assegurada por mecanismos de cálculos sobre as entradas percebidas com a fiscalização dos usos superiores aos 1700 metros cúbicos.
b) que, além dos 1700 metros cúbicos por pessoa/ano, se aplique uma tarifa progressiva, que varia em função do uso para agricultura e indústria, suas quantidades e impactos sobre o ecossistema, e das arrecadações fiscais dos cálculos sobre uso para finalidade energética.
c) que se defina para qual nível de consumo os princípios de "quem consome paga" e "quem polui paga" serão substituídos pela proibição total.
Para os países em alarme hídrico e, sobretudo, em penúria hídrica, propomos: que, em primeiro lugar, as autoridades locais favoreçam o uso sustentável e rigoroso da água prioritariamente para consumo doméstico e para a agricultura destinada a satisfazer as necessidades locais, proibindo os usos injustificados e inadequados para agricultura de exportação. Esta finalidade deverá ser sustentada pelos países ricos do Norte, que deverão deixar de subsidiar a exportação dos seus próprios produtos agrícolas (347 mil milhões de dólares ao ano!) e destinar pelo menos um terço destes subsídios em favor do desenvolvimento dos países pobres, os quais - em termos económicos puramente quantitativos - bastariam, juntamente com a anulação da dívida externa, para eliminar, em 15 anos, a fome, a sede a as doenças decorrentes destes, no mundo inteiro.
Tudo isto permitiria a estes países que se concentrassem na solução do problema do crescimento irracional e assassino das grandes concentrações urbanas de bairros de lata. A negação do direito à vida através da falta de acesso à água para viver está no coração destas cidades. Estas são soluções que permitirão um desenvolvimento urbano mais saudável e menos devastador. Uma destas está no desenvolvimento de cidades médias e na reconstrução da "municipalidade com medidas humanas" dentro das grandes cidades com milhões de habitantes.
Isto permitiria que as populações participassem da gestão e das soluções dos problemas comuns, concentrando o trabalho dos habitantes principalmente sobre aquilo que diz respeito à água, à alimentação, à habitação, à saúde, ao transporte colectivo e à educação.
Nestes países, o problema de como cobrir os custos pode ser tratado somente no âmbito de uma política integrada de desenvolvimento da sociedade e dos direitos humanos e sociais. São as escolhas feitas neste nível que ditarão as prioridades na política agrícola, industrial, sanitária, no centro das quais se encontra a questão da água e do direito à vida.
Estas dimensões são totalmente ignoradas no relatório "Financiar água para todos", feito pelo Grupo Camdessus e compilado como iniciativa do Conselho Mundial da Água, com o apoio do Banco Mundial, das multinacionais privadas da água e de um certo número de governos favoráveis à privatização dos serviços hídricos. Para os seus autores, o essencial do financiamento da água para todos gira em torno da criação de um ambiente de regulação económica favorável à iniciativa privada, de forma a atrair os investimentos privados estrangeiros.
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