Antônio Thomaz Jr. - Eram contextos diferentes, mas, do ponto de vista estrutural, teórico, continuo pensando que a substituição das fontes de energia não renováveis (petróleo, gás natural, carvão mineral, atômica) tinha como motivação apostar num outro modelo de organização da sociedade, calcado na sustentabilidade ambiental/social da produção/fornecimento de energia, em bases sociais e organizativas que pudessem responder ao bem-estar de produtores e consumidores. Mas, diante de mais uma tomada de assalto do grande capital para a produção de energia, o que se tem é a hegemonização desse tema pelos interesses dos grandes conglomerados empresariais oligopolistas que travestiram o ideário inicial, a partir do momento que fizeram valer seus interesses econômicos de controlar a produção/distribuição/circulação de energia e, conseqüentemente, usufruir de mais uma possibilidade para a maximização dos seus lucros.
É nesse turbilhão que o abandono dos fundamentos conservacionistas, a garantia da biodiversidade e a participação social plena na formulação/execução de estratégias públicas para obtenção de alternativas de energia renovável, em especial a partir de biomassa, são radicalmente modificados e travestidos. Nesse cenário, há prevalência do modelo concentracionista e destrutivo do capital, renovado nos anos 1990 sob o império neoliberal. Esse intento está se viabilizando por dois caminhos bem definidos. O primeiro, por meio de campanhas publicitárias e com o apoio de políticos em geral, chefes de Estado e de governo, sindicalistas, pesquisadores etc. O segundo se soma ao primeiro, e se enraíza nas políticas públicas que aceitam e internalizam as pressões do grande capital, dos produtores de soja, para garantir privilégios.
Em 2007, o Brasil produziu 843 milhões de litros de biodiesel, e, para atender à determinação dos 3% a serem adicionados a óleo diesel, a partir de julho de 2008, será necessário que as 52 plantas processadoras produzam 1,2 bilhão de litros, e, seguindo as expectativas anunciadas pela Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), a produção deverá atingir 4,0 bilhões de litros até 2011, fortalecendo, ainda mais, a expansão da monocultura da soja.
Antônio Thomaz Jr. - Numa sociedade que está fundada na exploração de trabalho e na apropriação individual da riqueza produzida socialmente, tem-se, portanto, elementos contraditórios estruturantes do funcionamento do processo social como um todo. Sabendo disso, nessa fase de mundialização do capital, a necessidade da alimentação requer que pensemos de forma articulada o sistema produtivo dos alimentos e, desse modo, no esquema, na organização e na estrutura de produção, bem como nos objetivos e nos pressupostos para produzir e consumir com base nas reais necessidades dos consumidores. Assim, torna-se necessário também abastecer os mercados consumidores próximos às áreas de produção.
O modelo de dominação do capital, mais propriamente a comercialização de alimentos no mercado mundial, influi muito negativamente no que diz respeito à estrutura produtiva familiar camponesa, sendo que a isso se liga a idéia difundida pelas transnacionais agro-químico-alimentares e financeiras de que a
produção agropecuária tem que servir ao mercado.
Para complementar essa idéia, tomamos o quadro social e político que é negligenciado, esquecido, omitido, obrigando milhares de homens a participarem de conflitos e lutas. As mudanças macroestruturais no formato produtivo das matérias-primas de origem agropecuárias, em nível planetário, na agroindustrialização, a circulação/distribuição dos cereais nobres (soja, milho) nas mãos de seletos grupos de transnacionais, que também estão fazendo parte da equação da produção de biodiesel, fazem com que a fome preocupe a humanidade em pleno século XXI.
O medo que setores importantes da burguesia e do grande capital têm manifestado publicamente está fundamentado nos estrangulamentos das contradições sociais, expressos criminosamente pela quantidade crescente de famintos e das mobilizações que pipocam por vários cantos do planeta (Haiti, Egito, Filipinas, Brasil, Nicarágua, México, Índia). Se não bastasse o cinismo de que “é necessário barrar a imoralidade da produção de biocombustíveis em detrimento da produção de alimentos”, qualquer pessoa desavisada poderia ser ludibriada.
