Biocombustíveis trocam um problema por outro
Para especialista em energia, não faz sentido resolver o problema do petróleo, que é um recurso limitado, por terra, que é outro recurso limitado
NÃO BASTA substituir uma matriz por outra, mas diversificar. Não adianta resolver só do ponto de vista de oferta, trocando gasolina por álcool, mas também de distribuição, que é arcaica, e de demanda, que não pode continuar no nível atual. É o que defende o autor americano dos livros "The End Of Oil" ("O Fim do Petróleo") e "The End of Food" ("O Fim do Alimento").
Seu primeiro livro falava da crise energética. O atual fala da crise alimentar. Nos quatro anos que os separam, um assunto ficou intimamente ligado ao outro. A alta do petróleo ajudou a elevar os preços dos alimentos. Agora, Paul Roberts vê com preocupação o caso brasileiro, em que biocombustíveis como o álcool são tratados como a solução para o primeiro problema.
"Não me parece muito inteligente destinar cada vez mais terras para essa produção enquanto não sabemos com certeza qual será a demanda futura por alimentos", disse, em entrevista à Folha, por telefone, do Estado de Washington, onde mora com a mulher.
O jornalista investigativo de 54 anos defende uma mudança de hábitos dos consumidores.
"Não adianta falarmos que queremos que o governo, a ONU, seja quem for, resolva o problema, desde que nós possamos continuar tendo 2,5 carros, como é a média atual nos Estados Unidos."
É o fim da "Era de Ouro" da alimentação
Um dia, olharemos para as gôndolas dos atuais supermercados das grandes cidades ocidentais com nostalgia. Nunca mais o mundo terá tanta variedade na oferta de alimentos como hoje. Vivemos o que Paul Roberts chama de a "Era de Ouro" da alimentação. "Damos como certo que tudo será melhor a cada ano, com mais variedade, melhor qualidade, preços mais baixos, que vinha sendo a dinâmica até agora", diz o autor. "Nada mais errado."
Para ele, a equação atual se sustentava enquanto apenas a parte mais rica do mundo tinha acesso. Com a ascensão à classe média de largas fatias da população de países como China, Índia e Brasil, não haverá qualidade e quantidade que chegue para tanta gente. "É o fim do morango 12 meses por ano", decreta. Como assim?
"Vivo no Estado de Washington, onde só dá morango em uma época do ano", conta. "Acontece que meu filho foi criado de maneira a querer comer morango todos os meses, e a ter esse desejo satisfeito. Assim, para atender a mim e a milhares de outros pais, meu supermercado compra morangos de outros lugares, que chegam aqui a um custo ambiental e econômico elevadíssimo, gastando combustível de avião."
Isso deve acabar, diz. No lugar, Roberts acredita que será valorizada a produção local, com custo de distribuição menor, e produtos exóticos serão um luxo para poucos. Também os produtos industrializados terão queda. "Imagino que, na era em que estamos entrando, cozinharemos mais, em vez de comprar pronto, porque processar alimento e distribuí-lo vai ficar cada vez mais caro."
"Hoje em dia, a indústria alimentícia faz tudo por você, menos mastigar a comida -isso porque ainda não acharam um jeito", brinca Roberts. "Eu vejo a crise levando as pessoas a retomar o controle da cadeia alimentar, pelo menos mais do que hoje. Vejo as pessoas comendo menos carne. E repensando a distribuição."
Não é o caso de romantizar o passado, defende-se. "Há muito do que aconteceu no passado que deve ficar lá, mas a alimentação sazonal, baseada no que é da época ou não, fazia muito sentido. Se não é época de morangos, que se espere."
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FOLHA - "O Fim do Petróleo", título do seu primeiro livro, levará ao fim da alimentação, título do segundo?
