quinta-feira, 18 de setembro de 2008

“Remuneração do trabalhador caiu”, diz sociólogo

Raphael Bruno, Jornal do Brasil

BRASÍLIA - Sociólogo e professor titular da Universidade de Campinas, Ricardo Antunes, 54 anos, é considerado um dos maiores especialistas do Brasil na área de relações do trabalho. Intelectual de peso do PT por mais de 20 anos, como tantos outros se afastou do partido quando a legenda chegou ao poder, decepcionado com as políticas praticadas pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, para se tornar um de seus críticos mais severos.
Nesta entrevista ao JB, o pesquisador questiona o vigor do mercado de trabalho brasileiro demonstrado pelos números oficiais do IBGE, fala sobre o enfraquecimento do movimento sindical do país e analisa o que ele chama de "novo proletariado".

Nos últimos meses as taxas de emprego formal e de ocupação vêm batendo recordes. É para se comemorar ou há algo que os números não estão mostrando?
– Mesmo um pequeno crescimento mais acentuado significa incorporação de força de trabalho que estava com trabalhos precários, parciais ou provisórios. Cada 1% a mais no crescimento do Produto Interno Bruto é um contingente de trabalhadores que são incorporados. Agora disso a fazer uma comemoração muito grande é que temos que refletir. Primeiro, o nível de remuneração média da força de trabalho tem caído. Tem mais gente trabalhando mas os salários médios são mais baixos. Segundo, o crescimento do emprego tem se concentrado em áreas de trabalho menos qualificadas, o que questiona a falácia de que tendo qualificação o trabalhador tem emprego. É preciso tomar bastante cuidado para não cair na idéia apologética de que agora o país vai para frente.
O terceiro ponto é que, nem bem o país começou a crescer, os níveis de inflação ameaçam voltar e o Banco Central, com sua política restritiva, aumenta os juros. Isso constrange o crescimento econômico e faz com que os ganhos dos últimos meses passem a sofrer limitações.

Apesar do crescimento do emprego, a informalidade continua tendo peso no mercado de trabalho do país. Por quê isso não é revertido de maneira mais consistente?
– A informalização do trabalho é tendência global do capitalismo. Há uma intensa competitividade entre empresas e o trabalho é considerado como custo. Como tal, tem que ser cortado para que uma empresa se torne mais competitiva.
É traço fundamental da chamada empresa moderna, flexível, ter um número reduzido de trabalhadores formais e um número crescente de trabalhadores terceirizados. Até o começo dos anos 1980, dois terços da classe trabalhadora brasileira encontrava-se no mercado de trabalho formal, mas há cinco anos atrás nós chegamos a ter a informalidade batendo nos 60%, e hoje está mais próxima dos 50%.
É um processo concomitante com a desregulamentação da economia brasileira, a chamada inserção no mundo globalizado, com a entrada muito forte de produtos importados e uma mudança nos parques produtivos, o que fez com que nossos capitais exigissem a quebra de direitos dos trabalhadores através de uma política de flexibilização. A informalidade é uma praga mundial e o Brasil é parte dessa tragédia social.

E qual a avaliação que o senhor faz da aproximação das maiores centrais sindicais do país com o governo?
– Com a vitória do Lula em 2002 tivemos uma aproximação muito forte dos sindicatos e do Estado, com a cooptação de dezenas de ex-líderes sindicais que foram para os conselhos das estatais, secretarias e ministérios.
O Lula se origina no movimento sindical e se fez liderança popular nele. Então ele tem uma vivência de como tratar com essa liderança sindical. Tudo ganha materialidade através dos fundos como o FAT e o imposto sindical. As centrais estão no colo do Estado na medida em que dependem dele financeiramente. E estão no colo político no Estado na medida em que, com o pé no governo, não são capazes de fazer oposição.

Como o governo Lula vive hoje o melhor dos mundos se há três anos chafurdava no lamaçal do mensalão?
Por um lado, garantindo uma remuneração ao capital financeiro e ao grande capital produtivo num nível jamais visto
no Brasil, de fazer inveja a Fernando Henrique Cardoso. Na base, no extremo oposto, o bolsa-família atinge 50 milhões de pessoas, uma política assistencialista que sequer arranha as engrenagens das nossas mazelas sociais. E nos intermédios há essa política muito competente de cooptação das centrais sindicais.

