No esforço de mostrar que a produção de etanol a partir da cana não compromete a produção de alimentos e nem ameaça a preservação da Amazônia, as duas acusações mais freqüentes contra o álcool brasileiro, Lula apontou diversas causas que incidem sobre a agricultura, provocando a atual crise. Em primeiro lugar, a alta injustificável do petróleo com sua repercussão no preço dos insumos e do transporte. Depois, a especulação dos mercados financeiros em cima dos estoques de alimentos e o aumento de consumo de países que estão melhorando a condição de vida de suas populações, entre os quais estão a China, a Índia e o Brasil. E não deixou de fustigar de novo "as absurdas políticas protecionistas na agricultura dos países ricos".
A propósito deste último fator, os dados são de fato estarrecedores. Em 2006, os países ricos do primeiro mundo empenharam 372 bilhões de dólares em subsídios a suas agriculturas. O diretor da FAO, Jacques Diouf, ressalta o absurdo da situação atual: bastariam 30 bilhões de dólares para acudir A fome de 862 milhões de famintos, enquanto se gasta doze vezes mais em subsídios para proteger a agricultura dos países ricos!
Se fica difícil entender a razão destes subsídios, ao menos eles acabam mostrando quanto a agricultura é estratégica para um país. Ela não pode ser reduzida a um simples negócio, como qualquer outro. A política agrícola precisa fazer parte do projeto nacional de cada país. Ela precisa fazer parte de um projeto global de sobrevivência da humanidade.
No que se refere à cana, para agora enfocar um assunto muito brasileiro, e para a diocese de Jales muito atual e urgente, pois ela vem vindo a galope para esta região, importa olhá-la com discernimento e equilíbrio.
Não podemos nem demonizar a cana, como se ela fosse totalmente perversa, nem canonizá-la como se fosse imune a qualquer inconveniente. A cana tem muitas virtudes, que precisamos reconhecer, mas traz consigo muitos riscos, que devem ser evitados.
Entre as virtudes da cana, está sua grande capacidade natural de absorver os ingredientes da natureza. É um produto robusto, que se dá bem com a terra, o calor e a chuva. E tem um potencial fabuloso de aproveitamento, em forma de açúcar e álcool.
Não estranha, portanto, que encontre facilidade de cultivo. O interesse pela cana aumentou extraordinariamente com a crise ambiental e a escassez de combustíveis fósseis, contexto que propicia à cana muitas vantagens como alternativa de combustível limpo e renovável.
Mas a cana traz consigo alguns sérios riscos, que precisam ser bem ponderados. O primeiro deles é a exploração do trabalho humano, sobretudo dos cortadores de cana. A produção de álcool combustível não pode, de maneira nenhuma, implicar o retorno das condições de trabalho dos tempos da revolução industrial, quando a sede de lucro levava a exaurir as forças dos trabalhadores, que em poucos anos de trabalho perdiam sua saúde e comprometiam sua vida. É urgente uma profunda reversão da situação em que vivem hoje os cortadores de cana nas grandes usinas de álcool em nosso país.
Outro risco da cana é sua tendência à monocultura. Pela padronização da tecnologia do seu plantio e de sua colheita, e pelos grandes capitais implicados na produção do álcool, surge facilmente a tentação de desistir de outros cultivos, para deixar que a cana tome conta de todas as lavouras. Isto mostra a urgente necessidade de uma política agrícola municipal que limite o espaço da cana para garantir outros cultivos, que devem ser apoiados e incentivados.
Neste contexto, encontra espaço a indispensável preocupação pela prioridade da agricultura na produção de alimentos, que não pode faltar em qualquer debate sobre o uso da cana para a produção de etanol.
Estas breves considerações só acenam para a necessidade de aprofundar a reflexão para equacionar com equilíbrio nossa preocupação com a produção de alimentos, a crise ambiental e as alternativas energéticas. A cana tem o mérito de mostrar a urgência deste debate.
D. Demétrio Valentini é bispo de Jales.
fonte: Correio da Cidadania
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