PAUL ROBERTS - A crise energética sublinhou o papel central que a energia tem na produção de alimentos. Nós deveríamos saber já há tempos que energia e alimentação são intimamente ligadas e a crise de uma levaria à outra. Isso porque nossa estrutura alimentar foi pensada para um mundo em que o barril do petróleo custa US$ 15 [na última semana, bateu os US$ 140, ante US$ 10 há uma década].
Pense bem, todo o sistema de fertilizantes baseados em petróleo, o sistema de distribuição baseado em caminhões e aviões, tudo depende pesadamente do combustível fóssil. A origem disso tudo é uma época em que a energia era tão barata que quase não era levada em conta na equação.
Só isso já seria o suficiente para fazer a ligação entre as duas crises. Mas há ainda o caso recente dos programas de biocombustíveis, um novo dado na equação alimento-energia. Eles colocam mais pressão no setor de alimentação, pois ambos são feitos de maneira semelhante. Ou seja, antes nós ligávamos a alimentação, que é o setor mais importante do mundo, a uma mercadoria, o petróleo, que estava destinada fatalmente a subir de preço, pelo fato de ser um recurso que acabará um dia.
Agora, estamos substituindo por outro, o biocombustível, que briga por espaço com a própria produção de alimentos.
FOLHA - Em sua opinião, não faz sentido?
ROBERTS - Do ponto de vista de segurança alimentar, não, nenhum. Você troca um sistema que se baseia numa fonte limitada, que é o petróleo, por outro, de outra fonte limitada, que é a terra arável. Uma hora os dois acabam. O biocombustível pelo menos torna o problema mais evidente, por ser visível.
Quando você vê uma plantação de cana, ela está lá, ocupando espaço. Você é obrigado a enfrentá-lo, a pensar a respeito. O petróleo vem do fundo da terra e do mar, oculto. Do ponto de vista do público parece que vem de fonte inesgotável. É óbvio que acabará, mas não é tão visível.
FOLHA - Qual a solução, então? Há uma "terceira via"?
ROBERTS - Há todo tipo de possibilidades tecnológicas sendo pesquisadas neste momento, algumas que eu e você não podemos nem imaginar. Dá para presumir que a inovação vai continuar, principalmente quanto mais os preços subirem, historicamente o melhor estímulo intelectual. Veremos energia nuclear mais segura e barata, algas oceânicas que criem biocombustível de maneira sustentável, estamos próximos de anúncios históricos.
Mas, se a atual crise nos ensina algo, é que não bastará substituir uma matriz por outra, e sim diversificar. Mais: não adianta resolver só do ponto de vista de oferta, trocando gasolina por álcool, por exemplo, mas também de demanda, que não pode continuar no nível atual.
FOLHA - A produção de biocombustíveis diante da crise alimentar domina as discussões. No Brasil, o governo defende que as terras destinadas ao álcool ocupam perto de 2% do total que pode ser utilizado para alimentos. Já o relator especial da ONU sobre o assunto pede moratória de etanol. Qual o seu lado?
ROBERTS - Quando se fala que a terra ocupada para o biocombustível é pequena, eu pergunto: não é terra que poderia estar produzindo alimento? Ou é onde o dinheiro está? Quero ser cuidadoso nesse debate, mas não me parece muito inteligente destinar cada vez mais terras para a produção de biocombustíveis enquanto você não sabe com certeza qual será a demanda futura por alimentos. As pessoas dizem: "Bem, nós sempre podemos mudar de volta a exploração da terra para a produção de alimentos". Sim, mas depois que você constrói usinas ao lado dessas terras, investe bilhões de dólares na infra-estrutura para escoamento da produção, é extremamente difícil mudar. Há a demanda criada, a pressão política...
FOLHA - É possível reprimir a demanda por combustíveis, seja da origem que forem, sem comprometer o desenvolvimento de países emergentes, por exemplo?