Nesse depoimento, o diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), Dominique Strauss-Kahn, expõe as fissuras e disputas internas dos setores dominantes, mas, por contar com o apoio e sustentação política em nível internacional dos grandes conglomerados transnacionais e dos Estados, defende nichos de mercado e não propriamente ações concretas que garantam acesso aos alimentos para as populações pobres.
É o caso recorrente que envolve o Estado brasileiro em defesa da inserção dos biocombustíveis produzidos no Brasil, nos países europeus, sem barreras econômicas, fitossanitárias etc., sendo, pois, esse expediente valioso instrumento para combater a alta dos preços dos alimentos.
Essas ações, segundo o chanceler brasileiro Celso Amorim, seria a melhor demonstração, por parte do FMI, de garantir renda interna para que não se tenha a situação da fome agravada no país, sendo que a imoralidade da produção de biocombustíveis não se aplica ao Brasil porque a produção de álcool etílico não ameaça a produção de alimentos. Mas aqui reside um engodo, pois, seja no Brasil, seja em qualquer outra parte do planeta, a expansão dos agrocombustíveis anunciará a redução da área plantada e da produção propriamente dita de alimentos. Comecemos pelo exemplo norte-americano de expandir a área de plantio de milho para a produção de metanol, o que em dois anos, desde 2006, já foi capaz de mexer estruturalmente com a redução dos estoques internacionais e a conseqüente elevação dos preços dessa commoditie e de outros que a ele se vinculam para dar movimento à ciranda especulativa tão desejada pelos players das transnacionais que atuam nas Bolsas de mercadorias espalhadas pelo mundo.
No Brasil, os estragos são evidentes, apesar de mascarados pelo próprio presidente da República, como os efeitos do expansionismo da cana-de-açúcar, particularmente em São Paulo. Nossos estudos estão sinalizando que a maior parte das terras férteis agricultáveis estão sob o controle dos empreendimentos do agronegócio, sendo que a cana-de-açúcar ocupa lugar de destaque, não só em São Paulo, mas nas porções do território objeto da expansão recente ou que se consolidam nesse circuito, tais como Mato Grosso do Sul, Triângulo Mineiro, Sul-Sudoeste de Goiás, Noroeste do Paraná, o que denominamos de quadrilátero do agronegócio no Brasil. Os efeitos podem ser sentidos na retração das áreas de produção de alimentos, a começar pelo feijão, pelo arroz e pela produção de leite, o que se não se constata também para o Pontal do Paranapanema, exceto para o feijão, devido à expectativa de continuidade da alta dos preços.
Antônio Thomaz Jr. - Essa pergunta nos remete a um repensar estrutural do modelo atual da produção agropecuária no mundo. Basta lembrar que a capacidade produtiva e a produção propriamente dita de alimentos, particularmente cereais e carnes, têm aumentado ano a ano e o número de famintos cresce com maior intensidade.
Sustentados pelo modelo de organização em grandes extensões de terras sob a regência da propriedade privada, os conglomerados transnacionais também expropriam, subordinam e sujeitam a estrutura familiar/camponesa em todo o planeta, e, por meio das mega-plantas de processamento agroindustrial, controlam a produção/circulação de alimentos, exercendo, também, controle sobre a produção de sementes reengenheiradas e transgênicas. O que esquecem de informar é que nesse quadro há outros processos que (re)definem a escala de dominação e a amplitude da destrutividade da crise atual. Antes, porém, é necessário reafirmar que a estrutura bifronte que garante o controle e o poder do capital na dinâmica dos espaços produtivos agropecuários, em nível mundial, tem, de um lado, os desdobramentos da commoditização da produção de alimentos e, portanto, toda a dimensão especulativa, e, por outro, em decorrência do primeiro, a produção de alimentos continua sendo orientada somente com o objetivo mercadológico. Isto é, se serão ou não consumidos não é o mais importante, pois a regência do valor de troca subordina a utilidade e o acesso aos alimentos aos reais interesses do metabolismo do capital.