O senhor costuma utilizar com freqüência a expressão "lulismo". O que seria exatamente esse lulismo?
– Lula não é uma liderança popular fictícia. Ele se consolidou ao longo de décadas. Mas nos anos 1990 o lulismo foi se tornando uma espécie de câncer dentro do PT. Ele se torna cada vez mais distante da sua classe de origem. Quanto mais ascende a escala social, mais seus valores do passado ficam para trás.
Lula combinou a sua velha base social com o mandonismo do PT, seu personalismo enorme e a comunicação direta com o povo. Ele sabe falar um discurso que o povo entende. Basta comparar com o elitismo intrínseco do Fernando Henrique. Lula pode fazer as políticas das elites, mas fala como se estivesse defendendo o povo.
O lulismo é uma espécie de semi-bonapartismo. Garante a boa-vida dos ricos embora diga que defende os pobres. Esse é o segredo da sua engenharia política. Nisso ele tem um traço do velho Getúlio. Com uma diferença: Getúlio era um oligarca dos pampas, ao passo que Lula se origina do movimento operário. Esse é o lado trágico. E é ele quem diz, não sou eu, que nunca os ricos ganharam tanto nesse país como no governo dele. É um atestado cabal do que é o lulismo.
Nesse sentido, a política de Lula é mais competente para as classes abastadas do Brasil, porque além de garantir a rentabilidade alta das classes burguesas, ele tem uma política de controle dos movimentos sociais que o PSDB, por exemplo, não tem.

O sindicalismo relembrou recentemente das grandes greves do ABC. O que explica o enfraquecimento do movimento operário ao longo desse anos?
– Os anos 1990 significaram para o Brasil a era da desertificação social. Primeiro, houve um enorme processo de informalização da classe trabalhadora. Segundo, uma monumental reestruturação produtiva. A empresa deixa de ser aquela típica do capitalismo brasileiro, taylorista/fordista, como foi a Volkswagen do Brasil, com 40 mil trabalhadores. Hoje, a Volkswagen de Resende (RJ) tem menos de dois mil trabalhadores, praticamente todos terceirizados. A morfologia da classe trabalhadora brasileira se alterou. E os sindicatos enfrentam esta situação nova de empresas flexíveis e enxutas.
O PT sofreu todo esse turbilhão social. A tragédia é que, ao invés de resistir, tentando manter sua origem de vinculação com as classes trabalhadores, o PT também mudou sua estrutura de classe.

Mesmo com todas estas transformações ainda seria possível falar em uma classe operária brasileira?
– Se você perguntar se a classe trabalhadora brasileira é a mesma das décadas de 1950, 1960, eu diria não. Não é nem mesmo a mesma da década de 1970. Mas uma trabalhadora de telemarketing, que trabalha oito horas por dia nos call-centers, respondendo telefones como se fosse uma máquina, ou aquele trabalhador jovem que vende hambúrguer no McDonalds, ou os trabalhadores de hipermercados que trabalham sem parar intensamente fazem parte de um novo proletariado.
Então ao mesmo tempo em que uma espécie de proletariado industrial da época taylorista/fordista se reduziu, ampliou-se enormemente um novo tipo de proletariado, por vezes mais precarizado que o anterior, que trabalha nas atividades de serviços. Nosso desafio é entender qual é essa nova classe trabalhadora.
Por outro lado, temos trabalhadores altamente qualificados, que trabalham com as tecnologias da informação e que têm a impressão de que estão no topo da pirâmide social.

Mas é possível enquadrar dentro do mesmo conceito de classe todos estes tipos de trabalhador?
– O conceito de classe não é para ser enquadrado. A noção de classe só pode ser ampla e muito heterogênea. Se você observar a revolução industrial no século XVIII na Inglaterra, ela tinha setores altamente qualificados e tinha na base da pirâmide trabalhadores vivendo num nível de miserabilidade muito grande.
A classe trabalhadora nunca foi coesa e única. Ela é múltipla. Mas tanto os do topo quanto os da base trabalham em troca de um salário. Este é o traço que a caracteriza.

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