ROBERTS - Essa é a pergunta de US$ 40 trilhões [risos]. É difícil, no quadro atual de desenvolvimento econômico. Mas, do jeito que está, caminhamos para o desastre. Faça as contas: pegue a situação das fontes naturais vitais para o desenvolvimento econômico, como água, terra e energia; adicione a mudança climática e o aumento de população; leve em conta que essa população não só cresce como está mais rica e consumista, com apetite por mais recursos.
É a receita do desastre. Não adianta falarmos que queremos que o governo, a ONU, seja quem for, resolva o problema, desde que nós possamos continuar tendo 2,5 carros, como é a média nos EUA, e comprando TV de tela de plasma. Eis a verdadeira discussão. Pegue por exemplo a questão da carne. É uma das mercadorias que mais energia e recursos naturais consome para ser produzida e uma das que mais afeta o ambiente. Os EUA, a Europa e o Canadá consomem em média cem quilos de carne por habitante por ano. A média mundial é muito menor que essa. O resto do mundo não pode comer carne como essas três regiões, ou o mundo entraria em colapso total. Qual é a conclusão? Os EUA devem continuar comendo mais carne que o resto do mundo? O resto do mundo deve se contentar com menos? Ou nós deveríamos chegar a uma equação mais eqüânime no meio do caminho? Um futuro em que os norte-americanos comam menos carne e todo o sistema global de alimentação se adapte à nova realidade. O mesmo se aplica a todo o resto. Moradia, por exemplo. Nós precisamos de casas com três andares e dez cômodos, mesmo com a família média norte-americana diminuindo? Carros cada vez maiores? Se continuarmos a vender essa idéia, de que sem casas grandes e muitos carros você não é bem-sucedido, de novo, caminhamos para o colapso.
FOLHA - Pela primeira vez, há mais obesos do que famintos no mundo, segundo a ONU. Como chegamos a essa assimetria?
ROBERTS - É perverso, concordo. É a primeira vez na história que ser gordo não é privilégio da elite. Dito isso, o problema da comida não ser distribuída eficientemente acontece já há algum tempo. O Império Romano foi construído em grande parte para permitir o acesso de Roma ao trigo. E Roma garantiu esse acesso de maneira bem-sucedida, porque tinha poder para isso. Eles tomavam o trigo do Egito e deixavam o país com pouco. No século 13, o mesmo aconteceu na Polônia e no mar Báltico, que alimentavam a Europa Ocidental e passavam fome. As potências sempre consumiram mais alimento, à custa dos mais pobres.
Só que isso era menos problemático no século 20, pelo menos na segunda metade, porque vivíamos no mundo do excesso, das sobras. Naquele período, a população explodiu em grande parte por conta da nossa capacidade de processar alimentos industrialmente. Assim, esquecemos a realidade de um mundo com recursos limitados. E isso infelizmente está reaparecendo. Temos uma população enorme, recursos de menos, devemos nos reeducar à luz dessa realidade e nos descolarmos de uma economia alimentar que já tem milhares de anos de idade.
FOLHA - O sr. não é totalmente contra o uso de transgênicos?
ROBERTS - Não, não sou da tribo dos que rejeitam os transgênicos apenas porque são novos e, portanto, perigosos. Meu problema com essa indústria é que ela está voltada para a chamada agricultura dos ricos, para grãos que são sucessos de venda, mas não liga a mínima para as necessidades dos outros 75% da população, que precisa de grãos não tão mercadologicamente importantes. O milagre transgênico serve aos que não precisam do milagre em primeiro lugar. De novo é: onde está o dinheiro? Fazendeiros africanos não têm dinheiro para comprar sementes transgênicas, logo, por que a indústria se preocuparia com eles? Ela está preocupada com a soja, e o pequeno fazendeiro no Quênia não precisa de sementes de soja. Ou seja, a indústria precisa provar que está preocupada com a segurança alimentar.
Eles estão usando nossos preciosos dólares de pesquisa que poderiam estar sendo usados para melhorar a saúde e educar os fazendeiros mais pobres.
SÉRGIO DÁVILA
Fonte: Folha de São Paulo - 23/06/2008
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