Antônio Thomaz Jr. - Todos esses elementos se interligam e, de alguma maneira, redefinem o quadro caótico do século XXI. Mas não é possível apostarmos que a escassez de alimentos motivada pelas seqüelas climáticas e ambientais (salinização, desertificação, secas prolongadas, inundações) seja o epicentro da atual crise. Até porque o que está em pauta não é a escassez, mas, sim, a dificuldade de acesso da população pobre à produção de alimentos por falta de renda. Se afinássemos nossas atenções para a cadeia alimentícia, notaríamos a existência de cartéis controlados por umas 10 empresas transnacionais, que estão aliadas formal ou informalmente a umas 40 empresas de tamanho médio, que compõem o cartel das seis transnacionais de grãos: Cargill, Continental CGC, Archer Danields Midland (ADM), Louis Dreyfus, André y Bunge and Born. Dominam praticamente os principais cereais/grãos (milho, trigo, soja, cevada etc.), passando para as carnes, os lácteos, óleos, vegetais, o açúcar e as frutas, mas também se ramificam por meio de outras empresas e holdings para o setor de agrocombustíveis/biocombustíveis.
Antônio Thomaz Jr. - Haveríamos de refazer esse questionamento, para ter clareza do que exatamente estamos pensado em construir. Se a opção for para reforçar o que já se sustenta pela via da mercantilização, não há solução, sobretudo para os famintos e para as populações empobrecidas. Precisamos apostar num outro modelo de sociedade, edificado sob o compromisso da liberdade, autonomia e independência dos homens do jugo de outrem. A humanidade pode e deve caminhar para essa direção, porque se não seu fim é anunciado, diante do destrutivismo imanente do capital.
Antônio Thomaz Jr. - Penso que somente pela via da Reforma Agrária,substanciada sob os referenciais da Soberania Alimentar, podemos vislumbrar conquistas emancipatórias para os excluídos.
Para viabilizarmos a produção sustentável de alimentos, é necessário que sejam atreladas políticas e ações concretas e efetivas de manutenção dos camponeses e suas famílias na terra, em condições de viver e produzir dignamente e que tudo isso esteja vinculado: a) à adoção de técnicas e de tecnologias de acordo com as necessidades e desejos dos próprios trabalhadores, com o objetivo de garantir a alimentação e as necessidades da sociedade; b) à importância de manter a produção camponesa vinculada a circuitos curtos para privilegiar a produção em todos os lugares possíveis, mantendo qualidade e sanidade dos alimentos, conservando não somente seu fornecimento regular, mas também os laços culturais; c)a o acesso aos recursos terra e água, mas referenciado na idéia de serem bens comuns e que devem estar sob o controle dos trabalhadores, para que os verdadeiros fins sejam garantidos, evitando assim a desertificação, a salinização das terras e o uso indevido; d) à defesa da autonomia dos camponeses para a construção do socialismo como alternativa para toda a sociedade.
Por isso, nosso interesse em inserir a discussão sobre a classe trabalhadora no mesmo ambiente da Reforma Agrária, da Soberania Alimentar. Disso surge uma reflexão também central para nós, que está radicada nos significados a priori – não no sentido ontológico e objetivo – dos conceitos-chave que estamos abordando, o que nos remete à existência histórica e ao plano das lutas e dos enfrentamentos efetivamente travados e não o que se espera que poderia ocorrer de forma restrita à seara sindical. Talvez algumas indagações sejam oportunas para o momento: quem ameaça mais a hegemonia do capital? São os de dentro ou os de fora da classe trabalhadora?
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