quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

‘A luta de classes deslocou-se para o interior de cada trabalhador’

“O trabalhador se transformou em uma espécie de empregador de si mesmo. O sujeito emprega o corpo. A luta de classes se deslocou para o interior do indivíduo”. A série de suicídios ocorridos na França nos locais de trabalho seria uma das consequências desta nova organização do trabalho. Esta é a tese defendida pelo filósofo Sidi Mohamed Barkat (Tlemcen, Argélia, 1948), professor e pesquisador do Departamento de Ergonomia e Ecologia Humana da Universidade de Sorbonne, que nesta terça-feira proferiu uma conferência no Centro de Cultura Contemporânea de Barcelonasobre ‘O futuro do trabalho’.
Barkat, que foi diretor do Colégio Internacional de Filosofia de Paris combina sua condição de acadêmico na mais pura tradição da excelência francesa com suas origens argelinas, o que lhe permitiu pesquisar no campo das identidades dos indivíduos e fuçar livremente na memória da colonização ou no terror como arma política. Os franceses contra o terror de Estado. Argélia 1954-1962 e Os artífices do poder colonial e a destruição da vida (Éditions d’Amsterdam, 2005), são dois de seus livros mais importantes. Atualmente estuda as mudanças substanciais que estão se produzindo na organização do trabalho e nos conflitos que produz.
A entrevista é de J. M. Martí Font e está publicada no jornal espanhol El País, 26-01-2010. A tradução é do Cepat.
Segue a entrevista.

O fordismo, organização do trabalho que surgiu do sistema de produção em cadeia criado por Henry Ford, já não reina em nossas sociedades?
Os sindicatos lutavam para reduzir o número de horas trabalhadas e aumentar os salários e, em menor medida, controlavam as condições de trabalho, mas não chegavam ao que acontecia dentro do trabalho. Um sistema que permitiu o desenvolvimento da sociedade de consumo, o crescimento econômico, mas que não tratou da questão da existência, da respiração.

Onde respiravam?
Os trabalhadores respiravam fora do trabalho. Com o dinheiro se podia acessar o mundo, se podia entrar em uma comunidade – a comunidade nacional –, um mundo – a civilização – e um espaço – o território do país. Eram objetos de amor e conformavam a identidade.

Agora já não respiram...
A nova organização do trabalho mudou este relato e os suicídios são o grito desesperado dos trabalhadores que sucumbem. O Governo procurou uma razão para os suicídios e os atribuiu a problemas pessoais. Para mim são um grito de revolta diante de uma situação que nos ultrapassa e da qual não podemos escapar; o suicídio abre uma brecha para poder tomar o ar, é uma facada, como foi realmente no caso de um trabalhador daFrance Télécom que, no meio de uma reunião, cravou uma faca no abdômen. Quem se suicida nos convoca para ver o que os outros não veem. Nossa civilização não está consciente de que está produzindo mortos vivos, zumbis.

Trata-se de uma questão de produtividade? Qual é o fator determinante desta mudança?
A avaliação individualizada da produtividade cria uma divisão no interior da pessoa. O trabalhador foi transformado em uma espécie de empregador de si mesmo. Em alguns setores, certamente, lhe foi concedido um grau considerável de autonomia, e inclusive se pode dizer que é mais livre. Mas o que acontece é que uma parte de si mesmo – o sujeito – vai empregar a outra parte – o corpo – e vai lhe pedir uma série de coisas. Se os objetivos que se impõe são muito elevados, o sujeito pode pedir ao corpo talvez o impossível e é assim que o corpo vai trabalhar, não apenas na empresa, mas também fora dela; por exemplo, pedindo ao marido ou à esposa que lhe ajude; formando-se com o seu próprio custo. O trabalho transbordou completamente a sua esfera para invadir a esfera do privado. Inclusive se dá aos trabalhadores instrumentos, tais como: computadores, telefones, etc.

Para ajudá-los a trabalhar?
Na realidade, para ajudá-los a transportar seu trabalho para fora do espaço de seu trabalho. É quando começa o conflito entre o sujeito que ordena e o corpo que obedece. O corpo pensante, que é flexível e ágil, só pode ser assim mantendo uma certa economia vital; se for exigido demais, é como uma máquina à qual se pede mais do que pode oferecer e estraga. Em vez de produzir rapidez e invenção produz demora.

De onde vem esta contradição?
Das novas técnicas de gestão empresarial. Se disse que os trabalhadores já não tinham razões para enfrentar o capital; se disse: fizemos do assalariado seu próprio patrão, já não há luta de classes. Mas o capital – agora na forma de capital financeiro – e o trabalho continuam ali e o conflito se deslocou.

Para onde se deslocou o conflito?
Deslocamos o antagonismo social para o interior do indivíduo. O conflito social estava regulado pelas negociações entre os patrões e os sindicatos, pelas regulamentações etc. e pelo que antes definíamos como a comunidade nacional, a identidade..., mas agora o conflito está dentro do indivíduo, e é este conflito que leva à exploração, ao suicídio. Pode-se falar de assédio laboral, de chefes malvados, o que é certo, isto existe e preciso ser denunciado, mas não é isso que acontece dentro deste indivíduo que se suicida, não é o patrão, é ele mesmo. Não há maneira de estabelecer uma mediação entre um e outro.

Qual seria o sistema?
A questão fundamental é como se faz as pessoas correrem. Se você quiser simplesmente trabalhar, não lhe darão esse emprego. Por isso se procura só jovens, pessoas que acreditam nessa ideia de que são vencedores e não perdedores e que estão dispostos a se comprometer com o sucesso, que são ativas; pessoas que querem se movimentar... O movimento é o elemento determinante. O segundo elemento é a polivalência e a reestruturação, o que supõe substituir a existência. Mas esta mesma regra permite que a empresa diga regularmente que não fazem o suficiente. As pessoas correm para ter não apenas o salário, não apenas o reconhecimento; correm pelo simples fato de correr. Quando se corre se cria um fio que se rompe quando se pára. Correr é traçar uma linha. Esta linha não existe. Existe apenas quando se corre.

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